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NO TEMPO DOS BANDEIRANTES
[27] Meninos-homens
Os meninos bandeirantes - Bartolomeu Bueno e Pires de Campos - O menino do sertão goiano - Os órfãos do capitão Pires Ribeiro - O "enxoval" bélico de um menino de 13 anos
ouco depois de 1670, parte de São Paulo uma grande bandeira comandada por Manuel de
Campos Bicudo, rumo ao nordeste de Mato Grosso, a conquistar os índios "serranos".
Campos Bicudo é, então, um dos grandes sertanistas de Piratininga, autor de 24 entradas no sertão e, segundo Pedro Taques, é republicano adornado de muita civilidade, cortês política
e boa instrução, destacando-se ainda por seu físico agigantado: nós o conhecemos, afirma o linhagista, e nos não acordamos de outro que com ele competisse na corpulência.
A bandeira corta territórios híspidos e perigosos, habitados por numerosas tribos de índios antropófagos, e vai parar, finalmente, nas cabeceiras do rio Tapajós. Não cabe aqui o relato
minucioso dessa audaciosa penetração. O que se deseja assinalar aqui é um fato sobejamente conhecido, mas não devidamente estudado: a presença de um menino nessa rude tropa.
Com efeito, acompanhando seu pai nessa longa, áspera entrada, vai um rapazinho que não deve ter mais de quatorze anos de idade e que se chama Antônio Pires de Campos.
No sertão do norte mato-grossense, descobrem a lendária serra dos Martírios, marcham para leste, alcançam o São Manuel e aí, no recesso do sertão goiano, encontram outra bandeira, a de
Bartolomeu Bueno da Silva, o velho Anhangüera que, como o outro chefe de tropa, leva também, em sua companhia, o seu filho de quatorze anos, o jovem Bartolomeu.
O encontro das duas bandeiras paulistas nas longínquas selvas do norte goiano não terá sido por certo tão surpreendente como o encontro desses dois meninos que, mais tarde, se
agigantarão nos fastos do bandeirismo como audaciosos penetradores de selvas, no grande ciclo do ouro.
Pistolas
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro
Mas - e esta pergunta nos ocorre de modo irresistível - terão sido esses dois meninos os únicos que, nas bravas tropas bandeirantes, saem por esses sertões bravios, desafiando as
intempéries, sorrindo das endemias e enfrentando os selvagens, com o destemor dos homens mais rudes e audazes?
Tudo nos leva a responder negativamente. E mais; tudo nos leva a supor que a presença de rapazinhos em tropas bandeirantes, longe de constituir uma ou outra exceção, deve ter sido um
hábito generalizado entre a gente paulista do seiscentismo. Se, em dadas ocasiões, toda a vila, excetuados os inválidos e as mulheres, sai por esses matos brutos, por que ficarão em casa esses meninotes ainda imberbes, mas que já se consideram
homens como os mais barbudos?
Aos quatorze anos de idade, o paulista do seiscentismo já se não considera um menino. Embora sem o mais leve indício de barba, mal podendo carregar os pesados mosquetes de seis palmos,
mas sopesando galhardamente a ágil escopeta ou a sua tercerola, esses rapazinhos, vezes sem conta, embrenham-se pelos sertões, na ajuda de seus pais ou no serviço de Sua Majestade.
Quando, em meados do século, se faz o inventário de Maria da Cunha, o juiz de órfãos não aceita o depoimento dos filhos da falecida, alegando que alguns deles são menores de quatorze
anos, não podendo, portanto, servir de testemunhas, na forma da Ordenação de Sua Alteza.
Já com Manuel Leme o procedimento é diverso, como se infere deste documento: "Aos quatorze dias do mez de Junho de mil seiscentos e sessenta e oito annos nesta villa de Sant'Anna da
Parnaiva tirou sua folha de partilha Manuel de Góes Leme por se haver emancipado..."
E que idade tem esse filho de Aleixo, Leme já emancipado?
Dezesseis anos.
O filho do bandeirante
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro
A verdade, contudo, é que muito antes dos quatorze anos, já esses meninos vivem como homens - como os homens másculos do planalto de Piratininga, embora somente quando completam aquela
idade tenham licença para integrar as grandes bandeiras que rumam para o fascinante mistério das selvas. Leiamos, por exemplo, a curiosa carta que um bandeirante famoso, Francisco Barreto, escreve à sua comadre Isabel de Almeida, esposa de outro
sertanista, Fernão Dias Borges:
"Senhora comadre Isabel de Almeida.
O portador entregará a Vossa Mercê o sacco e a toalha e o baleiro. Vossa Mercê viva muitos annos pelo trabalho do biscoito; estava muito bom;o trigo que Vossa Mercê gastou lhe mandará
sua cunhada Maria Borges avizando a Vossa Mercê quantos alqueires a não ser que seja Deus louvado não fazer trigo em casa.
Simão ficou cá porque disse trazia ordem de Vossa Mercê para ficar cá para ir commigo ao sertão; a minha tenção era não tiral-o de casa de Vossa Mercê até Nosso Senhor não trazer e
achegar o senhor meu compadre; mas seja de modo que Vossa Mercê levar em gosto..."
