NOTÍCIAS 2002
Visão jurídica do comércio eletrônico
Ângela Bittencourt Brasil (*)
Colaboradora
Mais do que um agente de comunicação e informação,
a Internet é o principal motor dessa revolução que está jogando por terra o modo tradicional de negociar, alavancando as
oportunidades de compra e venda de produtos e aumentando a oferta de serviços em todos os segmentos econômicos da sociedade.
Para entendermos o Direito Comercial aplicado à Internet e assim situarmos o comércio
eletrônico neste contexto, temos que conceituar o comércio como um fato social e econômico que coloca em circulação habitualmente a
riqueza produzida com fins lucrativos. Porém, Themis da justiça e não Hermes do comércio, já que estas relações produzem efeitos
jurídicos que necessitam do intérprete da mesma forma que as demais comunicações nos outros setores da vida em sociedade. O fato da
comunicação ser virtual apenas muda o ambiente negocial, sem modificar a essência do fundo que há de vigorar sobre a forma.
O Código Comercial - datado de 25 de junho de 1850 e, que de tão ultrapassado,
necessita de leis esparsas que o complementam - continua a ser a principal fonte do Direito Comercial a ser aplicado também na rede
de comunicação, mas devido ao dinamismo desta atividade outras práticas são adotadas, tais quais os usos e costumes, chamado de
direito consuetudinário, que se traduz como o direito dos costumes e que teve a sua origem na Idade Média por uso comum dos
comerciantes da época. Essas práticas surgem de modo espontâneo e as regras fixadas para o uso acabam por tornar-se uma relação
jurídica observada como regra de direito, insuscetível de ser violada.
Evidentemente que nenhum costume pode se contrapor à norma legal, e a boa fé é a tônica de
sua aplicação nos meios comerciais, sendo que a jurisprudência vem aceitando os usos e costumes estabelecidos nas negociações,
sobrepondo-os mesmo à norma legal, desde que não ofenda a uma norma imperativa de direito.
Não vemos desta maneira impeditivo para que a mesma prática seja adotada no comércio
eletrônico, pois, na verdade, este nada mais é do que uma forma de se negociar à distância. Os mesmo usos e costumes praticados nas
transações conhecidas poderão ser usados na Internet, como se faz no fechamento de negócios por meio de carta, telefonema ou fax. A
prova dos costumes será feita nos mesmos moldes das outras transações em sede judicial, ou seja, se já houve o uso comercial, a
comprovação dar-se-á por meio de Certidão da Junta Comercial, porque - na forma da lei 4.726 de 13 de junho de 1965 - compete a esta
Instituição efetuar os assentos relativos aos usos e costumes comerciais, e caso contrário, pelas provas admitidas em Direito.
Regras globais - A estrutura do Direito Comercial baseada no cosmopolitismo,
individualismo, onerosidade, informalismo, fragmentarismo e na solidariedade presumida se adapta ao mundo virtual principalmente
pela sua natureza abrangente, já que desde o surgimento do direito comercial os institutos mercantis eram voltados para a
globalização de suas regras.
Segundo Ferreira Borges, os comerciantes constituem um só povo, pois a persecução do lucro é
um fato universal e desconhece fronteiras. Os tratados e convenções, além de leis uniformes, a sociedade anônima multinacional,
fazem do direito comercial um repositório de normas que são comuns a todos, como a Letra de Câmbio, a Nota Promissória e o Cheque,
que não sofrem diferença no tratamento jurídico. Assim como os comerciantes fazem parte do mesmo universo jurídico, este também é o
retrato do internauta, habitante de um mundo sem fronteiras onde o idioma dos computadores é apenas um.
O individualismo se caracteriza no interesse individual na obtenção do lucro, e a liberdade
de contratar ainda é um dos traços marcantes das atividades mercantis, em que pese a intervenção estatal limitando o fato jurídico
com normas e regras.
A onerosidade é inafastável da atividade comercial, pois sem ela o contrato perde a sua
característica mercantil, passando ser um contrato civil simplesmente e essa onerosidade é presumida, querendo traduzir com isso que
o contrato é sempre oneroso quando se trata de negócio comercial, até prova em contrário.
