Por quem os sinos dobram?
Mário Persona (*)
Colaborador
John Donne,
poeta e escritor inglês, viveu entre 1572 e 1631. Dentre suas obras,
creio que nenhuma seja mais conhecida que a "Meditação XVII",
escrita em 1624. E desta, uma porção no final do texto: "Não
perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por Ti". Como ler meus
artigos também é cultura, acrescento que a frase já
serviu de título para um romance escrito em 1939 por Ernest Hemingway
sobre a guerra civil espanhola, e um filme com a mesma história,
estrelado por Gary Cooper e Ingrid Bergman.
Os sinos tinham um papel importante
na sociedade em que John Donne viveu. Eram eles que anunciavam os eventos
importantes da comunidade. Notícias de paz e guerra, de alegria
e dor, de vitórias e derrotas. Tocavam proclamando a vida e a morte
de uma pessoa. Em badaladas que denunciavam o número dos anos de
sua vida. Um relógio e calendário de vivos e mortos.
Em nossa sociedade tecnológica,
poluída por badalos multimídia, há muito que os sinos
perderam o seu papel original de arautos da comunidade. O rádio,
a TV, o telefone e a Internet informam muito além de onde as ondas
sonoras podem alcançar. E o relógio, mais leve, barato e
preciso que os antigos mecanismos de bronze, é hoje algema acessível
a qualquer habitante do planeta. Mas, mesmo assim, os sinos ainda podem
ser ouvidos em alguns lugares do mundo.
E um desses lugares fica justamente
perto de casa. Uma alta torre de concreto recém construída,
coroada por um mecanismo que aciona um conjunto de sinos de vários
tamanhos, ajuda a acordar a população pontualmente às
seis horas da manhã, seja sábado, domingo ou feriado. Mesmo
aqueles que não querem ser acordados.
Em uma situação assim,
acredito que mesmo que os fiéis venham a reclamar em alto e bom
som, a única forma de se justificar o investimento seja continuar
tocando o sino. Porque, se parar, outros podem exigir explicações.
Se fosse um empreendimento normal, uma vez amortizado o investimento, o
sistema poderia ser desativado sem maiores explicações. Mas
nem faço idéia de como alguém calcularia a amortização
de um investimento em sinos.
Tive um problema semelhante com o
relógio cuco que comprei nos Estados Unidos por cem dólares.
Se o tic-tac embalava as sestas das tardes de domingo, minha alegria nunca
durava mais do que uma hora. Lá vinha o passarinho me lembrar de
que há torturas pelas quais pagamos caro. Precisamente cem dólares.
Hoje o cuco permanece silente, recolhido ao seu lar de pêndulo estático.
Menos relógio, e mais ornamental. E eu durmo mais sossegado.
Analogia - Sem ter problemas
com sinos ou cucos, há muitas empresas amarrando o pescoço
na corda do campanário quando vacilam em adotar novas tecnologias.
E o fazem pelo mesmo motivo que me fez perder o sono por tanto tempo: encontrar
uma forma de justificar o investimento feito em velhas tecnologias. Não
foram poucas as empresas que investiram pesado em sistemas de EDI (Electronic
Data Interchange) e não querem transformar em sucata algo que nem
acabaram de pagar.
Isto é ótimo. Pelo
menos para os novos competidores, que não precisam dar um carrilhão
de explicações a seus investidores da razão de terem
adotado sistemas arcaicos. Não que o EDI esteja acabado. Vida longa
ao rei. Mas em muitos casos até a monarquia pode ser substituída,
com vantagens, por sistemas que, embora nobres, sejam menos elitistas,
mais versáteis e econômicos. Além de acessíveis
a qualquer plebeu, por rodarem em plataforma Web.
O problema de se arranjar justificativas
para os investimentos aconteceu na transição dos mainframes
para os micros pessoais e levou muita gente a acordar tarde. Não
apenas para usuários, mas também para fabricantes como a
IBM. Foi sua inércia que abriu a brecha que uma Apple de garagem
precisava para abalar um mercado tido como hermético. E está
sendo a inércia de muitas empresas, penduradas em investimentos
saudosistas, que está abrindo novas oportunidades de negócios
para quem é mais ágil.
O que não deixa de ser benéfico
para o mercado. A brecha necessária para minar o alicerce das velhas
torres de cartéis e monopólios. E aposentar de vez sistemas
e empresários igualmente ineficientes. Para os que persistem em
badalar suas próprias decisões, tomadas na idade média
da tecnologia da informação, permanecerá retinindo
na memória a advertência de John Donne: "Não perguntes
por quem os sinos dobram; eles dobram por Ti".
(*) Mário
Persona é diretor de comunicação da Widesoft,
que desenvolve sistemas para facilitar a gestão da cadeia de suprimentos
via Internet, editor da Widebiz
Week e moderador da lista de debates
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