Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0380c05.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 07/28/07 20:00:51
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BELMONTE - BIBLIOTECA NM
No tempo dos bandeirantes [05]

Conhecido principalmente pela atividade cartunística nos jornais paulistanos, e pelo seu personagem Juca Pato, o desenhista Benedito Bastos Barreto (nascido na capital paulista em 15/5/1896 e ali falecido em 19/4/1947), o Belmonte, foi autor de inúmeros livros, entre eles a obra No tempo dos Bandeirantes, que teve sua quarta e última edição publicada logo após a sua morte.

A edição virtual preparada por Novo Milênio objetiva resgatar esse trabalho, que, mesmo sendo baseado em pesquisas sem pleno rigor histórico, ajuda a desvendar particularidades da vida paulistana, paulista e, por conseqüência, também da Baixada Santista. Esta edição virtual é baseada na quarta edição, "revista, aumentada e definitiva", publicada pela Editora Melhoramentos, São Paulo, sem data (cerca de 1948), com 232 páginas e ilustrações do próprio Belmonte (obra no acervo do professor e pesquisador de História Francisco Carballa, de Santos/SP - ortografia atualizada nesta transcrição):

Leva para a página anterior[...]                                             NO TEMPO DOS BANDEIRANTES

[05] A casa da vila

O mobiliário - Painéis, lâminas e retábulos - Pratarias e louças - Guarda-portas e cortinados - Alcatifas, tapetes e coxins - A misteriosa "tamboladeira"

casa da vila não difere em nada da casa do sítio. Terreiras ou assobradadas, com seus repartimentos de taipa, seus corredores, suas camarinhas, são as mesmas, de paredões desnudos, umas com alpendre, outras com balcão, mas todas brancas, frias, pesadas e incaracterísticas.

Diferem-se apenas internamente, não por si próprias mas pelo cunho que lhes imprime o morador ao mobiliá-las. Mobiliar uma casa, no começo do século, é evidentemente um eufemismo, pois ao sobriedade forçada é característica nos primeiros tempos do seiscentismo.

Mas, com o correr dos anos, tornando-se a vila mais enobrecida, vai-se notando um certo gosto pelo conforto e o mobiliário se multiplica com peças vindas do Reino ou executadas na terra.

À rede e ao catre dos primeiros anos, sucedem-se as camas com seu sobrecéu e seus pavilhões. As humildes cadeiras rasas substituem-se por cadeiras de estado ou de espalda, com suas pregarias. Após as toscas mesas de missagras e de engonços, vêm os bufetes torneados com suas gavetas...

Isso tudo, porém, é muito relativo. Num século em que as obras de marcenaria, de entalhe e de torno ensaiam os primeiros passos em Portugal, após o domínio do alfarge e da chamada arte indo-portuguesa, seria inútil procurar na vila do planalto indícios do bom gosto e do sentimento artístico do paulista. Estes podem existir. Não encontram, porém, ambiente para manifestar-se, nem meios para expandir-se. Perdida no deserto, em luta com o sertão, Piratininga vive como pode e não como desejaria viver.


Arca seiscentista, com ferragens e gavetas
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Isso explica por que, em não poucas residências da vila, vamos encontrar móveis e peças caídos em desuso no Reino. O advento das obras de torno e de entalhe conjugados, em Portugal, no início do seiscentismo, põe logo em decadência obras de marcenaria com aplicações, de que encontramos em Piratininga não poucos exemplares, com seus toques de preciosismo: bufetes marchetados de marfim, contadores com aplicações de tartaruga, armários com incrustações de madrepérola, espelhos guarnecidos de tartaruga ou marfim... Restos da arte orientalista decadente no Reino.

As arcas que, nos inventários, surgem invariavelmente com o nome de caixas, são encontradas em toda parte, pois elas, na vastidão dos seus seis, oito ou nove palmos, substituem quase todos os móveis da casa. Como o tonel das Danaides, parecem não ter fundo, e tanto servem para guardar roupas, louças e ferramentas, como, quando fechadas, se prestam solicitamente a servir de bancos. Daí, posteriormente, o aparecimento do escabelo habilmente adaptado às suas tampas.

A presença da arca, todavia, não impede que nas casas de pessoas de maior lustre apareçam as canastras encouradas e os baús, certamente para a guarda das roupas dos dias de festa, os mantos de recamadilho, as capilhas de cetim, e os chapéus de Bardá.


Tipo de casa urbana, com uma camarinha
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Às vezes, encontramos nessas casas indícios, não só de conforto, mas até mesmo de luxo. No chão, alcatifas de seda, ou tapetes de lã, sobre os quais descansam coxins de damasco, de palha de Angola; nas portas, cortinas de canequim [1] com suas franjas entremeias, ou cortinados de cochonilha vermelha. Nas paredes, espelhos dourados, ou de tartaruga com seu pavilhão de damasco vermelho, painéis de madamas ou de santos...

Esses quadros, muitas vezes, parecem em número excessivo, em contraste com a carência de tantos objetos de necessidade imediata. O famoso bandeirante Gaspar Barreto possui em sua casa, em 1629, nada menos de doze painéis... Antônio Ribeiro de Morais possui, entre seus bens, seis quadros de Roma, grandes, seis quadros de Roma, pequenos, e três quadros de Roma, médios, além de uma lâmina de Santa Catarina, feitio de Roma e mais duas lâminas. São, evidentemente, quadros sacros. Tanto que, ao fazer seu testamento, escreve Antônio Ribeiro:

"Declaro que deixo ao Colégio desta vila os painéis que tenho na sala, porque assim me encomendou minha mulher e lhes peço aos reverendos padres me digam algumas missas..."