O fragmentarismo é conseqüência da antigüidade do Código Comercial que nos trouxe um sem
números de normas esparsas, além da estrutura internacionalizada da atividade comercial, que necessita de ordens gerais que não
podem ser codificadas, dado ao seu caráter tratadista.
A solidariedade - que apesar de ter no Código Civil, art. 896, a não presunção da
solidariedade -, esta somente poderá ser admitida se houver previsão legal ou vontade das partes. No entanto, como as atividades
mercantis são dinâmicas e ágeis, diferentemente das relações civis, podemos presumir na maioria dos casos que entre os comerciantes
essa presunção de solidariedade é a regra.
Compatível - Nenhuma das bases desta estrutura acima relatada é incompatível com o
uso da Internet, pois as relações comerciais advindas desse espaço nada mais são do que atividades comerciais, que guardam com os
atos de comércio similaridades e objetivos comuns.
Alguns estudiosos do assunto defendem que os contratos eletrônicos, tanto civis como
comerciais, não geram obrigações porque eles não são materializados num meio tangível como o papel, e que necessariamente teriam que
ser mudadas as regras para que eles se tornassem válidos. Ousamos discordar da colocação, principalmente no que diz respeito ao
Direito Comercial, eis que conforme a sua estrutura acima descrita, a informalidade e o caráter cosmopolita são seus traços
marcantes e o diferenciam de outros direitos privados.
Então, se contratos comerciais, são admitidos verbalmente, por telefone, por carta e por
fax, os contratos comerciais eletrônicos deverão da mesma forma serem admitidos com as provas já citadas. Se a questão for a
tangibilidade de um papel, então pela mesma razão o contrato verbal e por telefone também não surtiriam os efeitos legais. O direito
comercial apresenta determinadas características, devido à sua agilidade e ao seu cunho internacional, que as mesmas regras e os
mesmos tratados podem perfeitamente ser usados no comércio eletrônico.
Quanto à questão de segurança, tanto os contratos civis quanto os contratos comerciais de
maior monta deverão se cercar dos meios disponibilizados pela tecnologia, a Criptografia, que irá transformar os dados em fórmulas a
serem decodificadas pelo recebedor.
Informalidade - Isto para os grandes contratos, porque, fazendo uma analogia com o
nosso dia-a-dia, quando vamos a um jornaleiro pedimos o jornal do dia, entregamos a quantia em dinheiro ao comerciante e ele nos
entrega o produto. Acabamos de fazer uma transação comercial, verbal, informal, sem necessidade de nada estar escrito, a não ser por
questões tributárias, se for o caso. O mesmo se dá na Internet, quando compramos um livro em uma livraria virtual: solicitamos o
produto, combinamos forma de pagamento e o livro será entregue em nossa casa sem maiores problemas. Esta informalidade é que dá o
colorido do Direito Comercial, que o torna ágil, dinâmico e sem maiores burocracias.
Estamos até aqui falando desse comércio eletrônico que fazemos a toda hora e que está
disponível nos diversos sites de compras, e que é o varejo da Internet. À toda evidência que para transações comerciais de maior
porte, em que a prova deve ser robusta devido aos riscos maiores do negócio, o acordo deve ter a devida Certificação Digital de
assinatura para ter eficácia e validade de plano. No entanto isto não representa que o contrato não surta os efeitos obrigacionais
ou que as partes possam deixar de cumprir o acordo.
Carnellutti, em sua magistral obra de Direito Civil, nos diz que documento é o registro do
fato, não discernindo neste conceito em que suporte este registro é feito, isto é, se material ou qualquer outro repositório e por
esta razão que o art. 332, do CPC, nos dá esta ferramenta para a prova da existência dos negócios feitos na rede: "todos os meios
legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em
que se funda a ação ou defesa".
Em que pese alguns estudiosos do assunto pensarem de forma contrária, isto é, que o
documento eletrônico assim não pode ser considerado porque não tem a forma exigida em lei, a forma escrita, ousamos discordar porque
se contratos podem ser feitos até mesmo por meio de telefones e oralmente, qual a razão do não reconhecimento da transmissão de
dados não poder ser reconhecido como um registro de um fato?
