"APAGÃO"
Letras miúdas nos contratos
de energia
Esta
mensagem encaminhou a uma lista de debates sobre negócios, a Widebiz,
um artigo da Oficina de Informações
que mostra detalhes importantes sobre como está sendo gerenciada
pelo governo a questão energética nacional:
Assunto: [widebiz]
Crise de Energia: Oficina de Informações
Data: Tue, 12 Jun 2001 11:56:16 -0300
De: Luiz Ojima Sakuda <luiz@*****.***>
O pessoal da
Oficina de Informações sempre tem uma opinião interessante...
Às vezes eu concordo, outras não, mas acho que sempre vale
a pena dar uma olhada em posições "contra a corrente", que
focam aspectos diferentes da grande mídia.
PONTO DE VISTA Terça-feira,
12 de junho de 2001
A crise de energia: as cláusulas
dos acordos que favorecem as distribuidoras – geralmente privadas e estrangeiras
– e prejudicam as geradoras – geralmente nacionais e do Estado
AS LETRAS MIÚDAS DO VERSO
DOS CONTRATOS
Oficina de Informações
- www.oficinainforma.com.br
A Corretora Sudameris estima que
as distribuidoras e geradoras de energia elétrica do país
terão um prejuízo expressivo neste ano, com o corte de 20%
no consumo, previsto pelo plano federal de racionamento. Isso implicaria,
por exemplo para uma grande distribuidora como a Eletropaulo, recentemente
privatizada, numa perda de faturamento de 600 milhões de reais –
dos 5,2 bilhões de vendas sem o corte, para 4,6 bilhões de
vendas com o corte. Diz a corretora que as perspectivas para o futuro próximo
não são melhores e que o racionamento pode persistir no ano
que vem, não sendo absurdo esperar que o corte de energia seja ampliado
nos próximos meses.
Tal situação poderia
ser considerada normal, a longo prazo. Afinal, o sistema capitalista implica
em risco e as grandes empresas como a AES, a gigante americana do setor
elétrico global que é dona da Eletropaulo, deve fazer investimentos
sujeitando-se a encarar os anos das vacas magras eventuais.
Poderia ser assim, mas não
é. Nos últimos dias, os jornais noticiaram, sem o devido
destaque, que o governo teria descoberto – só agora, vejam só
... – que os contratos entre as distribuidoras e as geradoras de energia
são de tal forma que as distribuidoras têm praticamente seu
lucro garantido em situações de crise como a atual, graças
a alguns artigos providenciais de um "anexo 5" que existe na maioria deles.
Os americanos costumam dizer que,
ao assinar os contratos, a parte mais fraca deveria sempre estar atenta
às "small printed letters in the back of the papers", às
letrinhas miúdas que ficam no verso dos contratos e através
das quais os grandes, que geralmente impõem às cláusulas,
garantem que ficam com a parte do leão. Os tais anexos dos contratos
foram firmados, de um modo geral, entre grandes distribuidoras - que estão
70% nas mãos do capital privado e são em grande parte estrangeiras
-, e as geradoras, que são 70% estatais. E parecem ser desse tipo.
Os contratos estabelecem que o fornecimento
de energia pelas geradoras deve ser estável e que seu preço
tenha regras definidas a longo prazo, em geral por 30 anos. O "anexo 5"
trata das situações de instabilidade, dos casos de "redução
de energia contratada em situação hidrológica crítica",
exatamente como o atual.
Nessas condições de
crise, tanto o fornecimento quanto o preço podem ser alterados.
Para um corte no fornecimento de 20%, como o de agora, se prevê que
a geradora de energia possa reduzir seu fornecimento em 15%, mas que pague
os outros 5% que deveria estar fornecendo aos preços de mercado,
no caso o chamado MAE - "Mercado Atacadista de Energia". Que preço
é esse e quem é o MAE?
O MAE é uma das peças
essenciais do modelo imaginado pelos governos neoliberais para o desenvolvimento
do setor elétrico. O modelo antigo é o das empresas estatais
verticalizadas - de geração, transmissão e distribuição
- integradas numa rede nacional, com preços e investimentos regulados.
No modelo neoliberal, essas empresas são divididas e privatizadas
e junto com os consumidores se relacionariam através da rede elétrica
nos termos de um mercado livre de compra e venda de energia. Quem quer
comprar acerta-se com quem quer vender, através do preço
- que reflete, em última instância, a escassez do produto.
No Brasil o MAE foi previsto na legislação
liberalizadora do setor elétrico que o governo Fernando Henrique
aprovou no Congresso Nacional em 1995. Com essa legislação
se liberou a licitação de novos projetos, foi criada a figura
do Produtor Independente de Energia e se estabeleceu tanto o livre acesso
de fornecedores e consumidores aos sistemas de transmissão e distribuição,
como a liberdade de os consumidores escolherem seus fornecedores de energia.
