NOTÍCIAS 2003
Vende-se sucata
Mário Persona (*)
Colaborador
É madrugada. Se não estivesse vestido num confortável moletom
eu diria que estou pensando com meus botões, tentando descobrir se o parafuso solto fica no hemisfério esquerdo ou direito de meu
cérebro. Ou, quem sabe, nos dois. Acima de minha cabeça vejo uma estrutura metálica com seus parafusos nos devidos lugares. E ontem
vi pernas e pés caminhando sobre mim.
Eram pernas levando pares de olhares curiosos para passear por um teto transparente sobre
minha cabeça de parafusos soltos. Alguns paravam para fotografar. Outros sorriam e acenavam. Todos tão surpresos quanto eu, que moro
agora numa casa de 400 metros quadrados, uma incrível gaiola de aço, acrílico, vidro, tecnologia e decoração - muita decoração.
Habitação provisória e passageira, como o que eu sou e sei.
Fui escolhido para esse projeto do Salão de Novos Negócios. Morar por cinco dias numa Casa
Contêiner, construída dentro do pavilhão de exposições. Sete pessoas e respectivos parafusos também moram aqui: uma arquiteta, uma
designer, uma jornalista, uma estilista de moda, um publicitário, um empresário e um padre, todos teletrabalhadores
domésticos. Além de nós, quatro jornalistas se revezam no morar e observar a experiência de home-office ou teletrabalho -
hoje três deles são estrangeiros.
A casa é um sonho de tecnologia, arquitetura e decoração. Suítes com projetos assinados por
grifes famosas circundam uma magnífica sala de estar coroada por um teto transparente em forma de pirâmide. Nem vou falar da
cozinha, academia de ginástica, sauna, sala de imprensa, capela e home-theater, ou você pensará que estou exagerando. É
melhor que veja com seus próprios olhos no próximo exemplar das revistas de arquitetura e decoração.
Por que participar? Para experimentar o novo, criar referência, ser pioneiro. Não há
pagamento, mas continuamos ganhando nosso pão - graças à Internet, passamos o dia trabalhando como faríamos em casa. O importante é
o contexto e a bandeira que empunhamos, de viabilização e valorização do trabalho em casa. Mais inteligente, mais seguro, mais
racional para profissões como a minha.
Mas qual é mesmo a minha profissão? Bem, aqui dentro sou escritor e consultor. Na próxima
semana sou palestrante e professor, sem deixar de ser o que hoje sou. Mas não foi para isso que me formei arquiteto, o que hoje não
sou. Ou trabalhei dez anos como editor, depois de ser vendedor e negociador, deixando para trás o desenhista e pintor. Antes mesmo
do período de agricultor, embora continue tradutor, dia sim, dia não. Mas nunca vou contar que já vendi verduras com uma carroça,
pois há quem pense ser isso uma mancha na reputação.
Tom Peters escreveu: "Nunca contrate alguém sem uma aberração em seu background". Sua
pena incentiva o profissional a ser diferente, distinto, memorável. Também sugere que seja uma marca, trabalhada, melhorada e
divulgada, de forma dinâmica, mutante, jamais passiva ou acomodada. Que se sobressaia, aprenda sempre, corra risco e sonde o
insondável. Sem jamais se contentar em viver como náufrago profissional, morando na ilha da especialização.
Quem se dá por contente com o que já faz, fica para trás. Vivemos num mundo de novas
profissões, atividades e versões. A atividade mais moderna hoje será amanhã tão velha quanto uma viagem à Lua. É preciso embarcar
nela enquanto ainda é ficção. Reciclar, renovar, recarregar as baterias. Ou até descartá-las, se ficarem para trás. É o que Wallace
deveria ter feito.
Ele era o pai da casa norte-americana onde morei quando adolescente. O programa de
intercâmbio escolheu um lar para eu morar, mas não previu o meu pé frio: quando cheguei, Wallace perdeu o emprego. Sem abrir mão da
hospitalidade, me aturou seis meses sem salário. E mais de um ano depois continuava sem um novo emprego. Seu sustento vinha de três
casas de aluguel e um pequeno negócio de sucatas. Que ele demorou a perceber que incluía sua especialização.
Wallace era engenheiro elétrico aeroespacial, especializado nas baterias que os astronautas
levavam para trabalhar na Lua. Quando o programa Apollo descarregou, aquilo deixou de ser um bom negócio, mas Wallace demorou a
perceber. Só conseguiu trabalho quando se livrou da sucata de sua especialização e decidiu ousar algo novo. Aí o sol raiou para ele
outra vez. Como deve estar raiando agora, fora do pavilhão.
Logo esta casa efêmera será invadida por um batalhão de repórteres, fotógrafos e
cinegrafistas, caso se repita o que vimos ontem. Quando a notícia aparecer nos jornais, rádio, TV e Internet é provável que toda
essa estrutura já esteja sendo desmontada e boa parte dela seja transformada em sucata, enquanto o conceito sobrevive. Logo agora
que eu já estava me acostumando com essa vida, sentindo-me seguro e com todos os meus parafusos bem apertados. O jeito é soltar
algum e embarcar noutro arrojo, pois há sempre fronteiras para se desbravar. Se no processo sobrar algum parafuso, é provável que
não passe de sucata.
(*)
Mário Persona é consultor, escritor e
palestrante, além de autor dos livros Crônicas de uma Internet de verão,
Receitas de grandes negócios e Gestão de mudanças em tempos de oportunidades. Esta crônica faz parte dos temas
apresentados em suas palestras. Edita o boletim eletrônico Crônicas de Negócios e mantém
endereço próprio na Web, onde seus textos estão disponíveis. |