NO TEMPO DOS BANDEIRANTES
[00] Este livro...
...não é, propriamente, um livro de História, infalível e definitivo. Poder-se-ia, antes, classificá-lo na categoria dos livros subsidiários, se é que este trabalho merece
classificação. Pareceu-me, contudo, quando o planejei, o escrevi e o ilustrei, que um livro deste gênero poderia ser útil aos espíritos curiosos das tradições de sua terra, aos literatos que desejem tratar do seiscentismo paulista e aos artistas
que se proponham fixar na tela ou no "Whatman" episódios deste ciclo de nossa História, tão fascinante e ainda tão obscuro. Como, porém, não é possível a infalibilidade em assuntos históricos, o autor receberá como graças todas as correções
que a Crítica fizer aos seus prováveis erros e cochilos...
Quanto aos historiadores, estou certo de que perdoarão o humorista curioso que, com tanta sem-cerimônia, mas com a melhor das intenções, lhes invadiu os domínios.
B.
[00] O historiador de Piratininga
São Paulo não é uma terra fecunda em caricaturistas. Talentos, há por aí. Sempre houve. Mas não têm ambiente nem campo. Os diários raramente estampam caricaturas.
Revistas, poucas têm nascido e sobrevivido. E a falta de estímulo e oportunidades faz com que as melhores vocações se estiolem em silêncio e nas trevas, sem as florações que iluminariam a nossa arte e o nosso pensamento em graça, ironia ou
sarcasmo.
Belmonte, como Voltolino, é uma grande e bela e nobre exceção. Lutou contra o meio e venceu-o, submetendo-o senhorilmente a uma admiração que durou intata, crescente, por trinta anos. No
decorrer desse largo prazo, foi ele o dono da caricatura paulista. Não houve jornal ou revista que precisasse de um lápis e não recorresse ao seu, monopolisticamente. Por isso, ao apagar-se, abriu um vácuo, que há de ser preenchido, mas ainda não
sei como.
Não falemos do traço de Belmonte, elegante e sutil, que o público tanto conheceu. Digamos, antes, o que nem todos sabem, isto é, que neste artista, ao contrário do que é comum, tudo era
dele mesmo, o traço, a idéia, a interpretação. E digamos, sobretudo, que ele foi um sorriso e uma gargalhada a serviço de ideais puros, jamais se tendo maculado em empreitadas por contrato de homens, empresas, partidos ou qualquer coisa que não
fosse o seu povo e a sua terra.
Belmonte foi maior como caricaturista, que viveu e marcou toda uma época. Mas nele fulgurou também o ilustrador, na imprensa e nos livros, com uma arte que nem por ter sido abundante
deixou de ser alta e magnífica. Crônicas, contos para crianças e para adultos, romances e principalmente a história de São Paulo, encerram páginas que figurarão como criações artísticas e como documentos fiéis da nossa era e das eras idas, que ele
retratou com talento alicerçado em exatidão. Seus desenhos, que os colecionadores disputam, permanecerão preciosos nos anais históricos, políticos e sociais de São Paulo, como fonte excelente e de confiança para os futuros historiadores e ensaístas
que queiram fixar o quadro da vida paulista e brasileira de três décadas decisivas.
O caricaturista e ilustrador dedicou-se também à crônica e à história, lá com o mesmo humor, aqui com saber e honestos cuidados de pesquisador profundo e minudente. Empolgaram-no
especialmente os ciclos bandeirantes, que descreveu e ilustrou com entusiasmo e amor. Mas sentiu toda a história de Piratininga, desde João Ramalho, Anchieta e Tibiriçá, rememorando-a episódio por episódio tanto com a pena como com o lápis, em
páginas de estudo e de evocação que ressuscitam o passado e são a biografia da pequenina aldeia que agigantou o Brasil até o Prata e até os Andes.
Este livro, No tempo dos Bandeirantes, de que já se esgotaram três edições, é a reconstituição ao mesmo tempo artística e escrupulosa da fase heróica de Piratininga, nos seus
bastidores, por dentro. Nela os nossos avós comparecem a nossos olhos com seus trajes, seus utensílios, suas habitações, suas armas e suas lutas, em usos e costumes que as crônicas e os desenhos fotografam vividamente, como se houvéssemos
retrogradado nos séculos e percorrêssemos agora as vielas e a sociedade da aldeia que foi a forja mestra da nacionalidade.
Belmonte brilhará em eternas luzes como caricaturista e ilustrador, mas não se ofuscará o historiador que somou a arte ao saber para perpetuar, nos dias escuros e opacos, os dias
luminosos, gloriosamente solares, da nossa Piratininga.
São Paulo, 25 de janeiro de 1948.
Frontispício da 4ª edição
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