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Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 06/14/00 18:48:20
Quebrando o gelo 

Mário Persona (*)
Colaborador

Quando jovem, fui a todas as festas de quinze anos. Mesmo quando a aniversariante fazia dezesseis, dezessete ou dezoito. Porque nem sempre a idade cronológica estava em sincronismo com a disponibilidade financeira do pai da garota.
A cena mais aterradora nessas ocasiões era ver uma dupla singrando a sala em minha direção. Geralmente era uma mãe, ávida para desencalhar sua moçoila, a qual vinha a reboque, ora com o lado de dentro, ora com o lado de fora dos pés tocando o assoalho. Pés rebeldes aos saltos altos de poucas primaveras.

"Vamos quebrar o gelo!", dizia a mãe mais alto que a voz dos Beatles que saía da vitrola. Ato contínuo, fazia a minha mão grudar na mão gelada e úmida da garota de olhos saltados e espinhas idem. A partir daquele momento meus olhos passavam a enxergar a festa como o filme Titanic. Sem a parte romântica. Só com a cena da colisão com aquele iceberg vestido de branco.

Sorvete - Pouca gente sabe que isso já foi um negócio rentável. Não falo de mães tentando arranjar casamento para a filha, um investimento que muitas ainda enxergam com bons olhos. Refiro-me ao negócio de quebrar o gelo. No século 19 e início do século 20, a indústria do gelo floresceu na Europa e América do Norte, com equipes serrando lagos inteiros para vender. Os blocos eram conservados em sal e serragem e enviados para épocas ou regiões mais quentes.

Ouvi de algum professor da faculdade que, no Rio, a tradicional Confeitaria Colombo recebia blocos de gelo da Europa, que viajavam como lastro de navios e eram rapidamente transformados em sorvete e refrescos. Sem dúvida, um alívio para os cariocas que não agüentavam mais tomar coca quente.

Isso também permitia que as naus portuguesas que faziam a ponte marítima Rio-Lisboa se dessem ao luxo de ter ar-condicionado, mas nunca ficou claro para mim se os marujos de aquém montes tentavam mesmo enxugar a carga durante a viagem. Navios que faziam escala na Escócia provavelmente recebiam sua carga de tonéis acomodados sobre o lastro de gelo. Tenho uma teoria de que foi aí que surgiu a expressão "on the rocks".

Novos tempos - Poucas empresas que cortavam gelo em lagos conseguiram sobreviver em um negócio que acabou se derretendo com a chegada da tecnologia para fabricação de gelo. Para muitas, os caros e complicados processos e instalações para fabricar gelo jamais seriam páreo para a mãozinha dada pela natureza, que congelava a custo zero. Mas, mesmo quem tentou contornar o problema apenas enxugando custos, logo viu seu negócio ir pelo ralo.

Quem teve visão e soube fazer a transição para as novas tecnologias sobreviveu. A Cape Pond  foi uma delas, uma empresa que está há mais de 150 anos no negócio sem entrar em fria. Hoje ela continua fornecendo toneladas de gelo para barcos pesqueiros, mas é flexível o suficiente para aproveitar as oportunidades que aparecem. A mais recente foi pegar carona no Andrea Gail, o pesqueiro do filme da Warner, "The Perfect Storm".

É que os atores vestem literalmente a camiseta da empresa quando aparecem em cena, dando mais realismo ao filme, baseado na história de um pesqueiro que se perde em uma tempestade. Aproveitando a injeção de notoriedade dada pelo filme, o site da empresa, acostumada a negociar coisas em medidas de toneladas, passou a vender também camisetas e livros ligados ao tema. Além das esculturas em gelo que já faziam parte do catálogo e enfeitam as festas americanas, inclusive as de quinze anos. Mas nem me pergunte como são entregues ou como duram tanto.

Assim como aconteceu com a Cape Pond, a sobrevivência das velhas empresas continua dependendo de sua capacidade de assimilar as novas tecnologias. E da rapidez com que o fazem, antes que sejam abalroadas pelas novas empresas, geração espontânea dessas mesmas novas tecnologias. Em uma economia que navega a todo vapor, a demora em decidir por uma mudança de rumo pode ser fatal. Até para empresas de grande porte. Quem assistiu Titanic que o diga.

(*) Mário Persona é diretor de comunicação da Widesoft, que desenvolve sistemas para facilitar a gestão da cadeia de suprimentos via Internet.