Tradutor de produtos
Mário Persona (*)
Colaborador
Auditório
lotado. No palco, uma cópia sem bengala do Coronel Sanders, criador
do Kentucky Fried Chicken, gesticulava atomizando saliva no ar. Seu entusiasmo
era tão artificial quanto as verdades incontestáveis geradas
por sua imaginação.
De gravata texana e desgrenhadas cãs,
palavra tão anciã quanto sua idade, derramava ilusões
numa platéia submersa pelo assombro. Da qual minha então
namorada e seu atual enamorado marido fazíamos parte pagante. Éramos
jovens, e nosso gosto pelo inusitado fazia de nós presas fáceis
para palestras do tipo "me iluda que eu gosto".
Show à parte era o magro intérprete,
por detrás das hastes pretas de seus óculos de sapiência.
Desconfiado de que nem tudo o que está em inglês é
verdade, suava intranqüilidade. E ia vertendo para o português
as fichas do arquivo X que o outro trazia no cérebro. Seu pomo-de-adão
subia e descia freneticamente, denunciando tudo o que estava tendo de engolir.
Ou traduzir.
Arte - Tradução
é uma arte. Uma pintura que pinta com outras cores nova cópia
original, para que outros olhos enxerguem a mesma cena. Às vezes
a tradução pega carona numa analogia que a leve ao destino
do original. É preciso criatividade nesta atividade, ou em sua prima
mais nova, a tradução de produtos.
Traduzir um produto é encontrar,
numa baía tranqüila na mente do cliente, uma rocha análoga
onde fixar âncora. Para depois ir puxando a corda bem devagar, até
que o objeto e sua analogia se confundam num texto ou no falar. Não
importa o tamanho do navio, quando bem feita, a atracagem é perfeita.
Usando técnicas adequadas
de texto ou articulação verbal, é possível
traduzir conceitos complexos para uma linguagem acessível até
aos "mais pequenos". Com um poder de atração igual ao da
roupagem das flores, expressão colorida de um complexo sistema reprodutor
que atrai cúmplices dentre as menos libidinosas das abelhas.
Muitas empresas sabem que não
basta criar algo novo, seja um processo interno, marca ou produto. É
necessário certificar-se de que colaboradores e clientes irão
entender a cria. Por isso decifra-se a esfinge para ela não ser
engolida pela indiferença. Nem a oportunidade pela concorrência.
Mas não basta verbalizar um produto. Ele deve encontrar seu par
na compreensão das pessoas.
Endosso - O tradutor precisa
estar convencido de sua vantagem e veracidade, ou arrisca sua reputação
ao endossar um original apócrifo. Pois assina solidário com
o autor e empresta sua reputação à peça. Não
se transmite confiança naquilo em que não se acredita, nem
idoneidade àquilo que não tem. Fazer isto não é
traduzir, é mascarar. Vender geladeira para esquimó como
aquecedor. Uma caixa mágica que mantém o frio preso enquanto
a família é aquecida pelo motor.
Mas transmitir confiança não
era bem o forte daquele palestrante. Cada afirmação sua sobre
o Triângulo das Bermudas pegava o tradutor de calças curtas.
Que borrava a própria reputação, ao fazer suas as
palavras do original texano. Mesmo assim continuava traduzindo gestos e
frases.
"I believe..." começava o
preletor indicando o próprio peito, antes de cada afirmação
duvidosa sobre mistérios submersos em um triângulo que já
parecia ter mais de três lados. "Eu acredito..." papagaiava o intérprete,
igualando o gesto apontado para si. "I believe..." continuava o americano
com a maior "wooden face" (N.E.: cara de pau...). "Eu acredito..." traduzia
o outro em voz minguante.
Continuaram assim até o insólito
chegar às raias do absurdo. Quando o "I believe..." do gringo veio
seguido de uma afirmação que faria Pinóquio corar,
o intérprete parou. Era agora ou nunca. A redenção
de sua reputação. Após dois átomos de silêncio,
sorriu um sorriso sarcástico e travesso e, desviando do próprio
peito, apontou o dedo duro contra o palestrante e traduziu: "ELE acredita..."
(*) Mário
Persona é consultor, escritor e palestrante. Esta crônica
faz parte dos temas apresentados em suas palestras. Edita o boletim eletrônico
Crônicas
de Negócios e mantém endereço
próprio na Web, onde seus textos estão disponíveis. |