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O bonde corre pela avenida que margeia a praia. Entardece e o ar frio que sopra do mar substitui aos poucos o calor que o sol da tarde deixou. No próximo ponto o veículo para, sobe um casal, Todavia, o
bonde está cheio e o rapaz permanece no estribo, enquanto a garota que o acompanha ocupa o único lugar daquele banco. O motorneiro faz a alavanca voltar a 8 pontos, o bonde retoma sua velocidade, e o ar da praia volta a entrar mais facilmente. O
bonde é aberto, vai gente nos estribos, agarrada aos balaústres, gente nos bancos de cinco lugares e gente na plataforma de ré; a da frente leva só o motorneiro.
O velho bonde aberto chega ao ponto final
Apesar de tradição na Cidade, condução preferida por todos nos dias de calor e até atração turística, o bonde aberto está no ponto final, e também aqui, no texto de Luiz Carlos Ventura e nas fotos de
José Dias Herrera
Depois de quase 70 anos servindo de meio de transporte a muita gente, inclusive em casamentos e enterros, o bonde aberto chega ao ponto final. Os últimos carros, em tráfego na linha 39,
deverão ser substituídos por "camarões" nos próximos dias. Como ocorreu com os demais, eles vão para as oficinas do SMTC trocar os estribos e balaústres por uma parede de folhas de aço, as cortinas de lona por janelas de vidro, as plataformas por
"borboletas".
Por isso, quem de 1889 para cá se acostumou a vir do colégio ou ir para o trabalho de pé no estribo, ou na ponta do banco,
recebendo a aragem agradável, presente mesmo nos dias mais quentes, e vendo melhor a paisagem a menos de 40 quilômetros por hora, não deve esperar muito para relembrar os velhos tempos. Não deve deixar para o próximo verão; terá de ser mesmo nestes
dias frios, porque quando o calor vier os bondes abertos já não existirão.
A possibilidade de fumar durante a viagem de casa à cidade ou vice-versa, menos nos três primeiros bancos ("Os três primeiros
bancos são reservados àqueles que não fumam", indicava o letreiro), de cortejar uma garota, ou dar o lugar a uma senhora apenas para ter uma desculpa para ficar no estribo, são coisas que logo serão do passado.
Havia até quem viajasse de bonde apenas por prazer. Saía mais cedo de casa, passeava de casa até o local de trabalho, a menos de
40 quilômetros por hora, mas sem as atribulações e o empurra-empurra de um ônibus cheio. Outros tomavam o bonde na Ponta da Praia e iam até a Biquinha de São Vicente,
quando a Linha 13 chegava até lá, ou até o José Menino, quando a Prefeitura de São Vicente resolveu urbanizar a Praia de Itararé.
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Afinal, o bonde aberto, defendido por muitos como atração turística, tradição da cidade, condução mais agradável (e saudável)
devido ao clima de Santos, acabou perdendo a vez. E não é apenas por causa da "borboleta", que permite um controle efetivo dos passageiros, que o SMTC está transformando todos em "camarões": os acidentes são apontados como fator mais forte para a
transformação.
Não foi a evasão de renda, o escolar que se escondia ou fugia do cobrador ou o senhor que com uma expressão muito séria fingia
não tomar conhecimento do homem de cáqui que batia com o apito no balaústre para "acordá-lo" (às vezes o cobrador trazia um punhado de moedas para servir de chocalho e "acordar" os "distraídos") que acabaram com aqueles veículos. Foram, isto sim,
os muitos passageiros que ficaram sob as rodas do bonde, descendo dele andando, ou eu foram apanhados por outro veículo ao descer pela entrevia.
Apenas o bonde aberto desaparece sem causar a sensação de quando apareceu. Naquele 14 de abril de 1889, havia banda de música no
primeiro bonde que, puxado a burros, foi do centro de Santos, hoje Praça Rui Barbosa, até a praia. Nos outros iam a diretoria da "Empresa de Bondes da Vila Matias", a Imprensa, os internos do Asilo
de Órfãos etc.
Há quem lembre ainda que o bonde que levava os convidados era conduzido por um cocheiro de nome famoso: José Bonifácio de
Andrada e Silva. No sétimo bonde do séquito ia outra banda de música. No final da festa, diz Costa e Silva Sobrinho, "as bandas de música tocaram, fogos foram queimados e as linhas enfeitadas por galhardetes. Encerrou a festividade a subida de um
grande balão". E não havia preço estipulado para a passagem. Pagava quem queria, e quanto quisesse.
Os galhardetes voltaram a aparecer quando, de 1909 a 1912, as linhas foram eletrificadas. Mas, apesar de dar dianteira aos
carros elétricos, os velhos continuaram andando, servindo de reboques até 1958. Acabaram sendo desmontados e hoje deles só restam algumas fotografias e as descrições feitas pelos poucos que os viram.
Mas os bondes fechados não terão a duração nem a tradição dos abertos: os trólebus vão substituí-los em pouco tempo. Quem quiser
andar de bonde, mesmo fechado, aproveite agora.
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Antes a coragem pagava a passagem
"Bonds", lá por volta de mil oitocentos e muita coisa, quase novecentos, eram os cupões emitidos pelas empresas para a formação de capital. A
Companhia Melhoramentos de Santos não escapou disso quando se propôs a estabelecer a primeira linha de veículos coletivos tirados por burros, o mesmo acontecendo com a City of Santos Improvement Company Limited, que encampou
as três linhas mantidas pela Melhoramentos.
Como os "bonds" vinham sempre antes dos carros, o nome passou dos títulos para os veículos e só vai acabar com eles. O caso é exclusivamente
brasileiro e nem o nome da empresa que substituiu a City conseguiu modificá-lo. Era a Companhia Ferro-Carril Santista, que ao adquirir os bondes da City baixou o preço da passagem de 270 para 200 réis.
Quando a Santista conseguiu da Câmara Municipal uma concessão de luz e força, acabou sendo encampada pela City, logo no ano seguinte. Em 1908 a
eletrificação começou a ser instalada, mas o primeiro só circulou da Estação da Estrada de Ferro (hoje EFSJ) a São Vicente, em 1909. Houve festa que durou uma semana, com fogos, música, balões e passagens gratuitas;
houve, porém, quem chorasse.
Como os veículos eram eletrificados e pouca gente acreditasse que entrar neles não fosse suicídio, a City pediu voluntários para a primeira
viagem. Estes não faltaram, mas suas famílias ficaram chorando; as mulheres, a viuvez, e os filhos, a orfandade.
A City ficou com os bondes, e em 1937 já pensava em substituí-los por trólebus. De 10 de junho a 16 de setembro, o engenheiro Norman D. Wilson,
canadense de Toronto, esteve em Santos verificando, a mandado da Brazilian Traction, Light and Power Company Ltd., com sede em Toronto, a "Situação do Trânsito em Santos".
O relatório que o engenheiro fez ao presidente da empresa tinha quase 50 folhas datilografadas e, depois de falar sobre a concessão, que terminaria em 1951, fazia
um apanhado completo de todas as atividades da empresa, sua expansão e o tráfego de veículos em Santos e São Vicente. Nesse estudo, uma bem feita projeção de dados, previa alguns problemas que anos mais tarde apareceram.
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Estes trilhos vão continuar. Logo após o fim, vem a saudade... |