Quebrando o gelo
Mário Persona (*)
Colaborador
Quando jovem,
fui a todas as festas de quinze anos. Mesmo quando a aniversariante fazia
dezesseis, dezessete ou dezoito. Porque nem sempre a idade cronológica
estava em sincronismo com a disponibilidade financeira do pai da garota.
A cena mais aterradora nessas ocasiões
era ver uma dupla singrando a sala em minha direção. Geralmente
era uma mãe, ávida para desencalhar sua moçoila, a
qual vinha a reboque, ora com o lado de dentro, ora com o lado de fora
dos pés tocando o assoalho. Pés rebeldes aos saltos altos
de poucas primaveras.
"Vamos quebrar o gelo!", dizia a
mãe mais alto que a voz dos Beatles que saía da vitrola.
Ato contínuo, fazia a minha mão grudar na mão gelada
e úmida da garota de olhos saltados e espinhas idem. A partir daquele
momento meus olhos passavam a enxergar a festa como o filme Titanic.
Sem a parte romântica. Só com a cena da colisão com
aquele iceberg vestido de branco.
Sorvete - Pouca gente sabe
que isso já foi um negócio rentável. Não falo
de mães tentando arranjar casamento para a filha, um investimento
que muitas ainda enxergam com bons olhos. Refiro-me ao negócio de
quebrar o gelo. No século 19 e início do século 20,
a indústria do gelo floresceu na Europa e América do Norte,
com equipes serrando lagos inteiros para vender. Os blocos eram conservados
em sal e serragem e enviados para épocas ou regiões mais
quentes.
Ouvi de algum professor da faculdade
que, no Rio, a tradicional Confeitaria Colombo recebia blocos de gelo da
Europa, que viajavam como lastro de navios e eram rapidamente transformados
em sorvete e refrescos. Sem dúvida, um alívio para os cariocas
que não agüentavam mais tomar coca quente.
Isso também permitia que as
naus portuguesas que faziam a ponte marítima Rio-Lisboa se dessem
ao luxo de ter ar-condicionado, mas nunca ficou claro para mim se os marujos
de aquém montes tentavam mesmo enxugar a carga durante a viagem.
Navios que faziam escala na Escócia provavelmente recebiam sua carga
de tonéis acomodados sobre o lastro de gelo. Tenho uma teoria de
que foi aí que surgiu a expressão "on the rocks".
Novos tempos - Poucas empresas
que cortavam gelo em lagos conseguiram sobreviver em um negócio
que acabou se derretendo com a chegada da tecnologia para fabricação
de gelo. Para muitas, os caros e complicados processos e instalações
para fabricar gelo jamais seriam páreo para a mãozinha dada
pela natureza, que congelava a custo zero. Mas, mesmo quem tentou contornar
o problema apenas enxugando custos, logo viu seu negócio ir pelo
ralo.
Quem teve visão e soube fazer
a transição para as novas tecnologias sobreviveu. A Cape
Pond foi uma delas, uma empresa que está há mais
de 150 anos no negócio sem entrar em fria. Hoje ela continua fornecendo
toneladas de gelo para barcos pesqueiros, mas é flexível
o suficiente para aproveitar as oportunidades que aparecem. A mais recente
foi pegar carona no Andrea Gail, o pesqueiro do filme da Warner, "The
Perfect Storm".
É que os atores vestem literalmente
a camiseta da empresa quando aparecem em cena, dando mais realismo ao filme,
baseado na história de um pesqueiro que se perde em uma tempestade.
Aproveitando a injeção de notoriedade dada pelo filme, o
site da empresa, acostumada a negociar coisas em medidas de toneladas,
passou a vender também camisetas e livros ligados ao tema. Além
das esculturas em gelo que já faziam parte do catálogo e
enfeitam as festas americanas, inclusive as de quinze anos. Mas nem me
pergunte como são entregues ou como duram tanto.
Assim como aconteceu com a Cape Pond,
a sobrevivência das velhas empresas continua dependendo de sua capacidade
de assimilar as novas tecnologias. E da rapidez com que o fazem, antes
que sejam abalroadas pelas novas empresas, geração espontânea
dessas mesmas novas tecnologias. Em uma economia que navega a todo vapor,
a demora em decidir por uma mudança de rumo pode ser fatal. Até
para empresas de grande porte. Quem assistiu Titanic que o diga.
(*) Mário
Persona é diretor de comunicação da Widesoft,
que desenvolve sistemas para facilitar a gestão da cadeia de suprimentos
via Internet. |