Clique aqui para voltar à página inicial  http://www.novomilenio.inf.br/ano00/0008b001.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 08/10/00 20:09:28
Por quem os sinos dobram? 

Mário Persona (*)
Colaborador

John Donne, poeta e escritor inglês, viveu entre 1572 e 1631. Dentre suas obras, creio que nenhuma seja mais conhecida que a "Meditação XVII", escrita em 1624. E desta, uma porção no final do texto: "Não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por Ti". Como ler meus artigos também é cultura, acrescento que a frase já serviu de título para um romance escrito em 1939 por Ernest Hemingway sobre a guerra civil espanhola, e um filme com a mesma história, estrelado por Gary Cooper e Ingrid Bergman.
Os sinos tinham um papel importante na sociedade em que John Donne viveu. Eram eles que anunciavam os eventos importantes da comunidade. Notícias de paz e guerra, de alegria e dor, de vitórias e derrotas. Tocavam proclamando a vida e a morte de uma pessoa. Em badaladas que denunciavam o número dos anos de sua vida. Um relógio e calendário de vivos e mortos.

Em nossa sociedade tecnológica, poluída por badalos multimídia, há muito que os sinos perderam o seu papel original de arautos da comunidade. O rádio, a TV, o telefone e a Internet informam muito além de onde as ondas sonoras podem alcançar. E o relógio, mais leve, barato e preciso que os antigos mecanismos de bronze, é hoje algema acessível a qualquer habitante do planeta. Mas, mesmo assim, os sinos ainda podem ser ouvidos em alguns lugares do mundo.

E um desses lugares fica justamente perto de casa. Uma alta torre de concreto recém construída, coroada por um mecanismo que aciona um conjunto de sinos de vários tamanhos, ajuda a acordar a população pontualmente às seis horas da manhã, seja sábado, domingo ou feriado. Mesmo aqueles que não querem ser acordados.

Em uma situação assim, acredito que mesmo que os fiéis venham a reclamar em alto e bom som, a única forma de se justificar o investimento seja continuar tocando o sino. Porque, se parar, outros podem exigir explicações. Se fosse um empreendimento normal, uma vez amortizado o investimento, o sistema poderia ser desativado sem maiores explicações. Mas nem faço idéia de como alguém calcularia a amortização de um investimento em sinos.

Tive um problema semelhante com o relógio cuco que comprei nos Estados Unidos por cem dólares. Se o tic-tac embalava as sestas das tardes de domingo, minha alegria nunca durava mais do que uma hora. Lá vinha o passarinho me lembrar de que há torturas pelas quais pagamos caro. Precisamente cem dólares. Hoje o cuco permanece silente, recolhido ao seu lar de pêndulo estático. Menos relógio, e mais ornamental. E eu durmo mais sossegado.

Analogia - Sem ter problemas com sinos ou cucos, há muitas empresas amarrando o pescoço na corda do campanário quando vacilam em adotar novas tecnologias. E o fazem pelo mesmo motivo que me fez perder o sono por tanto tempo: encontrar uma forma de justificar o investimento feito em velhas tecnologias. Não foram poucas as empresas que investiram pesado em sistemas de EDI (Electronic Data Interchange) e não querem transformar em sucata algo que nem acabaram de pagar.

Isto é ótimo. Pelo menos para os novos competidores, que não precisam dar um carrilhão de explicações a seus investidores da razão de terem adotado sistemas arcaicos. Não que o EDI esteja acabado. Vida longa ao rei. Mas em muitos casos até a monarquia pode ser substituída, com vantagens, por sistemas que, embora nobres, sejam menos elitistas, mais versáteis e econômicos. Além de acessíveis a qualquer plebeu, por rodarem em plataforma Web.

O problema de se arranjar justificativas para os investimentos aconteceu na transição dos mainframes para os micros pessoais e levou muita gente a acordar tarde. Não apenas para usuários, mas também para fabricantes como a IBM. Foi sua inércia que abriu a brecha que uma Apple de garagem precisava para abalar um mercado tido como hermético. E está sendo a inércia de muitas empresas, penduradas em investimentos saudosistas, que está abrindo novas oportunidades de negócios para quem é mais ágil.

O que não deixa de ser benéfico para o mercado. A brecha necessária para minar o alicerce das velhas torres de cartéis e monopólios. E aposentar de vez sistemas e empresários igualmente ineficientes. Para os que persistem em badalar suas próprias decisões, tomadas na idade média da tecnologia da informação, permanecerá retinindo na memória a advertência de John Donne: "Não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por Ti".

(*) Mário Persona é diretor de comunicação da Widesoft, que desenvolve sistemas para facilitar a gestão da cadeia de suprimentos via Internet, editor da Widebiz Week e moderador da lista de debates Widebiz.