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NOTÍCIAS 2003

100 Anos do Cometa Harley

Mário Persona (*)
Colaborador

Há cem anos aparecia um cometa. Não estou falando do Halley, que veio do espaço, mas da Harley, que criou um espaço. Um espaço permanente na mente de jovens que sonhavam com a liberdade do vento cantando nos ouvidos. Acompanhado de um contra-baixo, o motor possante e pulsante fazendo um "tu-tu-tu-tu" que subia de entre as pernas até o coração. Mas será que a Harley-Davidson é a melhor motocicleta à venda?

Eu não entendo nada de motocicletas, mas ouvi da boca de entusiastas apaixonados que não. Alguns eu conheci quando parei num posto da Rodovia dos Bandeirantes para um café. Eram três, cada um com sua moto, uma alemã e duas japonesas. Pediram se eu podia bater uma foto do trio. Disse que sim.

O menos grisalho me entregou a câmera, mostrou onde eu devia ficar e correu posar. Pelo visor enxerguei os três ao lado de suas máquinas, vestindo de orgulho seus macacões de couro, botas de couro, luvas de couro e sorrisos de ouro. Onde estariam os netos?

"Tem alguma Harley aí?", perguntei, sabendo que não tinha. Puxei conversa enquanto puxava um cartão. "Sou palestrante e costumo falar da estratégia de marketing da Harley em minhas palestras", disparei meu institucional. Sabe como é, três grisalhos passeando com motos caras em horário de trabalho, bem podem ser empresários. Clientes em potencial.

Percebi que tinha pressionado a tecla da paixão. Eu sabia que mesmo que não pressionassem o selim de uma Harley sob o fundilho, deviam ter uma fazendo pressão lá dentro do coração. Acertei.


Imagem: site Harley-Davidson

Minha conversa devolveu anos de vida e entusiasmo aos três jovens anciãos, que passaram a explicar que não tinham Harley porque não era a melhor máquina. Mas o brilho nos olhos denunciava que era o melhor mito. Um deles teve a máquina e o mito. Tinha saudades mais do mito do que da máquina.

Nascida numa empresa de garagem, a Harley-Davidson deu seus primeiros passos nas corridas em estradas e no exército americano. Sua imagem foi associada à liberdade na década de sessenta. Filmes como os Hell's Angels e Easy Rider ajudaram a sedimentar a imagem rebelde. Enquanto isso, a Honda anunciava: "You meet the nicest people on a Honda". Ser cheiroso e comportado parecia então a alternativa politicamente correta para o suado de colete cavado.

Enquanto as comportadas japonesas venciam a corrida do mercado, uma agonizante Harley suspirava seus últimos "tu-tu-tu-tu". Foi quando os funcionários assumiram a empresa para resgatar o sonho. Mas será que alguém queria sonhar um sonho antigo? Muita gente.

Toda a geração que em criança sonhava ser um misto de mocinho e bad guy, sempre quis pilotar uma Harley, para o horror dos pais. Mas agora quem sonhou viajar vestido de couro, com um lenço amarrado na testa e uma tatuagem no braço podia contar o vil metal. Quarentão como nossos pais. Era hora de abrir o baú das paixões reprimidas.

Exumar o cadáver de um design quarentão foi a estratégia proposital da Harley para seu novo posicionamento radical. Como resposta ao design futurista das japonesas, o lema passou a ser: se as japonesas virarem o guidão para a direita, nós viramos para a esquerda. Hoje as japonesas desenterram uma linha de design quarentão, mas será que o finado faz o mesmo "tu-tu-tu-tu"? Não.

A ressurreição da Harley permitiu ao cidadão quarentão, que trabalhava o dia todo atrás de uma mesa vestido numa camisa branca e preso à coleira da gravata, realizar seu sonho. A realidade agora ele podia comprar.

Desde então, uma metamorfose ocorre nos finais de semana em todo o mundo. Qual um Hulk, que não é verde porque é maduro, o comportado bancário se veste de couro preto com todos os ilhoses de um bad guy. Amarra um lenço na testa, cola uma tatuagem de chiclete no braço e sai estrada afora. Fazendo "tu-tu-tu-tu".

Se a Harley-Davidson tivesse feito uma pesquisa de mercado, o público teria preferido os desenhos futuristas e a tecnologia avançada das japonesas. Pesquisas de mercado costumam sondar a razão. A Harley-Davidson deu a volta por cima porque pesquisou o coração. E acertou na paixão.

Hoje a marca detém quase 50% dos norte-americanos equilibrados em duas rodas. Muito mais que os 17% de market share da época em que a empresa se equilibrava fugindo do bico do corvo. O resto pode não trazer uma Harley sob o traseiro e um "tu-tu-tu-tu" entre as pernas, mas certamente leva uma Harley no desejo.

Desejo da liberdade de viajar na cauda de um cometa, porque é isso que a indústria de motocicletas vende. A sensação que Sonia Carrato descreve em seu poema "Insensatez", que não fala de motocicletas, mas descreve de forma mais bela o que tentei dizer, quando diz:

"Tomada de êxtase e alegria descobri
a magia de viajar na cauda de um cometa
e a volúpia de dançar ao som do vento..."

...e do "tu-tu-tu-tu" de uma Harley batendo no peito, eu diria.

(*) Mário Persona é consultor, escritor e palestrante, além de autor dos livros Crônicas de uma Internet de verão, Receitas de grandes negócios e Gestão de mudanças em tempos de oportunidades. Esta crônica faz parte dos temas apresentados em suas palestras. Edita o boletim eletrônico Crônicas de Negócios e mantém endereço próprio na Web, onde seus textos estão disponíveis.