Se a questão debatida é a segurança, no que estamos de acordo, é evidente que a nova
realidade está a impor meios seguros para o reconhecimento desses registros, mas ultrapassada esta barreira não vemos empecilho para
a sua validade, e sem que seja preciso o advento de novas leis, já que a aplicabilidade criativa do direito vigente deverá ser
equilibrada com uma intervenção legislativa, que deverá evitar, tanto quanto possível, uma sobre-regulamentação da Internet.
Devido à sua mobilidade constante e o seu dinamismo, é preciso deixar aberto um espaço
suficiente para a liberdade de auto regulamentação e auto disciplina dos conflitos nesta área, e que poderá ser a melhor saída para
muitos dos seus problemas.
Boa fé - Uma questão interessante é quanto ao Informalismo, uma das características
do Direito Comercial que vem sempre revestida da boa fé e a sua relação com a aplicabilidade da Teoria da Aparência nas empresas
on line, pois quando o internauta clica em seu mouse e direciona a sua ação para um endereço comercial da Web, abre-se
para ele uma página colorida, verdadeiro painel publicitário com apelos promocionais e aplicações de tecnologia avançada de forte
impacto visual.
Esta aparência leva o usuário a imaginar uma forte empresa por trás de todas aquelas cores e
usando de boa fé é levado a aceitar a proposta ali inserida, certo de que está fazendo um bom negócio.
Uma situação fática que representa uma situação jurídica verdadeira, sendo que o direito nos
trouxe a Teoria da Aparência a fim de proteger o bem jurídico tutelado de quem de boa fé foi iludido por aquele conjunto de cores,
sons e técnicas expostas na home page.
Aparência e o Direito - A
aparência, para o nosso direito está acima da própria realidade e confere os mesmo vínculos de responsabilidade aos contratantes e,
mesmo parecendo incoerente que o direito dê ênfase à aparência em detrimento da realidade, esta é a tendência do Direito Moderno
hoje abraçada pelo Código do Consumidor. Tutelar a boa fé de terceiros envolvidos em uma situação aparentemente jurídica é a
explicação doutrinária para reconhecer a eficácia dos negócios e a responsabilidade civil de quem induz o outro de boa fé a erro.
Existe hoje em nosso ordenamento jurídico uma legislação específica para os casos de
propaganda enganosa no Código do Consumidor, nos casos de venda de produtos ou de serviços que mostram uma aparência diversa da
realidade daqueles realmente existentes. No entanto, para outras situações, temos que nos socorrer das várias disposições
particulares do Código Civil e que por analogia podem ser estendidas às situações semelhantes, inclusive aquelas ocorridas no
ambiente virtual.
Somente para ilustrar, citamos os art. 1.600 do Código Civil, que acolheu a Teoria da
Aparência. Outros dispositivos, como, por exemplo, os arts. 1.318, 221 e 935, igualmente nos indicam o mesmo caminho, e como admite
o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, nada impede o uso da analogia na matéria.
Representação - Problema que tem afligido os que pretendem negociar na rede,
principalmente no que se refere a grandes somas envolvidas, é saber se do outro lado do monitor está uma pessoa com poderes de
concretizar o negócio e caso contrário, se o negócio é juridicamente válido.
A representação é a atuação de uma pessoa em nome e no interesse de outra com a intenção de
fazer válido este ato, como se estivesse sendo praticado por esta outra pessoa e na pessoa de quem vai recair os seus efeitos. No
entanto, esta representação pode ser igualmente aparente, ou seja capaz de induzir alguém de boa fé a pensar que está concretizando
o negócio e acreditando estar transacionando com a pessoa certa. A representação aparente, facilitada pelo ambiente virtual, cria
uma situação de fato onde uma pessoa se faz passar por outra sem poderes para tal ou delegação do suposto contratante.
Para o internauta, é difícil verificar se quem está falando em nome da empresa é o
verdadeiro representante ou apenas alguém com aparente representação sem poderes para contratar. Aqui , da mesma forma aplica-se a
teoria da representação aparente, pois se alguém puder supor que está negociando com um representante legal que assim se apresente,
deve ser beneficiado com a teoria da aparência, a fim de que se tenha como válido o negócio realizado.
