NOTÍCIAS 2005
Dulcinéia, musa minha e sua
Mario Persona
[*]
Hoje recebi de
José Augusto Minarelli uma mensagem musical em homenagem ao Dia Internacional da Mulher. "Sonho Impossível", na versão de Chico
Buarque e Ruy Guerra para o musical "O Homem de La Mancha". Belíssima. Descubro que todo mundo tem algo a dizer sobre a
mulher em seu dia. O "Dia Internacional da Mulher", quero dizer. E eu, o que poderia escrever que ninguém ainda escreveu?
Sobre minha mesa, dois belíssimos volumes de "Don Quixote de La Mancha", de
Miguel de Cervantes Saavedra, me fitam. A edição que herdei de meu pai é de 1955, ano de meu nascimento, e traz ilustrações de
Gustavo Doré. Que magia estes livros contêm? O que tornou Don Quixote um dos livros mais lidos do mundo?
O fato de ter sido concebido em um cárcere, talvez. Por ser a aventura de um louco em busca de
glória? Hummm... não sei... Quem sabe o que realmente nos seduz é saber que ele, um perdedor nato e fraco, se acha um campeão, o
mais valente, o mais fidalgo? Pode ser. Gostamos de fracos vencedores, porque no fundo somos assim. Só falta vencer.
Mas o que seria de um cavaleiro sem inspiração? É aí que entra Dulcinéia, a musa
inspiradora de Don Quixote. É aí que entra minha homenagem às mulheres, as musas inspiradoras dos homens. Mas quem é Dulcinéia?
Quixote, por gentileza, poderia descrevê-la? Você a conhece melhor do que eu.
"O seu nome é Dulcinéia, sua pátria Toboso, um lugar da Mancha; a sua qualidade
há de ser, pelo menos, Princesa, pois é Rainha e senhora minha; sua formosura sobre-humana, pois nela se realizam todos os
impossíveis e quiméricos tributos de formosura, que os poetas dão às suas damas; seus cabelos são ouro; a sua testa campos elíseos;
suas sobrancelhas arcos celestes; seus olhos sóis; suas faces rosas; seus lábios corais; pérolas os seus dentes; alabastro o seu
colo; mármore o seu peito; marfim as suas mãos, sua brancura neve; e as partes que à vista humana traz encobertas a honestidade são
tais (segundo eu conjeturo) que só a discreta consideração pode encarecê-las, sem poder compará-las."
[Pausa para você dar aquele suspiro e desarrepiar]
A verdade é que todo homem precisa de uma Dulcinéia, de uma musa, de uma
inspiração. De alguém por quem valha a pena lutar até contra o vento dos moinhos. Uma amada, uma esposa, uma mãe, uma irmã — você
elege a sua. Sem a sua Dulcinéia o homem é Romeu sem Julieta, queijo sem goiabada, azeitona sem sal.
Dulcinéia era a projeção que Don Quixote fazia de Aldonça Lourenço, uma campesina
de Toboso. A Dulcinéia dos sonhos ele nunca encontra no livro, porque ela mora em sua mente e coração. A Dulcinéia de cada um é
aquela que envelhece e você não vê as rugas; que ralha e você ouve um canto; que vira para o outro lado e dorme, e você enxerga um
anjo. Ideal, virtual, uma projeção toda sua da real. Pois ela é perfeita, nunca menos do que a imagem que você vê. É por essa que o
amor nunca arrefece.
Porém, Quixote chora, por achar que Dulcinéia o despreza:
"Ó princesa Dulcinéia, senhora deste cativo coração, muito agravo me fizeste em
despedir-me, e vedar-me com tão cruel rigor que aparecesse na vossa presença. Apraza-vos senhora, lembrar-vos deste coração tão
rendidamente vosso, que tantas mágoas padece por amor de vós."
Pelo amor de Dulcinéia, Don Quixote seria capaz de atravessar desertos, escalar
montanhas, cruzar os mares, dar a volta ao mundo, enfrentar perigos e abater inimigos. Mas no livro ela não fica com ele. Talvez por
saber que ele nunca iria parar em casa.
[*] Mario Persona é escritor, palestrante e consultor de
comunicação e marketing. Texto disponível em seu site. |