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Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 06/27/00 12:20:16
Os Sem-Internet 

Mário Persona (*)
Colaborador

O relatório da ONU apontava um abismo tecnológico separando a América do Norte, Europa e Japão do resto do mundo. Apenas 276 milhões de pessoas - ou menos de 5% da população mundial - estariam usando a Internet.
Bom ou ruim? Excelente! Péssimo! Mais de 95% da população é Sem-Internet. Não podem nem invadir sites alheios. Mas, estatísticas por estatísticas, eu diria que 99% das casas da Sibéria não têm ar condicionado e um número igual de lares africanos padece com a falta de aquecimento central. E daí? Daí que 100% das estatísticas precisam andar de mãos dadas com outras informações para fazer sentido.

No caso da Internet - ao alcance de menos de 5% da população mundial - é preciso esclarecer que ter acesso a algo, e receber os benefícios disso, são coisas diferentes. O estudo limita-se a apontar que só essa magra fatia do bolo de seres humanos pode clicar em uma tela colorida. E destes, são poucos os que conseguem mover o mouse sem mover o corpo todo. Um problema mais de coordenação motora do que de adequação à sociedade da informação.

Uso indireto - Praticamente todos os seres humanos são beneficiados pelo uso de navios e aviões, aos quais jamais tiveram acesso direto. O pão que comem ou o remédio que tomam viajou neles. O mesmo ocorre com os computadores pessoais, que pouca gente possui mas cujos benefícios são desfrutados por milhões. Nem que seja apenas para inventar uma desculpa.

Aconteceu comigo. Aguardando por alguém na minúscula sala de espera de uma distribuidora de revistas menor ainda, podia ouvir o dono da empresa atendendo, por telefone, uma fila assinantes irados. Tinham pago pela assinatura e neca de revista. "Tivemos um problema com nossos computadores", justificava o homem, passando o palito de dentes para o outro canto da boca. Na sala, nem uma régua de cálculos havia.

Parecendo adivinhar que eu não agüentava mais não ter o que fazer, o homem resolveu sair para o café. Justo comigo, que detesto deixar um telefone tocar. "O responsável saiu...", comecei eu. Tirei o fone da orelha para evitar o cuspe de um cliente irado, que latia: "Responsável uma ova!!! IRRESPONSÁVEL!!!"

Onda - Medir a Internet apenas pelo número de pessoas que a utilizam diretamente é perder de vista o seu poder. A Internet é hoje um tsunami a poucos quilômetros da praia. A onda, gerada por terremotos, viaja imperceptível por águas profundas, até ser obrigada a elevar-se vários metros em águas rasas. Então invade a terra e leva tudo o que encontra pela frente. Ainda não vimos o impacto da Internet na sociedade, além daquilo que é mostrado na TV. Mas seu próximo fogão deve chegar até você com os componentes enjoados de tanto viajar de Internet ao longo da cadeia de suprimentos.

Ainda que o nativo de uma aldeia africana não venha a possuir um computador, é provável que o e-mail encontre guarida ali. Um sistema barato para correspondência, baseado em e-mail, pode ser adotado por populações onde hoje falta até saliva para lamber o envelope. Quando existe envelope. Ou entregador corajoso, porque tem lugar onde nem o carteiro quer se-lo. Onde leões não latem antes de morder.

É improvável que você encontre um coletor solar gerando energia elétrica em sua cidade. Mas há anos essas pequenas engenhocas enfeitam postes em lugares que os mapas não têm coragem de mostrar. Alimentam postos telefônicos avançados e estações repetidoras. Com a Internet acontecerá o mesmo. Nesses lugares a Internet vai permitir que informações da colheita ou do volume de ordenha sejam derramadas on-line nas cooperativas e entrepostos. E "no Rancho Fundo, bem prá lá do fim do mundo", uma imprensa mais versátil e barata já pode publicar as notícias três dias antes de chegar lá um jornal impresso de três dias antes.

É claro que tudo exige infra-estrutura. Mas para quem investe em Internet, é ótimo. Se você ainda acha que Internet é visitar um site "cool", clicar em banners, bater papo, surfar e surfar, é melhor ficar esperto para não ser levado pela onda. Tsunamis afogam surfistas, mas não causam danos a quem enxergou longe. E se posicionou para crescer quando a praia estivesse limpa dos oportunistas.

Se nos próximos meses ainda vamos assistir muita gente procurando onde foi parar a prancha que estava sob seus pés, o momento seguinte será de sedimentação. Passada a onda, que varre o que não tem alicerce, novas construções irão surgir, à prova de ondas. Para atender a essa demanda reprimida dos 95% de Sem-Internet do mundo, que estarão loucos para se comunicar com outras tribos. Nem que seja para dar desculpas: "Uma girafa derrubou minha conexão".

(*) Mário Persona é diretor de comunicação da Widesoft, que desenvolve sistemas para facilitar a gestão da cadeia de suprimentos via Internet.