Dona Escolástica e o fax
Mário Persona (*)
Colaborador
Etelvino
Q. Brado é um empresário como muitos outros. Sua empresa
sobrevive fornecendo para um grande fabricante de máquinas, cujos
pedidos são aguardados com ansiedade pelo Modesto, seu gerente de
vendas, e dona Escolástica, a fiel secretária. É essa
estranha confraria que costuma se revezar em uma vigília ao redor
do aparelho de fax quando os pedidos estão para chegar. Aliás,
foi esse o último salto tecnológico da empresa para modernizar
sua comunicação com clientes e fornecedores.
Para que a linha de montagem permaneça
ativa e possa atender seu principal cliente, Etelvino depende de vários
fornecedores de itens que vão de parafusos a chapas de aço.
Os pedidos, enviados também por fax, são preparados pelo
Anselmo, o gerente de compras. Ele gasta um bom tempo calculando e escrevendo
à mão uma programação de entrega com quantidades
exatas e enxutas para evitar estoques desnecessários. Dona Escolástica
é quem datilografa tudo, passa para o Anselmo corrigir, e depois
volta a datilografar a versão final antes de enviá-la por
fax.
Aliás foi dona Escolástica
quem fez a toalhinha de crochê que cobre o aparelho de fax quando
não está sendo usado. No passado ela já fazia protetores
de crochê para maçanetas de portas de geladeira, mas com os
modernos puxadores o hobby acabou meio esquecido. Mas hoje a atenção
de dona Escolástica está no fax sem a toalhinha. É
que o principal cliente de Etelvino, e também seus fornecedores,
estão em outras cidades, e os negócios dependem inteiramente
do fax e do telefone. Pode-se dizer que a vida da empresa está por
um fio - o fio do sistema de discagem direta à distância.
Silencioso - Salvo o ruído
de um ou outro dominó que cai no chão, ou o sussurro de "Truco!",
arriscado por um operário mais audacioso, hoje o silêncio
reina na linha de produção parada. Até o Juvenal que
simulava alguma atividade limpando sua área de trabalho achou melhor
descansar. O torno já está mais limpo que o fogão
de sua esposa. Não há componentes para completar o pedido
que entrou na semana passada.
As peças tiveram que ser encomendadas
por Sedex devido a problemas com o interurbano, e isso atrasou tudo. Para
piorar, o pedido do cliente, que deveria ter entrado ontem, não
apareceu porque o fax anda muito quieto ultimamente. No escritório,
o pessoal está em pé ao redor do aparelho, esperando por
um sinal de vida. Só mesmo a total ausência de piadas revela
que aquilo não é um velório.
O carteiro chega e entrega um telegrama
para dona Escolástica. Ela lê, com voz trêmula, a mensagem
que acaba de chegar do principal cliente: "FAVOR CANCELAR PEDIDO DA SEMANA
PASSADA. NÃO PODEMOS MAIS ESPERAR. IMPOSSÍVEL ENVIAR PEDIDO
DESTA SEMANA. INTERURBANO COM PROBLEMAS. FOMOS OBRIGADOS A USAR FORNECEDOR
COM INTERNET. SAUDAÇÕES."
"INTERNET?!", exclamam todos com
um misto de ignorância e espanto. Todos olham para Etelvino Q. Brado,
enquanto este fita a foto amarelada do avô e fundador da fábrica
na parede, tentando adivinhar o que a Internet tem a ver com indústrias.
Enquanto empresas como a de Etelvino
vão desaparecendo na poeira dos séculos, a vida continua
para quem descobriu que hoje o fluxo da produção depende
como nunca do fluxo da informação. Com os problemas decorrentes
das mudanças no DDD, interrompendo a comunicação por
fax ou telefone de muitas empresas com seus clientes e fornecedores, muita
gente está revisando seus processos de compra e venda. A crise no
DDD fez com que o dinheiro trocasse de mãos. Enquanto algumas empresas
perdiam terreno, outras abriam novas frentes de negócios graças
à Internet. Até quem usava a Internet como lazer - como bóia
de brinquedo - descobriu que foi graças a ela que a empresa não
foi ao fundo.
Prioridade - Enquanto muita
gente amargava perdas significativas, empresas como Xerox do Brasil, Freios
Varga e outras igualmente preparadas provavam que investir em Internet
é prioridade na era dos negócios digitais. Isto porque boa
parte do relacionamento que essas empresas têm com seus fornecedores
já é on-line, usando a Internet como rede e o browser como
interface. Na outra ponta, dezenas de fornecedores, de clips a componentes
eletrônicos, têm suas vendas asseguradas e suas linhas de produção
em franca atividade mesmo quando não há interurbano ou fax.
No frigir dos ovos, saíram fortalecidos aqueles gerentes de tecnologia
da informação cujas investidas na Internet ainda são
vistas com ceticismo pela maioria dos empresários.
Não será surpresa se
depois do susto com o DDD assistirmos a uma corrida desesperada em busca
de sistemas de e-business. As retardatárias estarão comprando
micros e instalando acesso à Internet, enquanto as que já
fizeram isso antes vão correr atrás de quem desenvolva um
website para marcar sua presença na rede mundial.
Algumas irão mais longe, contratando
linhas privativas para garantir o acesso 24 horas à rede mundial.
Mas estas ainda estarão um passo atrás das empresas que já
integraram seus processos a sistemas que utilizam a Internet como rede
de negócios. Nestas, a negociação com fornecedores,
representantes e clientes já é on-line. São empresas
que logo poderão se dar ao luxo de cobrir o fax com uma toalhinha.
Aliás, é isso o que dona Escolástica pretende fazer
de agora em diante para sobreviver - fabricar toalhinhas de crochê
para aparelhos de fax.
(*) Mário
Persona é diretor de comunicação da Widesoft,
que desenvolve sistemas para facilitar a gestão da cadeia de suprimentos
via Internet. Artigo distribuído em julho de 1999, logo após
os problemas com a mudança nos códigos de Discagem Direta
à Distância (DDD) no Brasil. |