Os Sem-Internet
Mário Persona (*)
Colaborador
O relatório
da ONU apontava um abismo tecnológico separando a América
do Norte, Europa e Japão do resto do mundo. Apenas 276 milhões
de pessoas - ou menos de 5% da população mundial - estariam
usando a Internet.
Bom ou ruim? Excelente! Péssimo!
Mais de 95% da população é Sem-Internet. Não
podem nem invadir sites alheios. Mas, estatísticas por estatísticas,
eu diria que 99% das casas da Sibéria não têm ar condicionado
e um número igual de lares africanos padece com a falta de aquecimento
central. E daí? Daí que 100% das estatísticas precisam
andar de mãos dadas com outras informações para fazer
sentido.
No caso da Internet - ao alcance
de menos de 5% da população mundial - é preciso esclarecer
que ter acesso a algo, e receber os benefícios disso, são
coisas diferentes. O estudo limita-se a apontar que só essa magra
fatia do bolo de seres humanos pode clicar em uma tela colorida. E destes,
são poucos os que conseguem mover o mouse sem mover o corpo todo.
Um problema mais de coordenação motora do que de adequação
à sociedade da informação.
Uso indireto - Praticamente
todos os seres humanos são beneficiados pelo uso de navios e aviões,
aos quais jamais tiveram acesso direto. O pão que comem ou o remédio
que tomam viajou neles. O mesmo ocorre com os computadores pessoais, que
pouca gente possui mas cujos benefícios são desfrutados por
milhões. Nem que seja apenas para inventar uma desculpa.
Aconteceu comigo. Aguardando por
alguém na minúscula sala de espera de uma distribuidora de
revistas menor ainda, podia ouvir o dono da empresa atendendo, por telefone,
uma fila assinantes irados. Tinham pago pela assinatura e neca de revista.
"Tivemos um problema com nossos computadores", justificava o homem, passando
o palito de dentes para o outro canto da boca. Na sala, nem uma régua
de cálculos havia.
Parecendo adivinhar que eu não
agüentava mais não ter o que fazer, o homem resolveu sair para
o café. Justo comigo, que detesto deixar um telefone tocar. "O responsável
saiu...", comecei eu. Tirei o fone da orelha para evitar o cuspe de um
cliente irado, que latia: "Responsável uma ova!!! IRRESPONSÁVEL!!!"
Onda - Medir a Internet apenas
pelo número de pessoas que a utilizam diretamente é perder
de vista o seu poder. A Internet é hoje um tsunami a poucos quilômetros
da praia. A onda, gerada por terremotos, viaja imperceptível por
águas profundas, até ser obrigada a elevar-se vários
metros em águas rasas. Então invade a terra e leva tudo o
que encontra pela frente. Ainda não vimos o impacto da Internet
na sociedade, além daquilo que é mostrado na TV. Mas seu
próximo fogão deve chegar até você com os componentes
enjoados de tanto viajar de Internet ao longo da cadeia de suprimentos.
Ainda que o nativo de uma aldeia
africana não venha a possuir um computador, é provável
que o e-mail encontre guarida ali. Um sistema barato para correspondência,
baseado em e-mail, pode ser adotado por populações onde hoje
falta até saliva para lamber o envelope. Quando existe envelope.
Ou entregador corajoso, porque tem lugar onde nem o carteiro quer se-lo.
Onde leões não latem antes de morder.
É improvável que você
encontre um coletor solar gerando energia elétrica em sua cidade.
Mas há anos essas pequenas engenhocas enfeitam postes em lugares
que os mapas não têm coragem de mostrar. Alimentam postos
telefônicos avançados e estações repetidoras.
Com a Internet acontecerá o mesmo. Nesses lugares a Internet vai
permitir que informações da colheita ou do volume de ordenha
sejam derramadas on-line nas cooperativas e entrepostos. E "no Rancho Fundo,
bem prá lá do fim do mundo", uma imprensa mais versátil
e barata já pode publicar as notícias três dias antes
de chegar lá um jornal impresso de três dias antes.
É claro que tudo exige infra-estrutura.
Mas para quem investe em Internet, é ótimo. Se você
ainda acha que Internet é visitar um site "cool", clicar em banners,
bater papo, surfar e surfar, é melhor ficar esperto para não
ser levado pela onda. Tsunamis afogam surfistas, mas não causam
danos a quem enxergou longe. E se posicionou para crescer quando a praia
estivesse limpa dos oportunistas.
Se nos próximos meses ainda
vamos assistir muita gente procurando onde foi parar a prancha que estava
sob seus pés, o momento seguinte será de sedimentação.
Passada a onda, que varre o que não tem alicerce, novas construções
irão surgir, à prova de ondas. Para atender a essa demanda
reprimida dos 95% de Sem-Internet do mundo, que estarão loucos para
se comunicar com outras tribos. Nem que seja para dar desculpas: "Uma girafa
derrubou minha conexão".
(*) Mário
Persona é diretor de comunicação da Widesoft,
que desenvolve sistemas para facilitar a gestão da cadeia de suprimentos
via Internet. |