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NO TEMPO DOS BANDEIRANTES
[23] A prisão de Raposo Tavares
Incursões espanholas na capitania - Onde está o Meridiano de Tordesilhas? - Indignação popular - O comodismo da Câmara e um "rush" malogrado
os princípios do século, é a Capitania de São Paulo, vezes sem conta, assaltada pelos silvícolas das tribos
marginais do Anhembi e Jeticati (rios Tietê e Grande), sendo que, em muitas dessas devastadoras incursões, investem contra a própria vila.
O barão do Rio Branco, confirmado por Basílio de Magalhães, atribui a esses ataques a origem do bandeirismo, no seu tumultuoso ciclo da caça ao índio, aliados à necessidade irremediável
de braços para a lavoura. Escreve Rio Branco:
"... os paulistas, que foram os operários diligentes da civilização do Brasil, no centro e no sul... atacados pelos selvagens, a princípio limitaram-se à defensiva, depois tomaram a
resolução de se desembaraçar dos seus inimigos".
Acontece, porém, que não são apenas as hordas carijós que, com seus cocares heráldicos e envoltos nas suas peles mosqueadas de jaguar, devastam o planalto. Após a fundação do burgo
hispânico de Vila Rica, por don Rui Diaz Melgarejo, "encomenderos" ferozes dali se irradiam, à caça de índios, chegando muitas vezes a invadir terras da Coroa lusitana, com a cumplicidade das autoridades guairenhas e a superior indiferença
dos capitães-mores do Brasil.
Nessas condições, e porque a linha demarcatória do meridiano do papa Alexandre VI é apenas imaginária, tornam-se contínuos os atritos entre paulistas e espanhóis, pois estes chegam, não
poucas vezes, até as proximidades da vila de São Paulo.
Como repercutem, porém, tais episódios na Câmara paulista?
A Câmara vive, anos seguidos, premida pelos alvarás e cartas régias do Reino, proibindo que os paulistas "vão ao sertão". Os próprios ouvidores que, de tempos a tempos, vêm à vila passar
correição, não se esquecem de recomendar muita obediência àquelas ordens, exigindo dos piratininganos um perfeito "bom comportamento".
Os senhores vereadores não desconhecem as invasões dos hispanos de Vila Rica. Sabem que, escorados no meridiano de Tordesilhas, os missionários castelhanos vão se apossando das terras,
semeando reduções pelo vale do Paranapanema, até as proximidades de São Paulo, com o indisfarçável objetivo de estabelecer uma conquista cimentada por hábil interdito retinendaes possessionis.
Na sessão do dia 2 de outubro de 1627, tendo sido dada a palavra ao procurador Cosme da Silva, este requereu "que avizassem o capitam-mór, por carta e por requerimento, de como os
ispanóis de villa rica e mais povoações vinhão dentro das terras da crôa de portugall e cada vez se vinhão aposando mais delles..."
Mas os "homens bons", evidentemente, não querem complicações com a Corte e o Reino: remetem-se a um prudente mutismo e a uma cômoda inação, porque não se tem conhecimento da menor
providência para pôr um fim à atividade dos espanhóis.
Há, todavia, quem discorde do estranho comodismo dos "senhores do Conselho" eleitos para esse ano de 1627. Entre a legião dos endemoniados "rebeldes", estão dois sertanistas que, mais
tarde, se revelarão, agigantando-se: Paulo do Amaral e Antônio Raposo Tavares. Às ocultas, os dois grandes sertanistas procuram formar uma poderosa bandeira para barrar a audaciosa infiltração espanhola, vinda do Sul para o Norte e de Oeste para
Leste com o claro, evidente, indissimulável intuito de impedir a expansão geográfica do Brasil, teoricamente contida pela linha tordesilhana.
Raposo Tavares, que conta, então, 28 anos de idade, mora em Quitaúna e, com Paulo do Amaral, incita a população à revolta, concitando-a a integrar-se nas hostes vingadoras. Os
preparativos vão adiantados, quando a Câmara toma conhecimento deles e irrita-se, não encontrando outra solução senão esta: prender os rebeldes.
No dia 25 de setembro - uma semana antes, portanto, de pedir providências contra os espanhóis que invadem terras da Coroa de Portugal - o mesmíssimo procurador Cosme da Silva "requereu
aos ofisiais que se dirigisen ao ouvidor, e lhe requeresen que fosse prender a ãt.º raposo tavares e a paullo do amarall por seren amotinadores deste povo e mandaren allevantar gente para iren ao sertam"...
A Câmara não quer, ela própria, prender os bandeirantes rebeldes. E, matreiramente, atira a brasa nas mãos do senhor ouvidor que, por sua vez, com não menor astúcia, a devolve à Câmara,
mandando o juiz Simão Alves efetuar a complicada diligência.
"... e logo na dita camara foi chamado o dito ouvidor e se lhe fez saber o requerimento asima, do procurador do conselho ao coall elle respondeu que estava prestes p. lhe dar
cumprimento e foi de parecer com os ofisiais da camara que se passase mandato p. um juiz, o juiz semeão allves que va com uma duzia de homens nomeados no mandato, p. trazerem prezos a esta villa a paullo do amarall e antonio raposo tavares e não
nos podendo prender lhe tomarão a pólvora e o xumbo que levam; os coaes irão até o termo de maraxubava e dalli não passarão; e mais, prenderá a todos que vão ao sertam..."
Presos os dois "amotinadores", fracassa a grande arremetida dos paulistas contra os espanhóis da província do Guairá. A Câmara, certamente, exulta e volta, tranqüilamente, às suas
comodidades, embora de olho pregado na população que agora, mais que nunca, freme de indignação e, de punhos cerrados, espera...
A sua vez há de chegar...
Meias de cabrestilho
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro
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