Suzana de Góis contenta-se com cinco retábulos, enquanto Miguel Garcia Velho possui, apenas, um painel de imperador que constitui um verdadeiro mistério iconográfico. Igualmente misteriosos são os quadros que ornamentam a sala do capitão Pero Vaz de Barros [2]: doze painéis de madama.

Leonor de Siqueira, apesar de ter uma das maiores fortunas da vila, possui apenas uma lâmina da Virgem Nossa Senhora e uma imagem de Cristo, enquanto Mateus Rodrigues da Silva, mais nacionalista que os outros, ornamenta as paredes de sua casa com três painéis grandes feitos na terra e três painéis pequenos feitos na terra, o que indica existir no planalto, entre o rude povo bandeirante, um homem que sabe pintar. Será este o homem citado no inventário de Manuel da Fonseca? "...Deve-me João de Moura o pintor morador nesta vila de restos de conta de aguardente que me vendeu em sua casa 4$500...".

Mas, se deixarmos a sala e passarmos adiante, ao lar de um desses senhores de grande séquito, encontraremos sobre as mesas e os bufetes de cedro ou dentro dos armários de vinhático, tigelas, alguidares, jarros, pratos e potes de louça do Reino e da Índia, púcaros, colheres, garfos, salvas, castiçais e tamboladeiras de prata. Palanganas de pau, frasqueiras com seus quatro ou seis frascos, alguns copos de vidro, aqui um lampião (apenas um em todo o século), ali um lampadário. Sobre as mesas, toalhas e pano de linho ou Ruã, toalhas de bretanha, guardanapos de algodão ou de linho, toalhas de água às mãos, toalhas com sua barafunda...

Se subirmos até os quartos, lá encontraremos as camas torneadas, com suas cortinas e sobrecéu com franja de retrós, colcha de sobrecama de chamalote e ramagens de flores de ouro forrada de tafetá amarelo com sua franja de ouro fino. Ou, como no quarto de Isabel Sobrinha, uma colcha broslada de vermelho, franjas amarelas, bordas amarelas, o meio verde-mar setim da Índia... Cobertores de chamalote forrado de baeta [3], panos de cama de sarafina cobertas de damasco, travesseiros de linho de Holanda com rendas, ou de seda, lençóis de algodão ou de linho... Alcatifas... Coxins...

O gosto do bandeirante vai se apurando. E à medida que o amor ao conforto vai aumentando, o ímpeto do bandeirismo agressivo entra em declínio...


Cadeira de espaldar
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Alcântara Machado, arrolando objetos de uso no lar seiscentista, não conseguiu descobrir o que é a tamboladeira, utensílio de prata que se encontra em 60 ou 70 por cento dos inventários. E, em verdade, dos inúmeros dicionários que consultei, inclusive Bluteau, Viterbo e Frei Domingos, apenas Cândido de Figueiredo e Aulete a registram, definindo-a como um disco de prata, relevado no centro e nos bordos, como fundo de garrafa, com que se avalia a grossura do vinho.

É difícil aceitar a definição. Parece-me que, para função tão simples, não há necessidade de objeto tão volumoso e tão complicado, pois vamos encontrar tamboladeiras de gomos, com duas asas, com seu pé, com salva... Um disco de prata nunca se casa bem com uma salva, mesmo quando esse disco tem um pé e um par de asas.

Além disso, se há tamboladeiras pequenas, pesando algumas oitavas, há um grande número delas com peso considerável, peso talvez excessivo para objeto destinado a funções tão modestas. Cristóvão da Cunha possui uma tamboladeira grande pesando 80 oitavas. A de Antônio de Azevedo Sá pesa 120 oitavas (720 gramas); a de Antônio Ribeiro de Morais, 17 onças (850 gramas); a de Henrique da Cunha, 11 onças e meia (575 gramas); a de Jerônimo Bueno, 104 oitavas (624 gramas).

Esses pesos indicam que tais objetos são maiores que muitos púcaros de prata e demonstram como o seu tamanho varia. Além disso, é rara a pessoa que possui apenas uma tamboladeira, pois elas aparecem nos Inventários sempre acompanhadas de outras, sendo que o seu peso vai de 8 a 9 oitavas até quase um quilo. Trata-se, pois, sem dúvida nenhuma, de uma vasilha de uso corrente, quase indispensável no lar - e um simples disco de prata para avaliar a grossura do vinho não é tão imprescindível, mesmo numa terra de Bacos e Noés...

Esses móveis e objetos que, até certo ponto, nos indicam uma vida de conforto e de luxo, só aparecem nos meados do século. Os primeiros anos do seiscentismo transcorrem ainda dentro de um quase pauperismo. Tanto que as camas torneadas, aquelas obras-primas de torno com acentuadas influências renascentistas na galeria dos pés e nas lanças do dossel, vão aparecer quase no dealbar do século de setecentos.

Antes disso impera a mais irremediável das sobriedades - sobriedade que outra coisa não é senão pobreza e de que é um curioso paradigma o surpreendente caso da cama de Gonçalo Pires.

O episódio é típico e merece relato minucioso.


Candeeiro de pendurar
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro


[1] Tecido de algodão.


[2] Houve, em São Paulo, ao tempo, três Peros Vaz de Barros. Um deles, falecido em 1655 e cujo testamento, ainda inédito, li no Arquivo do Estado, morreu solteiro e era tio deste.

 

[3] Tecido de lã.


[...]Leva para a página seguinte da série