Muitos
santistas têm histórias de experiências pessoais com os bondes. Como o escritor e poeta Narciso de Andrade, que publicou, em 19 de novembro de 2000,
no jornal santista A Tribuna:
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Ilustração de DaCosta, publicada com a matéria
Viajar na Linha 1, Matadouro, uma aventura
Narciso de Andrade (*)
Colaborador
Peço perdão aos meus amigos por não poder dedicar a eles a
atenção que merecem, circunstâncias, coisas da vida. De repente, espero, tudo se recomporá e voltarei às tardes do Paulista.
Que, ao que estou sabendo, virou ponto de bonde.
Se há alguma coisa que nunca saiu da cabeça do santista é o bonde. Mesmo quem não chegou a tempo
de andar em um deles tem saudade daquele meio de transporte transformado em símbolo de toda uma época, um grande período da história local. O bonde
acompanhou o ritmo das ruas da cidade em seu passo típico, sem grande velocidade, mas cumprindo sempre o seu papel e propiciando a visão
privilegiada desta nossa sempre bela cidade.
Levava a gente, quando de menor, para o colégio; adultos, para o trabalho. Conduzia-nos, na
hora propícia, para os mais belos passeios. Percorrer toda a orla, da Ponta da Praia até São Vicente, com direito, portanto, à mais bela paisagem do
mundo, isso ouvi, palavra de poeta, de muitos estrangeiros, quando repórter marítimo. Bonde 2, bonde 3, bonde 4, bonde X, bonde 13, bonde 23 - e o
imensamente lírico bonde N, isto é, noturno, o bonde que só circulava depois da meia-noite, levando toda uma população de boêmios, jornalistas e
outras aves de hábitos noturnos.
Quando tomávamos o bonde 1 para ir por dentro até São Vicente, na linha do Matadouro, era
uma viagem de aventura, pois, no meio do caminho, poderíamos defrontar-nos com bois em fuga ao serem conduzidos para o Matadouro. Atrás do bichão
laçadores a cavalo. Cenário de faroeste sem armas ou brigas.
Foi lá que, certa vez, ocorreu algo de inesperado, imprevisível. Lá vinha o mineiro por nome
Pereira quando aconteceu o desgarre de um boi a avançar furiosamente contra desesperada velhinha. Pereira se pôs à frente do boi, olhou-o fixamente
nos olhos e o bicho em pouco tempo estava no chão.
Pereira era dotado do dom de hipnose, conforme comprovado por especialistas. Ah, esses mineiros.
Respondo pela autenticidade do fato narrado, pois o personagem Pereira foi um diligente funcionário da Cia. City com quem sempre mantive as melhores
relações, conversávamos muito, pois Pereira tinha um lado marcante na sua personalidade, além do dote natural do poder hipnótico: entendia de
bichos, inclusive insetos, como ninguém.
A gente ia visitá-lo e ele fazia questão de apresentar as suas aranhas venenosas que moravam com
ele no mesmo quarto. Respondo também pela veracidade do que estou contando. Todo mundo sabia desses lances no setor de Gás - Distribuição - ali na
Predial, isto é, Rua Pego Júnior.
Toca o telefone, vou atender, era engano. Bem feito, quem mandou me tirar da concentração? Não tem
importância, além da memória, tenho documentos interessantíssimos sobre o tema bondes, palavra de origem inglesa devidamente aportuguesada.
Mas isso todos sabem.
(*)
Narciso de Andrade é poeta e escritor.
Na próxima parada, o
bombeiro assume o lugar do motorneiro. É a greve... |