Em 1996 foi criada a Aneel – Agência Nacional de Energia Elétrica,
para fiscalizar e regular esse mercado que se pretendia competitivo e capaz
de alocar recursos no setor.
Em 1998, no seu segundo governo,
Fernando Henrique deu o que imaginava ser o passo final para a criação
das bases do grande mercado livre de energia do país. Já
tinha vendido as poucas distribuidoras independentes federais e forçara
os Estados a privatizarem as suas. Determinou então que todas as
grandes companhias integradas de energia do país – tanto as federais,
como Furnas, Eletronorte, Chesf, como as estaduais de Minas (Cemig), São
Paulo (Cesp), Rio Grande do Sul (CEEE) e Paraná (Copel) – fossem
desmembradas nos seus setores de geração, transmissão
e distribuição, com vistas a serem privatizadas. E aí
criou o MAE.
O MAE funcionou experimentalmente
entre junho de 1999 e agosto do ano passado e, para valer, de setembro
de 2000 para cá. A sua folha de serviços, no entanto, é
um desastre. Na fase experimental, controlada por um Comitê Executivo
(Coex) formado pelas empresas privadas e dirigido pelo presidente do grupo
da Eletricidade de Portugal no Brasil – Eduardo Bernini -, o MAE contabilizou
que Furnas deveria pagar a diversas distribuidoras um pouco mais que meio
bilhão de reais por não ter entregue no tempo previsto a
energia de Angra 2. O debate dessa dívida se arrasta até
agora e a estatal jamais aceitou a responsabilidade pelo atraso da usina
nuclear, cuja operação foi retardada por atraso na liberação
da licença ambiental e que, alem disso, tinha sido desmembrada de
Furnas e incorporada à Eletronuclear.
O MAE tem uma equipe de 110 pessoas.
Algumas com salários de 11 mil reais, como Roseana Santos -- filha
de Mário Santos, presidente do ONS – Operador Nacional do Sistema
Elétrico, outra das invenções da liberação
do setor – ou de 9 mil reais, como Patrícia Arce – filha do secretário
de Energia de São Paulo, Mauro Arce. Em oito meses, no entanto,
o MAE não realizou nenhuma negociação completa de
compra e venda. Em fins de abril, a Aneel interveio na sua cúpula.
Desmantelou o Coex onde estavam representadas em princípio 26 empresas
e o substituiu por um Conselho formado por seis membros votantes – dois
da Aneel, dois dos consumidores, e dois das empresas. Alegou que o Coex
estava ligado a interesses particulares das empresas e não representava
o verdadeiro mercado. Só a AES, por exemplo, através da Eletropaulo
e mais três outras empresas controladas por ela, tinha 4 votos.
A grande realização
do MAE, no entanto, foram seus inúmeros e complicados cálculos
sobre o preço que a energia deveria ter no "mercado livre" para
refletir a sua escassez. E é esse preço que as geradoras
estatais deverão pagar às distribuidoras pelos 5% de energia
a que terão direito nos termos dos anexos 5 dos contratos. Hoje,
enquanto o preço da energia nos contratos de longo prazo está
em torno de 50 reais o megawatt-hora, o preço calculado pelo MAE
para o suposto mercado livre é mais de dez vezes maior: de 684 reais
o megawatt hora. Nesses preços, se estima que a multa a ser paga
pelas geradoras às distribuidoras pelo racionamento será
de 5 bilhões de dólares. Ou seja, se os contratos forem cumpridos,
as geradoras de eletricidade estatais quebram.
Nesta última quinta-feira,
o secretário Mauro Arce, que é uma das figuras chaves da
Câmara de Gestão da Crise de Energia, disse que a questão
dos
anexos-5 dos contratos era complexa
e que, por falta de um acordo entre geradoras e distribuidoras, o assunto
tinha sido levado para exame do Advogado Geral da União. Arce diz
que uma solução sairá antes do fim do mês.
Pelas ponderações que
faz, no entanto, o secretário paulista parece ter tomado a defesa
das distribuidoras. Ele diz que a decisão deve respeitar quatro
pontos: 1 – manter e desenvolver o MAE; 2) evitar o que aconteceu na Califórnia,
onde as distribuidoras estão à beira da falência; 3)
garantir que se mantenha a geração livre de energia (que
é estimulada pela alta de preços); e 4) fazer o possível
para tudo seja suportável pelo consumidor.
É de fato curioso "o mercado
livre" de energia de nossos neoliberais. Tudo é livre e tudo pode
variar espetacularmente. Os preços podem subir. A energia pode ser
cortada e o fornecimento regular interrompido. No caso do preço
e do fornecimento para as grandes companhias distribuidoras, em geral
estrangeiras, no entanto, tudo está garantido pelas letras miúdas
dos contratos. |