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Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 11/03/01 09:43:48
A gravidez da crise 

Mário Persona (*)
Colaborador

Minha filha pegou a conversa pela metade. Enquanto fingia interesse nos brincos de artesanato, esticava as orelhas para ouvir as artesãs da praça. "Só estou esperando nascer para dar para alguém", dizia uma, escondida atrás de uma gravidez já na prorrogação do tempo regulamentar. "Com dois lá em casa, não quero criar mais nenhum", concluiu sem enrubescer.
Será que a dificuldade cauteriza a sensibilidade? Este é um caso difícil de se julgar. Principalmente por termos só um átomo de conversa roubado de um momento cuja extensão ignoramos. Não sabemos se foi a crise que levou a mulher àquele ponto. E ainda não vimos o desfecho. É no epílogo que costuma estar a resposta para aquilo que consideramos o fim.

Em momentos de crise, perdemos de vista o que ficou para trás, e o interesse pelo que vem depois. Ficamos ocupados demais com o momento e com a gravidade de seu intumescimento. Só vemos o lado negro das coisas, e o quanto ainda teremos de apertar o cinto. Nem sequer nos anima a possibilidade de sobrar material para dois cintos no final.

Reações - Nossa reação natural diante de algum vento econômico mais adverso é economizar. Começamos economizando o trabalho presente, enquanto arquivamos a experiência passada, que nos revelaria ser esta apenas mais uma dentre as crises futuras. Que podem ser benignas e profiláticas se aplicadas diretamente no ego da empresa. O vento que estraga o topete é o mesmo que move moinhos.

Não existe oportunidade se não existir adversidade. Quando tudo vai bem não há progresso real, apenas natural. Alguém já disse que a necessidade é a mãe das invenções. Talvez por dar à luz a criatividade, filha que estimula as glândulas mamárias que sustentam o crescimento.

O problema é que a incerteza nos amedronta, pois não gostamos de hospedar o futuro que bate à porta. É um ilustre desconhecido, mas que nos torna aprendizes motivados à ação. Uma visita oportuna, especialmente se o desânimo estiver em plena campanha pela eleição da nossa inanição.

Enquanto muitas empresas cortam gastos à luz de velas, fui contratado para falar aos funcionários de uma que está investindo na capacitação da equipe. É parte de uma estratégia que incluiu a contratação de duas outras empresas para treinamentos em call-center (N.E.: central de chamadas) e segurança. Enquanto o mercado se posiciona, lubrifica-se a máquina.

Quando o meio-de-campo fica confuso, há quem permaneça alerta e acabe levando a bola. Por isso os momentos de dificuldade também são momentos para reflexão. Para olhar de fora e pensar no que mudar dentro. Não são os maiores, nem os mais fortes, que sobrevivem às crises. Ficam os que correm se adaptar.

Mas mudança dá alergia em quem vive polindo as algemas dos velhos paradigmas. Como aconteceu durante a guerra civil americana, quando os soldados lutaram com as velhas armas de carregar pela boca. Ao invés das já inventadas espingardas de cartucho.

Os oficiais - os CEOs (N.E.: diretores executivos) daquela empreitada bélica - acreditavam que passar de três para quinze tiros por minuto seria um desperdício de munição. Tampouco queriam que seus comandados recarregassem as armas agachados ao abrigo de alguma pedra, como permitiria a nova tecnologia. Recarregar pela boca exigia que ficassem em pé. Visíveis ao comando e controláveis. Mas vulneráveis.

O fim - Com um comando assim, ninguém precisa de inimigos. E com uma resistência ferrenha às mudanças, a empresa nem precisa de crise para sucumbir. O fim vem pelo clima de indiferença dos mais vulneráveis. A indiferença é um veneno que contamina e tira de qualquer um a expectativa de embalar nos braços o fruto de sua gestação.

O que se revelou não ser o caso daquela mãe. Ela estava certíssima ao decidir não criar mais um. Mas minha filha só descobriu isso quando ouviu a conversa até o fim. "Já é a segunda vez que a cadela vai dar cria. O jeito é dar o filhote para outro criar", concluiu a mulher. Para alívio de minha filha, que descobriu que a crise era grave, "pero no mucho".

(*) Mário Persona é consultor, escritor e palestrante. Esta crônica faz parte dos temas apresentados em suas palestras. Edita o boletim eletrônico Crônicas de Negócios e mantém endereço próprio na Web, onde seus textos estão disponíveis.