NOTÍCIAS 2003
Posso fazer uma pergunta?
Mário Persona (*)
Colaborador
Há alguns anos, descobri que era surdo. Hein? Não, nem tanto.
Foi num exame médico para ser admitido numa empresa. Daqueles em que você fica numa cabine à prova de som e aperta um botãozinho
sempre que escuta um apito nos fones de ouvidos.
O que? Ah, sim, a perda é em ambos os ouvidos, mas muito pequena. Nada sério. Só não consigo
perceber as freqüências muito altas. Maitê Proença? Ah, entendi. Não, não é de nascença. Deve ter sido de tanto amaciar motores de
aeromodelos na adolescência, fechado numa garagem.
Esta pequena deficiência tem suas vantagens, como ouvir a música do rádio com menos chiado
ou continuar achando bom aquele LP que as crianças gostavam de tocar.
Em meus treinamentos de comunicação e marketing em negociação e vendas costumo frisar
a importância de se ouvir o cliente. É aí que a venda começa, não na oferta do produto ou serviço. Parece algo simples, mas não é.
Nem todo profissional de vendas está preparado para isso. Você ouviu o que eu disse? Então procure se lembrar de sua última venda.
Quem falou mais?
Neil Rackham foi um dos criadores da estratégia SPIN, iniciais de Situation, Problem,
Implication e Pay-Off. Resumindo, trata-se de uma estratégia de vendas em que você procura identificar a situação e os problemas
de seu cliente, descobrir as implicações que eles trazem, e o benefício esperado.
Para criar sua estratégia, Neil Rackham usou os dados obtidos numa pesquisa patrocinada pela
IBM e Xerox, a qual revelou que, num universo de trinta e cinco mil contatos de vendas, na maioria dos que foram bem-sucedidos quem
falou mais foi o cliente. Psiu! Desculpe, eu sei que você tem algo a dizer a respeito, mas espere até eu terminar.
Temos séculos de condicionamento que nos fazem acreditar que vender é falar. Não é. Vender é
saber administrar uma comunicação de duas vias. Bilateral. De mão dupla. É convidar para dançar e abrir mão dos dois pra lá, dois
pra cá. É um pra lá e dois pra cá.
Isso porque temos dois ouvidos e uma boca, o que equivale a dizer que apenas um terço da
comunicação deve ser iniciativa nossa. A menos que você fale também pelos cotovelos, o que amplia isso para três quintos.
Aí sugiro que esteja sempre de mangas compridas ou cotoveleiras durante uma venda. Deve ser
por isso que um amigo, vendedor, dizia que vender é colocar os cotovelos na mesa. Não sei se a técnica pode ser usada também para a
boca.
Mas na hora de usar o 1/3 de seu direito de se comunicar numa venda, você fala o quê? Oras,
fale o que for relevante, desde que termine sempre com um ponto de interrogação. Exatamente, aquele que é parecido com um gancho. Em
meu teclado fica ao lado da tecla "Shift". Pare um pouco e olhe para ele.
Viu? Então você já entendeu. O gancho! É assim que se vende, perguntando. Deixando o cliente
pegar o gancho. Já tentou pescar com anzol reto? O ponto de interrogação é o anzol que irá fisgar seu cliente numa conversação e
induzi-lo a falar. Enquanto você fica quietinho para não espantar o peixe.
Se os anzóis interrogativos forem adornados com perguntas-isca bem elaboradas, seus clientes
ficarão boquiabertos com sua profundidade. Mantenha-os boquiabertos enquanto você extrai mais informações para formar um quadro
completo das necessidades. Nada de tentar arrastá-lo com argumentos para comprar uma característica de seu produto que ele não quer.
Como você sabe se ela não está fora da freqüência de seu interesse? Até você sabe como ficar surdo a esse tipo de ruído de vendedor.
A oferta dos benefícios de seu produto ou serviço deve acontecer naturalmente, como uma
reação à súplica de seu cliente. Nesse ponto é ele quem passa a usar o ponto de interrogação. Se for um cliente espanhol, vai usar
dois pontos de interrogação, um deles de cabeça para baixo. Mas isso não significa que comprará em dobro.
É claro que as perguntas que sua boca irá fazer não devem partir da garganta, mas do
cérebro. Podem ser perguntas fechadas ou abertas. As primeiras costumam gerar respostas pontuais como sim, não, hoje, amanhã, frio,
quente etc. As outras criam oportunidades para o cliente se abrir, falar mais, revelar o que está pensando ou sentindo. Coloque-se
no lugar do médico que tenta descobrir onde dói na hora de perguntar.
Definitivamente, saber vender não é saber falar. É saber perguntar. As grandes descobertas
só foram possíveis porque existiram pessoas que fizeram grandes perguntas. E tiveram a paciência de esperar pela resposta.
(*)
Mário Persona é consultor, escritor e
palestrante, além de autor dos livros Crônicas de uma Internet de verão,
Receitas de grandes negócios e Gestão de mudanças em tempos de oportunidades. Esta crônica faz parte dos temas
apresentados em suas palestras. Edita o boletim eletrônico Crônicas de Negócios e mantém
endereço próprio na Web, onde seus textos estão disponíveis. |