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Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 06/13/01 01:11:38
"APAGÃO"
Letras miúdas nos contratos de energia 

Esta mensagem encaminhou a uma lista de debates sobre negócios, a Widebiz,  um artigo da Oficina de Informações que mostra detalhes importantes sobre como está sendo gerenciada pelo governo a questão energética nacional:

Assunto: [widebiz] Crise de Energia: Oficina de Informações
    Data: Tue, 12 Jun 2001 11:56:16 -0300
      De:  Luiz Ojima Sakuda <luiz@*****.***>

O pessoal da Oficina de Informações sempre tem uma opinião interessante... Às vezes eu concordo, outras não, mas acho que sempre vale a pena dar uma olhada em posições "contra a corrente", que focam aspectos diferentes da grande mídia.

PONTO DE VISTA Terça-feira, 12 de junho de 2001
A crise de energia: as cláusulas dos acordos que favorecem as distribuidoras – geralmente privadas e estrangeiras – e prejudicam as geradoras – geralmente nacionais e do Estado

AS LETRAS MIÚDAS DO VERSO DOS CONTRATOS
Oficina de Informações - www.oficinainforma.com.br

A Corretora Sudameris estima que as distribuidoras e geradoras de energia elétrica do país terão um prejuízo expressivo neste ano, com o corte de 20% no consumo, previsto pelo plano federal de racionamento. Isso implicaria, por exemplo para uma grande distribuidora como a Eletropaulo, recentemente privatizada, numa perda de faturamento de 600 milhões de reais – dos 5,2 bilhões de vendas sem o corte, para 4,6 bilhões de vendas com o corte. Diz a corretora que as perspectivas para o futuro próximo não são melhores e que o racionamento pode persistir no ano que vem, não sendo absurdo esperar que o corte de energia seja ampliado nos próximos meses.

Tal situação poderia ser considerada normal, a longo prazo. Afinal, o sistema capitalista implica em risco e as grandes empresas como a AES, a gigante americana do setor elétrico global que é dona da Eletropaulo, deve fazer investimentos sujeitando-se a encarar os anos das vacas magras eventuais.

Poderia ser assim, mas não é. Nos últimos dias, os jornais noticiaram, sem o devido destaque, que o governo teria descoberto – só agora, vejam só ... – que os contratos entre as distribuidoras e as geradoras de energia são de tal forma que as distribuidoras têm praticamente seu lucro garantido em situações de crise como a atual, graças a alguns artigos providenciais de um "anexo 5" que existe na maioria deles.

Os americanos costumam dizer que, ao assinar os contratos, a parte mais fraca deveria sempre estar atenta às "small printed letters in the back of the papers", às letrinhas miúdas que ficam no verso dos contratos e através das quais os grandes, que geralmente impõem às cláusulas, garantem que ficam com a parte do leão. Os tais anexos dos contratos foram firmados, de um modo geral, entre grandes distribuidoras - que estão 70% nas mãos do capital privado e são em grande parte estrangeiras -, e as geradoras, que são 70% estatais. E parecem ser desse tipo.

Os contratos estabelecem que o fornecimento de energia pelas geradoras deve ser estável e que seu preço tenha regras definidas a longo prazo, em geral por 30 anos. O "anexo 5" trata das situações de instabilidade, dos casos de "redução de energia contratada em situação hidrológica crítica", exatamente como o atual.

Nessas condições de crise, tanto o fornecimento quanto o preço podem ser alterados. Para um corte no fornecimento de 20%, como o de agora, se prevê que a geradora de energia possa reduzir seu fornecimento em 15%, mas que pague os outros 5% que deveria estar fornecendo aos preços de mercado, no caso o chamado MAE - "Mercado Atacadista de Energia". Que preço é esse e quem é o MAE?

O MAE é uma das peças essenciais do modelo imaginado pelos governos neoliberais para o desenvolvimento do setor elétrico. O modelo antigo é o das empresas estatais verticalizadas - de geração, transmissão e distribuição - integradas numa rede nacional, com preços e investimentos regulados. No modelo neoliberal, essas empresas são divididas e privatizadas e junto com os consumidores se relacionariam através da rede elétrica nos termos de um mercado livre de compra e venda de energia. Quem quer comprar acerta-se com quem quer vender, através do preço - que reflete, em última instância, a escassez do produto.

No Brasil o MAE foi previsto na legislação liberalizadora do setor elétrico que o governo Fernando Henrique aprovou no Congresso Nacional em 1995. Com essa legislação se liberou a licitação de novos projetos, foi criada a figura do Produtor Independente de Energia e se estabeleceu tanto o livre acesso de fornecedores e consumidores aos sistemas de transmissão e distribuição, como a liberdade de os consumidores escolherem seus fornecedores de energia. Em 1996 foi criada a Aneel – Agência Nacional de Energia Elétrica, para fiscalizar e regular esse mercado que se pretendia competitivo e capaz de alocar recursos no setor.