Quem é esse Simão que, assim, se mete na casa do grande bandeirante afirmando ter ordem para ir ao sertão? É um dos filhos da senhora Isabel e conta, então, treze anos de idade. A
naturalidade, a displicência com que Francisco Barreto relata essas coisas à comadre, demonstram que o caso não é nada excepcional, indicando, ao contrário, que levar um menino ao sertão é apenas um costume a que todos já se habituaram.
Referi-me, páginas atrás, ao testamento de Pero de Araújo, falecido no longínquo sertão de Paraupava, na bandeira de Antônio Pedroso. Pois aí também surge a figura de um menino-homem. É
o próprio bandeirante quem, pouco antes de morrer, escreve em seu testamento estas linhas:
"Declaro que trazia em minha companhia um menino, filho de Sebastião de Freitas, o qual trazia dois negros e um ficou para morrer na aldeia dos Galachos..."
Pero não registra a idade do menor mas, por mais de uma vez, no seu testamento, se refere ao menino, filho do capitão Sebastião de Freitas, pedindo aos seus companheiros que lhe
entreguem as ferramentas que enumera e que pertencem ao mesmo.
Manuel de Campos Bicudo leva seu filho Antônio Pires de Campos na grande bandeira
que vai até as cabeceiras do rio Tapajós
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro
Há mais, ainda.
Em 1670 falece a senhora Sebastiana Leite da Silva, viúva do capitão Bento Pires Ribeiro, deixando alguns filhos menores. O juiz nomeia, então, curador dos órfãos, o capitão Fernão Dias Pais, irmão
da falecida. Numa das audiências, comparece em juízo o grande bandeirante para prestar declarações sobre os órfãos e, perguntado pelo menor Francisco, que tem dezesseis anos de idade, declara que "o levará elle dito curador ao descobrimento da
prata em serviço de Sua Alteza por ter idade e ser capaz".
Aos dezesseis anos um rapazola, como se vê, pode enfrentar os mil perigos das selvas porque já tem idade e é capaz. E assim é, em verdade, porque, antes disso, já o menor se
apresta para seguir as pegadas paternas.
No inventário de Lourenço Castanho Taques, o velho, encontram-se estas linhas sugestivas:
"Diz Lourenço Castanho Taques (o moço), tutor e curador de seu irmão José Pompeu, orfam, que elle supplicante o leva para o sertão em sua companhia e para seu aviamento necessita da
quantia de 20$000".
Esse órfão, que se acha em véspera de partir para o sertão, pode ser incluído no número dos meninos-homens do seiscentismo, pois tem apenas quinze anos de idade.
Por morte de Domingos Jorge Velho (o primeiro desse nome) lavra-se o termo de curadoria para o órfão Simão, ainda de menor idade. A curadora será a própria viúva que se compromete, sob o
juramento dos santos evangelhos, "a bem e verdadeiramente doutrinar e ensinar o dito orfam seu filho ensinando todos os bons costumes e administrando seus bens..." O órfão, todavia, apesar de menor exigindo tutela, não comparece em juízo.
Por quê?
Por isto: "o dito orfam ora está no sertão".
É que, já aos quatorze anos de idade, o paulista se encontra em idade militar. Quando a vila se acha sob a ameaça de invasão, do lado do mar ou do lado das selvas, os homens
são imediatamente chamados às armas, "de quatorze annos arriba" [1].
É, por exemplo, o que acontece numa das vezes em que a vila de Santos se vê ameaçada pelas naus corsárias de Joris Van Spilberg e em que dom Francisco de Sousa chama às armas, para
acudirem ao litoral, todos os que estão em condições de ser "gente de guerra" de "quatorze annos arriba".
E é o que sucede também quando os paulistas vão em auxílio do Nordeste, "para a restauração de Pernambuquo", em poder dos holandeses, ou em socorro da Bahia ameaçada pelos
batavos. A esse respeito, não deixa de ser interessante registrar que, em 21 de junho de 1624, prestando declarações ao juiz de órfãos Manuel da Gama, afirma João Moreira, tutor dos órfãos de seu irmão Pedro Moreira: "que o órfam José (de 14
anos de idade) estava na cidade da Bahia em serviço de Sua Magestade para onde fôra de soccorro por soldado em companhia do capitão Antonio Raposo Tavares".
Ao menor Domingos, de treze anos de idade, filho de Miguel Garcia Velho, cabe, na partilha dos bens, um adereço prateado de espada e adaga.
Que gasta um curador com o filho de um bandeirante falecido?
Pouca coisa. Pouca, mas essencial. Como é o caso do menor Bento, filho do capitão Bento Pires Ribeiro. Esse menor tem treze anos de idade e o seu curador, Fernão Dias Pais, comparece em
juízo para prestar contas. E aqui está o que, além de roupa, despendeu o "caçador de esmeraldas" com esse menino de treze anos:
"Polvora, 11 vintens - Espingarda, 7$500 - De lhe botarem grão na espingarda, meia pataca - De um talabarte, pataca e meia - Polvora e chumbo, 2 tostões - Ao espadeiro, quatro patacas
do concerto da espada".
E é assim, nessa forja de Titãs, que se vão formando os gigantes que, em embates violentos, vão impelindo para longe, até os contrafortes dos Andes, a muralha de Tordesilhas...
Gualteira (capuz) de couro de anta
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro
[1] "... ordenaram com ordem do snr. governador que todos os moradores déssem ról de
tôda a gente de guerra que em suas casas tivessem, a saber: filhos de quatorze anos arriba e os escravos" etc. - Atas, v. II, pág. 261.
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