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II
Ruínas, lendas e tesouros misteriosos
O sítio São José e o seu tesouro que ninguém viu – Jurubatuba, um rio ilustre, com fantasmas, sacis e bruxas – uma "sessão espírita" cheia de peripécias – Uma fortuna enterrada, há
séculos, pela alma do seu proprietário – Uma novela de mistério
Reportagem de Antonio Sarabando
Fotos de Rafael Dias Herrera
Em todos os países existem lendas as mais estranhas, entrelaçando o mundo material com o imaterial, o mundo dos vivos com os dos mortos.
Geralmente, os que se passaram para outra vida são sempre apresentados com intuitos maléficos, e se se dignam revelar-se aos que ainda por aqui lutam e sofrem, são sempre interpretados como possuídos de intuitos maléficos, como criaturas horrendas,
que procuram fazer mal aos que ainda carregam o fardo da vida terrena. Assim criaram os fantasmas, almas penadas que procuram sempre que podem alarmar os vivos, transtornar-lhes os negócios. Todo o lugar onde existir uma parede velha tem, na
imaginação popular, um fantasma a guardá-lo. E se tem fantasma, tem tesouro enterrado, sem dúvida alguma.
Toda a encruzilhada de caminhos, todo cruzamento de rios, tem, pelo menos, um saci, outro curioso gênio do mal inventado pela fantasia popular. É livrar de passar ali à meia noite em ponto, ou em ocasião de ventos que façam redemoinho. Dentro do
redemoinho está o pretinho de uma perna só e com um único olho no meio da testa.
Por isso é que a narrativa do nosso acompanhante na visita às ruínas do Sítio S. José nos merecem toda a atenção, e o qual assim continua suas informações:
"O rio Jurubatuba possui tudo, isto é, saci, fantasma e bruxa.
O primeiro aparecia nas noites escuras, numa curva do rio a que chamam Rua Direita, logo que termina o mangue e começam os capinzais das margens desse curso de água. Ouvimos muito sitiante,
que a maré retardava, jurar que, ao passar naquele ponto, vira o saci. Alguns, mais modestos, afirmavam que apenas perceberam um ruído aterrador, um vento frio açoitar-lhes os rostos.
Todos tinham, no entanto, as suas orações apropriadas para afugentar esse emissário do mafarrico. Alguns rezavam o credo de diante para trás, e era tiro e queda. O arteiro diabito fugia a mais não poder, fazendo grande destroço pelos matos afora,
quebrando galhos, derrubando árvores, assustando a passarada que esvoaçava por todos os cantos.
A certa altura do rio, morava naquele tempo uma senhora, proprietária de um sítio, tendo em sua companhia - se não estamos em erro, pois tantos anos já se passaram -, uma ou duas irmãs. Os sitiantes embirravam com a mulher e afirmavam que ela era
bruxa.
Muitos faziam juras solenes de que haviam visto pela noite uma luz amarelada vagabundear de um sítio a outro, e ir finalmente descer sobre a casa das solitárias sitiantes. Esse era outro ponto onde quantos viajavam de noite, ao por ali passarem, se
benziam, rezavam e proferiam todas as fórmulas cabalísticas para afugentar os poderes demoníacos das portadoras de novelos encantados.
No entanto, quem gozava das honras do maior mistério era o Sítio S. José. Os fantasmas, ali, eram de verdade. Pois se até mortes eles já haviam cometido. Era com um aperto de coração que todos os que tinham de passar por lá, por possuírem seus
sítios para cima, para os lados da cachoeira, se aproximavam da área fatídica.
Se um vagalume demorava mais do que o normal a exposição de sua fosforescência, não havia mais dúvida, era um espírito maligno. Se um socó assustado levantava voo e grasnava, podiam todos estar certos de eu era um fantasma. E ai de quem pretendesse
afirmar o contrário. Estava assentado que era fantasma, e pronto. E vinha então a citação de outros, mortos e vivos, que já haviam testemunhado fenômenos idênticos e faziam ou fizeram afirmações semelhantes.
Os moradores do Sítio S. José eram, por isso, qualificados de loucos, ou então, tinham algum pacto com o diabo, e eram olhados com certa prevenção, misto de desdém e de temor.