Em 1998, no seu segundo governo, Fernando Henrique deu o que imaginava ser o passo final para a criação das bases do grande mercado livre de energia do país. Já tinha vendido as poucas distribuidoras independentes federais e forçara os Estados a privatizarem as suas. Determinou então que todas as grandes companhias integradas de energia do país – tanto as federais, como Furnas, Eletronorte, Chesf, como as estaduais de Minas (Cemig), São Paulo (Cesp), Rio Grande do Sul (CEEE) e Paraná (Copel) – fossem desmembradas nos seus setores de geração, transmissão e distribuição, com vistas a serem privatizadas. E aí criou o MAE.

O MAE funcionou experimentalmente entre junho de 1999 e agosto do ano passado e, para valer, de setembro de 2000 para cá. A sua folha de serviços, no entanto, é um desastre. Na fase experimental, controlada por um Comitê Executivo (Coex) formado pelas empresas privadas e dirigido pelo presidente do grupo da Eletricidade de Portugal no Brasil – Eduardo Bernini -, o MAE contabilizou que Furnas deveria pagar a diversas distribuidoras um pouco mais que meio bilhão de reais por não ter entregue no tempo previsto a energia de Angra 2. O debate dessa dívida se arrasta até agora e a estatal jamais aceitou a responsabilidade pelo atraso da usina nuclear, cuja operação foi retardada por atraso na liberação da licença ambiental e que, alem disso, tinha sido desmembrada de Furnas e incorporada à Eletronuclear.

O MAE tem uma equipe de 110 pessoas. Algumas com salários de 11 mil reais, como Roseana Santos -- filha de Mário Santos, presidente do ONS – Operador Nacional do Sistema Elétrico, outra das invenções da liberação do setor – ou de 9 mil reais, como Patrícia Arce – filha do secretário de Energia de São Paulo, Mauro Arce. Em oito meses, no entanto, o MAE não realizou nenhuma negociação completa de compra e venda. Em fins de abril, a Aneel interveio na sua cúpula. Desmantelou o Coex onde estavam representadas em princípio 26 empresas e o substituiu por um Conselho formado por seis membros votantes – dois da Aneel, dois dos consumidores, e dois das empresas. Alegou que o Coex estava ligado a interesses particulares das empresas e não representava o verdadeiro mercado. Só a AES, por exemplo, através da Eletropaulo e mais três outras empresas controladas por ela, tinha 4 votos.

A grande realização do MAE, no entanto, foram seus inúmeros e complicados cálculos sobre o preço que a energia deveria ter no "mercado livre" para refletir a sua escassez. E é esse preço que as geradoras estatais deverão pagar às distribuidoras pelos 5% de energia a que terão direito nos termos dos anexos 5 dos contratos. Hoje, enquanto o preço da energia nos contratos de longo prazo está em torno de 50 reais o megawatt-hora, o preço calculado pelo MAE para o suposto mercado livre é mais de dez vezes maior: de 684 reais o megawatt hora. Nesses preços, se estima que a multa a ser paga pelas geradoras às distribuidoras pelo racionamento será de 5 bilhões de dólares. Ou seja, se os contratos forem cumpridos, as geradoras de eletricidade estatais quebram.

Nesta última quinta-feira, o secretário Mauro Arce, que é uma das figuras chaves da Câmara de Gestão da Crise de Energia, disse que a questão dos 
anexos-5 dos contratos era complexa e que, por falta de um acordo entre geradoras e distribuidoras, o assunto tinha sido levado para exame do Advogado Geral da União. Arce diz que uma solução sairá antes do fim do mês.

Pelas ponderações que faz, no entanto, o secretário paulista parece ter tomado a defesa das distribuidoras. Ele diz que a decisão deve respeitar quatro pontos: 1 – manter e desenvolver o MAE; 2) evitar o que aconteceu na Califórnia, onde as distribuidoras estão à beira da falência; 3) garantir que se mantenha a geração livre de energia (que é estimulada pela alta de preços); e 4) fazer o possível para tudo seja suportável pelo consumidor.

É de fato curioso "o mercado livre" de energia de nossos neoliberais. Tudo é livre e tudo pode variar espetacularmente. Os preços podem subir. A energia pode ser cortada e o fornecimento regular interrompido. No caso do preço e do fornecimento para as grandes companhias distribuidoras, em geral  estrangeiras, no entanto, tudo está garantido pelas letras miúdas dos contratos.