NOTÍCIAS 2003
Uma pergunta que não quer calar
Mário Persona (*)
Colaborador
"Quem tiver perguntas para fazer a Philip Kotler, anote na
folha e entregue às nossas recepcionistas." A voz no microfone era de Carlos Alberto Júlio, diretor executivo da HSM e dirigida aos
mil participantes do Fórum Mundial de Marketing e Vendas. Evento lotado, só consegui vaga no segundo auditório, equipado com
telão. Mas para quem só tinha visto Philip Kotler na telinha, já era um progresso vê-lo no telão.
E eu podia perguntar! Já pensou? Fazer uma pergunta à maior autoridade mundial de
marketing? Aquilo significava muito para mim. Leciono marketing e sei quanto pesa o livro Administração de Marketing
do mesmo Kotler. É o clássico, a referência, o norte. Folheá-lo já é um prazer; citá-lo, dá autoridade. Perguntar ao vivo, então,
uma oportunidade em mil.
Peguei uma folha, preparei, apontei a caneta e, quando ia atirar a primeira consoante de
minha pergunta, uma voz ribombou pela sala. Alguém perguntava primeiro e não era por escrito. Impossível! Estava no auditório do
telão. Quem faria perguntas a um Kotler digitalizado?
Na tela o mestre continuava ensinando impassível, confirmando minhas suspeitas de que telões
não têm ouvidos. São surdos como dizem ser os maridos perfeitos, casados com as esposas perfeitas. As cegas.
Olhei para os lados e vi apenas gravatas em gargantas caladas, olhos fixos na tela e fones
enfiados nos ouvidos, para escutar a tradução. Voltei a trabalhar na pergunta, mas ouvi a voz outra vez, e não era da consciência.
Saía da boca de alguém algumas gravatas à esquerda. Entendi.
Com os ouvidos entupidos de cera e fone, o rapaz era incapaz de modular a voz ao dirigir
perguntas ao ensurdecido pelo fone ao lado. Já vi isso acontecer em lojas de disco. Pessoas com fones nos ouvidos escutam o CD e
acham que cantarolam um Pavarotti baixinho. Mas berram em alto e nem sempre bom tom, incomodando um quarteirão.
Kotler falou disso. Não de fones de ouvido ou perguntas feitas por bocas surdas, mas da
embotada percepção de algumas empresas para com o mercado. Que agem como se estivessem sozinhas em um mundo privado, dialogando só
com o umbigo.
O contrário dessa falta de percepção é a capacidade de desenvolver um marketing
lateral, percebendo ou criando percepções ainda não percebidas. Aliás, "marketing lateral" é o tema de um de seus livros.
Trata-se de um processo numa seqüência organizada, que começa com a escolha de um produto,
mercado ou mix de marketing. O segundo passo é provocar um deslocamento lateral, gerando uma nova carência perceptível e,
finalmente, supri-la. O exemplo mais simples é o da flor, que murcha. A carência detectada - uma flor durável - foi respondida pela
flor de plástico. É claro que isso explicado por mim fica uma droga, mas pelo Kotler não. É melhor você assistir uma palestra, ler o
livro ou perguntar a ele. Como fiz.
Disparei a folha com a pergunta para a recepcionista e esperei. Minha expectativa que virou
frustração, quando vi outras mãos disparando folhas na mesma direção. Envergonhei-me de minha pretensão. Entre mil cabeças pensantes
com dúvidas interessantes, minha pergunta-sonho jamais se transformaria em resposta-realidade. Nem a minha, nem a do rapaz ao lado,
que continuava a perguntar em voz alta.
Ninguém tinha coragem de gritar um "calaboca!", principalmente naquele ambiente de orgulhosa
sapiência refreando a ignorância dos instintos primitivos. Até eu equilibrava a fleuma numa varinha de dignidade. Ninguém podia
saber que cinqüenta por cento da vontade de perguntar era pura tietagem. Coisa de ego, sabe como é, poder depois contar aos netos
que o pai do marketing respondera uma pergunta do avô.
A palestra terminou e um calhamaço de perguntas subiu ao palco. O ponteiro de meu mostrador
de tietagem atingiu a marca dos noventa por cento. Qual era mesmo a pergunta que fiz? Poucas seriam escolhidas e respondidas.
Depois do fulano do Banco do Brasil, sicrano da Embraer e beltrano da Credicard, o
apresentador anunciou: "The next question comes from Mario Persona". Da empresa tal. Gelei. "Mamãe, sou eu!", quase gritei. Fiz de
conta que não percebi um amigo sussurrar para mim com o olhar: "Veja, é você!". Mantive uma impassibilidade zen, de monge oriental
praticando harakiri. Enquanto isso, minhas entranhas se derramavam de prazer.
Fiz cara de quem não vê importância alguma em vestir uma resposta sob medida, costurada à
mão pelo próprio Philip Kotler. Regulei o brilho dos olhos para o mínimo e o contraste no zero, para os outros pensarem que aquilo
era banal, trivial e normal. Até esbocei um bocejo. Meu único medo era que alguém ouvisse o bumbo de torcida que batia em meu peito.
Não, ninguém podia ouvir. Nessa hora o grasnido do chato da hora - o do fone de ouvido - era
um aliado. Ele continuava a fazer suas perguntas em voz alta. A minha, era a que eu compartilharia depois com meus alunos, só para
me gabar. A dele, era a pergunta que não queria calar.
(*)
Mário Persona é consultor, escritor e
palestrante, além de autor dos livros Crônicas de uma Internet de verão,
Receitas de grandes negócios e Gestão de mudanças em tempos de oportunidades. Esta crônica faz parte dos temas
apresentados em suas palestras. Edita o boletim eletrônico Crônicas de Negócios e mantém
endereço próprio na Web, onde seus textos estão disponíveis. |