O tesouro que ninguém viu – No referido sítio, como dissemos, havia muita parede velha. De acordo com a lógica sertaneja, havia fantasma e, consequentemente, tesouro. Este, entretanto, nunca ninguém viu, por mais esforços que tivessem sido
feitos para isso.
Muita gente andou cavando em torno daqueles paredões, metendo a picareta nos pilares, ajudando a demolir aquilo que o tempo ainda não derribara, sem outro resultado a não ser destruir cama de gambá, assustar morcegos, descobrir jararacuçus, ou
outros incidentes de menor importância.
Sob a impressão nervosa das lendas que corriam, muita gente tinha sonhos, via o tesouro, demarcava o local. No dia seguinte, era um tal de cavar com fúria, mas após algumas horas de tremendo e inútil esforço, vinham o cansaço e a desilusão.
Outro aspecto das ruínas, cobertas pelo mato, tornando difícil na foto distinguir as
paredes, enegrecidas e cheias de musgo, do verde escuro da folhagem
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Uma sessão espírita – Houve tempo em que a fama do sítio chegou até à cidade, e alguém, dado à prática de sessões espíritas, para lá se dirigiu, disposto a invocar os espíritos dos que ali
haviam vivido, e se possível o dono do tesouro.
Contávamos, nessa ocasião, cerca de dez anos e por isso fomos considerados demasiadamente criança para assistir a tão graves práticas. Depois do jantar, que havia sido muito melhorado para honrar as importantes visitas, mandaram-nos para a cama.
Podem os leitores calcular o nosso desapontamento e a nossa humilhação. De certo modo, tiramos desforra. Não dormimos e assistimos a tudo, e ouvimos tudo, embora de um ângulo inapropriado: um buraco de fechadura.
O cidadão que mantinha relações com o Além levara todo o material necessário, isto é, dois médiuns batatais. Não havia espírito, por mais rebelde, que não "baixasse naquele centro" e não ficasse bonzinho. Não posso dar testemunho dos
seus méritos como intermediários entre este mundo e o outro. O que posso, entretanto, afirmar, com segurança, é que eram bons comedores e melhores bebedores. Foi necessário fazer tal devastação no galinheiro, para atender ao seu apetite, que
durante mais de três meses depois não saboreamos um pedaço de frango. Um décimo de vinho que estava mais de meio ficou seco e escorropichado, e até o quinto da caninha sofreu uma sensível queda de nível de seu conteúdo.
Quando a sessão começou, os espíritos já estavam bem altos. Talvez devido a isso é que de vez em quando o presidente travava discussões ferozes com almas invocadas, ao que parece todas da pior espécie. Do nosso ponto de observação,
notáramos uma senhora que nos parecia muito respeitável. A certa altura, começou a torcer a boca, a arregalar os olhos, e entrou a dizer as coisas mais disparatadas, que então não compreendemos bem, e só muitos anos depois começamos a perceber que
eram fatos em que o presidente desempenhava papel preponderante, em prejuízo de um terceiro cidadão, aliás também presente.
Amaldiçoamos nessa ocasião os serralheiros, por não fazerem umas chaves mais grossas, para que o buraco das fechaduras tivesse, por isso, de ser mais largo. Não pudemos ver tudo o que se passou. Ouvimos pela primeira vez palavras estranhas, que nos
ficaram soando nos ouvidos como enigmas, e que certamente nos fariam corar, se lhe conhecêssemos o significado.
Houve um ruído de luta. Vimos uma grossa mão se projetar furiosamente sobre o rosto da médium e esta tombar desamparada sobre o assoalho com grande estrondo.
Houve interferências apaziguadoras, restabeleceu-se a calma e a sessão continuou.
Um guardião do além – Depois de alguns minutos de tranquilidade, em que se ouvia o balbuciar uníssono de preces, num tom grave e profundo, outro médium, que não podia ver do meu ponto de observação, começou a soprar furiosamente. O
presidente recomendava:
- "Calma, meu irmão! Vem na paz de Deus!"
- Paz de Deus, uma ova! – replicou ameaçadoramente o médium, ou o espírito pela sua boca, continuando: - "Calma, quando são vocês que vêm perturbar a minha tranquilidade… O que é que querem? O
tesouro? Hão de vê-lo por um óculo".
- Mas então, existe o tesouro, meu irmão? – perguntou com voz suavíssima e insinuante o presidente.
