Almas gêmeas
Mário Persona (*)
Colaborador
A sala estava
imersa em um silêncio audível. Esparramados em posições
preguiçosamente felinas, todos viajávamos nos livros. Quem
nos visse não veria grande coisa. Um leve sorriso delineado nos
lábios de um, ou um lampejo de preocupação no semblante
de outro. Quiçá uma tímida lágrima ensaiando
molhar um olho. E só.
Ao mais atento observador escaparia
o magnífico cenário projetado nos bastidores daquelas mentes.
O fragor da batalha, o frio na espinha ou o nó na garganta só
eram sentidos por aquele casal e pelos dois adolescentes absortos num transe
profundo. Hipnotizados pelas páginas amareladas dos ensebados volumes
de Júlio Verne emprestados da Biblioteca Municipal.
A fase Júlio Verne sucedia
aquela dos esgotados livros de aventuras juvenis da biblioteca da escola,
nenhum deixado incólume por olhos vorazes. E precedia outras ainda
melhores. Cada livro libertado do pó das prateleiras era lido por
pelo menos dois membros da família. Assim garantia-se quorum
para as discussões no jantar. "Você viu aquela cena em que
o balão cai?".
É claro que todos viram. Mas,
ao contrário da TV, cada um viu um balão diferente, um personagem
distinto e uma paisagem singular. Pois nunca são idênticas
as impressões digitais de um mesmo livro na mente de diferentes
leitores.
Redescoberta - Quando lemos,
estimulamos sentimentos, experiências e recordações
que jazem armazenados em nosso cérebro. E acrescentamos algo a elas.
É por isso que descobrimos coisas novas na releitura de livros velhos.
Engraçado! Não estavam ali na leitura anterior?
Estavam. O que não estava
era a cara-metade que, de boa-fé, daria as boas-vindas à
recém-chegada informação. Como palavras amarradas
por hífen, cada idéia que entra na mente precisa encontrar
uma alma gêmea à sua espera. Para saírem de mãos
dadas rumo a novas descobertas.
Invenções são
assim. Na cabeça de Gutenberg, a prensa de fabricar vinho encontrou
o sinete dos nobres para lacrar documentos, inspirado na antiga cunhagem
de moedas, e deu à luz a imprensa. Se a inspiração
veio por falta de moedas ou excesso de vinho, não sei dizer. Mas
é certo que foi ele quem inventou o tipo móvel chumbado.
Boa parte da derrocada das idéias
para a Internet ocorre por falta de um par na cabeça dos usuários.
Outras novidades logo se sentem em casa, como o e-mail, versão
rápida da boa e velha carta. Ou o bate-papo ao telefone, sucedido
por "Chat", seu gêmeo anglo-saxão.
Boas idéias e bons negócios
precisam encontrar um eco perceptível na mente dos clientes. Por
esta razão e-books para download são oferecidos
sob a foto de uma capa que nunca existiu. Tenta-se buscar na intangível
mente do cliente uma imagem tangível para um produto etéreo.
Pois é nos bastidores da mente do cliente que está o sucesso
latente.
Telefone musical - Muitas
idéias morrem prematuras por nascimento, e só ressuscitam
anos depois. É o caso da música on-line. Não
começou na Internet. Em uma carta enviada a um cliente, Thomas Edison
parece referir-se ao sistema, ao escrever: "Irá demorar um pouco
até eu ter um telefone para conversação para ser vendido
na Europa, mas se quiser um telefone musical, tenho para pronta entrega".
Thomas Edison chegara cedo demais.
Eu e minha família também, quando decidimos ir à Bienal
Internacional do Livro, em São Paulo. Como bons caipiras, a viagem
à capital foi programada com antecedência, os detalhes repassados,
as listas de títulos a comprar discutidas.
E na hora da partida, ninguém
se esqueceu dos agasalhos ou da garrafa de água. A partida foi dada
com a célebre frase: "Todos já foram ao banheiro?". Só
erramos a data. E desembarcamos, surpresos, diante do pavilhão de
uma Bienal que só aconteceria seis meses depois.
(*) Mário
Persona é diretor de comunicação da Widesoft,
que desenvolve sistemas para facilitar a gestão da cadeia de suprimentos
via Internet, editor da Widebiz
Week e moderador da lista de debates
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