Vemos com isso que, como a comunicação eletrônica dificulta ainda mais a identificação
pessoal do interlocutor, nada mais conveniente do que aplicar o mandamento do art. 75 do Código Comercial, que consagra a
representação ou mandato aparente ao afirmar que "os proponentes são responsáveis pelos atos dos feitores, guarda-livros, caixeiros
e outros quaisquer prepostos, praticados dentro das suas casas de comércio, que forem relativos ao giro comercial das mesmas casas,
ainda que se não achem autorizados por escrito".
Seguindo os ditames do artigo que se encontra em vigor, todos aqueles que se disserem
representantes ou mesmo falarem por toda a empresa, seja virtual ou não, estarão obrigando contratualmente o representado. Se no
ambiente off line discute-se se é preciso a prova da representação, no clima virtual esta dificuldade é de tal monta que, no
nosso entender, basta que os elementos aparentes de um lado e a boa fé do contratante do outro estejam presentes para a validade e
eficácia do acordo.
Como o terceiro, que se encontra fora do ângulo de visão, poderá aferir se está lidando com
um falso diretor, ou falso gerente? A hipótese do recurso de vídeo conferência não derruba esta hipótese porque, da mesma forma,
poderá haver indução a erro, excluindo-se casos de pessoas impossibilitadas de comerciar, tais como crianças e doentes mentais.
Evidentemente, torna-se necessário que o comportamento do falso administrador incite o de terceiros, levando-os à crença de que
estão a tratar com alguém que exerça legitimamente a função.
A negligência do representado, ao deixar que outras pessoas, ao manusearem a máquina,
adentrem nos negócios do seu e-commerce, implica para nós em culpa in vigilando e em conseqüência na sua
responsabilidade civil em responder pelos resultados do negócio articulado na rede.
Surge no entanto a questão da responsabilidade objetiva, onde o representado nem tem
conhecimento de que está sendo objeto de acordos, como pode acontecer num site de e-commerce por onde circulam webmasters,
editores, programadores e outros que poderiam em nome da empresa estar fechando negócios.
Então, outra corrente sustenta que esta responsabilidade surgida da aparência de
representação não tem como pressuposto a culpa do representado, pois neste caso não há que se atribuir à teoria da aparência para
justificar a responsabilidade do representado, uma vez que esta se verifica tão só pela sua culpa.
O argumento mais forte é de que o pseudo representante cria para o usuário de boa fé uma
realidade fática com efeitos jurídicos. Esta crença ilusória, que induz o terceiro de boa-fé em erro, não deve ser usada, porque o
mais importante é a garantia e a segurança das transações comerciais.
Com todo negócio oferece riscos, este é mais um que o comerciante corre, esteja seu negócio
nas ruas ou apenas da rede Internet, pois o que não se pode é deixar que o usuário pague por estes riscos e tenha que suportar o
ônus de um fato para o qual não contribuiu.
Sabemos que é imprescindível uma causa que justifique a confiança de terceiro em relação ao
suposto poder do representante, mas o que poderia ser mais justificável do que um negócio fechado dentro do site, onde apenas
pessoas de estrita confiança podem manusear os computadores da empresa virtual?
Concluindo, vemos que o comércio eletrônico, por se constituir na área de maior interesse do
internauta e mola propulsora dos avanços da rede, tanto nas relações entre empresário-consumidor e empresa-empresa, não existe
qualquer vedação legal para o reconhecimento judicial dos documentos eletrônicos aí produzidos, e, mesmo não havendo forma
específica prescrita em lei, ele é perfeitamente admissível como válido e eficaz para produzir os efeitos visados pelas partes
envolvidas.
(*) Ângela Bittencourt Brasil é membro do Ministério
Público do Rio de Janeiro, professora de Direito Processual Penal e Direito de Informática, licenciada em História e Educação pela
UFF, autora do livro O Ciber Direito e co-autora da obra Direito Eletrônico,
além de ser editora do site Ciberlex e articulista na Web. |