Depois de uma certa hesitação, o espírito declarou:
- Sim. Existe. Mas não serão vocês nem ninguém, que o hão de apanhar.
O presidente fez uma bela preleção sobre o estado do espírito e a sua inutilidade em permanecer agarrado à matéria. Bens materiais nada lhe aproveitariam. Devia procurar desligar-se desses interesses, levantar o pensamento para Deus e dele se
aproximar. Enquanto estivesse preso às misérias deste mundo, continuaria sofrendo, sem progredir, sem evoluir.
O espírito retrucou ao pé da letra. Se as riquezas deste mundo nada valiam, por que estavam eles ali tentando descobrir o tesouro? Mas perderiam o tempo. Ele próprio o enterrara, e ele próprio o guardava, em pessoa, há séculos. Muitos tinham pagado
caro os seus esforços para descobri-lo. Referiu-se a uma série de crimes que muitos anos antes ali se haviam desenrolado, tendo como causa a disputa do tesouro.
Todos os esforços do presidente para que o espírito declinasse sua identidade e dissesse o local onde o tesouro estava sepulto, foram inúteis. Limitou-se a declarar que fora um dos primeiros moradores do local Para ali levara toda a sua fortuna e
mais alguma coisa que pilhara em momentos oportunos. Temendo pela segurança dos seus haveres, boas moedas de ouro e prata, alfaias e joias de alto valor, acondicionara-os bem, e os enterrara em lugar que nenhum mortal descobriria. Cedendo às
instâncias do presidente, disse a certa altura:
- Como querem vocês que eu me aparte destes lugares, se eu aqui vivi, aqui fui sepultado, e aqui está toda a minha fortuna?
Quando ouvimos que ele ali estava sepulto, ficamos algo insatisfeitos.
O presidente insistiu:
- Havia, então, cemitério, aqui?
- Não, ignorante – retrucou o espírito. Naquele tempo não havia cemitérios. Os mortos eram sepultados nas igrejas.
- E onde ficava a igreja?
Os lábios do médium se agitaram como se fosse numa gargalhada, emitindo, porém, apenas uns sons roucos e tenebrosos, e ouvimos o seguinte:
- Nestas próprias paredes.
Raciocinamos rapidamente. Se aquelas paredes eram as da igreja, ali havia gente enterrada. Estávamos então sobre sepulturas. O pavor se apossou de nós e pusemo-nos a gritar como um louco, como se o espírito da destruição se tivesse apossado de nós,
enquanto batíamos furiosamente na porta, e quando esta foi aberta, todos correram para nos reanimar. A sessão tinha terminado.
No dia seguinte, os visitantes se retiraram e, pelo que observamos, nunca mais seriam recebidos em nossa casa, ainda que o pretendessem.
- "Vão baixar em outro centro" - teríamos dito ao vê-los partir, se o estribilho já estivesse em moda naquele tempo.
De uma coisa eu estou certo. As peripécias da sessão contribuíram para que nos mudássemos também do sítio dentro de alguns meses.
Ao nos recordarmos destes fatos, justificamos o abandono em que fomos encontrar o local em nossa recente visita, e bem assim a resolução dos novos ocupantes do sítio, de mudarem a residência para ponto afastado daquelas ruínas.
O tesouro, se existe, continua inviolado. Algum tempo depois, ouvimos uma história, de um velho preto, chamado Camondongo, que morava numa tapera, num ponto entre o cais do Valongo e o novo cais do
Saboó. Vivia das gorjetas que lhe davam os sitiantes que entregavam as embarcações à sua guarda, enquanto tratavam de seus negócios na cidade.
A história do velho Camondongo, já falecido, e o que ouvimos na estranha sessão espírita realizada no sítio, forneceria material para uma novela, relacionada com as lendas sobre o tesouro do Jurubatuba e as
ocorrências do sítio S. José, das quis já naquele tempo havia apenas umas pálidas referências, ninguém sabendo ao certo como os fatos se teriam passado."
Assim concluiu nosso informante a sua narrativa, que não pudemos fugir à tentação de transmitir fielmente aos nossos leitores.
Sobre um velho pilar, uma figueira brava cresceu, envolvendo-o com suas robustas raízes,
protegendo-o contra a ação do tempo e das picaretas dos curiosos. Segundo a crença geral, é nas imediações dessas pedras que está o tesouro.
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