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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - REI PAULISTA
Não quis ser rei

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Em fevereiro de 1615, o paulistano Amador Bueno da Ribeira desceu a Serra do Mar com armas e um exército para ajudar os moradores de Santos e São Vicente a combater os piratas holandeses comandados por Joris van Spielbergen. Na época (1580 a 1640), Portugal estava sob o domínio espanhol, e um dos episódios marcantes foi quando um grupo de paulistas não quis retornar ao domínio português, proclamando Amador Bueno como seu rei, o que ele não aceitou.

Essa história também foi relatada pelo jornal paulistano Folha da Manhã, na edição de domingo, 24 de abril de 1938, III Seção, página VIII (com grafia atualizada):


Imagem: ilustração publicada com a matéria

Amador Bueno, o homem que não quis ser rei

A Folha da Manhã publica um capítulo inédito do romance histórico com que o sr. Aureliano Leite concorrerá ao Congresso comemorativo do primeiro centenário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

Realizar-se-á dentro em breve o Congresso de História comemorativo do primeiro centenário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Convidado a participar desse certame, o ilustre escritor Aureliano Leite já tem quase concluída a sua contribuição, que será um romance histórico. Neste, que se intitulará "Amador Bueno, o aclamado", é estudado, com precisão, que a fantasia não prejudica, o período em que viveu a grande figura paulista, que se tornou símbolo da lealdade e da austeridade dos primeiros povoadores de Piratininga.

No capítulo, ainda inédito, que a 'Folha da Manhã' publica hoje, o sr. Aureliano Leite focaliza, com vivacidade de estilo e com rigor histórico, a cena dramática da aclamação do rude paulista, que não quis ser rei. É o capítulo XIII do romance, subordinado ao título: "De como o aclamado foi d. João IV".

Pela hora do meio-dia, Amador Bueno e as figuras que o acompanhavam sofrearam os animais, montados no Guará, em frente da casa de entrada do venerando chefe paulista.

A vila, excitada desde a véspera, continuava em polvorosa. A cavalgada daquela chegada acicatou mais o seu entusiasmo.

Ninguém, nesse 1º de abril de 1641, se dirigira para o trabalho. Toda a gente da lida das culturas dos campos permanecera no povoado, emendando o domingo da véspera à segunda-feira desse dia.

Indivíduos de todas as classes, cores e idades iam e vinham, nas ruas principais.

As igrejas e capelas conservavam-se de portas escancaradas.

Vigorava uma combinação geral: desse dia em diante, a capitania de S. Vicente, livre de jugos estranhos,possuiria o seu governo e o seu rei.

A custo, Amador e comitiva lograram penetrar na casa do primeiro, cujos cômodos do andar térreo se mostravam invadidos das principais pessoas do lugar.

Nos dois ângulos superiores da vila, reuniam-se elementos para dois bandos pomposos com bandeiras, troféus, palmas e paveses, a fim de, em certo momento, descerem decisivamente e se encontrarem e se fundirem no pátio de S. Bento.

Armavam-se luminárias para a noite, nas casas e templos.

Em vários pátios, os negros levantavam toros de lenha, dois a dois, em verdadeiras torres quadrangulares, para fogueiras monstros.

Assim que Amador se abancou na sala dos suas audiências, o povo, na rua, prorrompeu em vivas ao "nosso rei Amador Bueno".

Num minuto, o rastilho se inflamou e comunicou-se a toda a vila. Por cantos, vilas, ruas e terreiros, estrugiram aclamações:

- Viva Amador Bueno, nosso Rei e Senhor!

Dentro das peças do sobrado do velho paulista, o entusiasmo não se aquecera menos, impedindo ou abafando-lhe a voz que morria nos seus lábios desmaiados e trêmulos. Depois de muito esforço, ele alcançou um relativo silêncio e chegou a proferir:

- Honrados patrícios!

A esse vocativo, respondeu a assistência comprimida, nervosa, gesticulante, em brados altos:

- Viva Amador Bueno, nosso Rei e Senhor!

Amador passou também a gritar, a esbofar-se, baldadamente, sem ser ouvido. Mas percebia-se a sua recusa formal e veemente. As caretas do rosto angustiado, com os cabelos grisalhos empastados de suor, e as mãos crispadas, expressavam o seu completo desacordo com aquele desatino.

Mas, a uma pausa repentina, de novo conseguiu dizer e fazer perceber:

- Honrados patrícios! Quereis-me para vosso rei e nem sequer me acatais! E nem sequer consentis em ouvir-me!

O ancião teve que parar, tomar fôlego, sufocado pelas lágrimas...

Então, a assistência, comovida, aquietou-se, esperando aflita as palavras do rijo homem, a quem um pranto sincero queimava as faces morenas e vincadas.

Mas, num instante, recobrando toda a energia perdida, aquele varão reassumiu sua expressão viril e pôde articular, com veemência, e ser escutado, em quase silêncio:

- Honrados patrícios! É impossível aceitar a coroa que me quereis colocar sobre a cabeça. Jamais concordarei com isso. "E, se por um instante me submetesse ao vosso entusiasmo, ao vosso desvario, seria só para assinar um decreto declarando traidor à Pátria e hostil à prosperidade da América qualquer outro que, neste século XVII, o houvesse de aceitar. E a um tal decreto seguiria logo o da minha abdicação no príncipe de sangue a quem compete essa coroa!"

- Nada disso! - gritam vozes alteradas. Amador Bueno tem que ser rei, queira ou não queira!

Na confusão do novo alarido, ouvem-se estas frases:

- Do próprio reino nos vêm exemplos a imitar... A monarquia portuguesa e o próprio Portugal não existiriam, se Affonso Henriques, filho do conde Henrique de Borgonha, não se tivesse revoltado contra sua própria mãe, a formosa dona Thereza de Castela e Leão, a quem chegou a prender numa fortaleza...

Ao que uma outra voz acrescenta:

- E o caso menos antigo do Mestre de Avis? Tinha ele direito à coroa, quando foi ao paço real e ajudou a matar o conde Andeiro? Não; estamos fartos de ser mandados por estranhos no nosso território...

Novas aclamações seguiram-se:

- Viva Amador Bueno, nosso Rei e Senhor!

Amador cobriu com as mãos a cabeça, premindo as veias que pareciam querer estourar-lhe os parietais.

Daí a pouco, levantaram-se em torno de seu vulto punhos fechados. Chegaram a ameaçá-lo de morte...

A repugnância do eleito aumentara a obstinação popular. A arraia-miúda, com aguardente à discrição, representava bem o seu papel. Da rua, gritam rostos congestos, dentes cerrados, pelas janelas com as rótulas dobradas para o alto:

- O cetro ou a morte!

A esse ameaço, referve nos vasos do venerando personagem o sangue destemido. Levantou-se, rápido, e, numa decisão inopinada, saiu do recinto, caminhou para a sua panóplia, arrancou do gancho uma espada, pô-la nua e, alçando-a, abriu passagem, galgou a porta da rua e se dirigiu, em passos apressados, para o Mosteiro de S. Bento, onde tinha sede a ordem religiosa mais simpatizada da Capitania.

Dando com ele, descoberto, grave, de espada desembainhada, em punho, o povo prorrompeu em novas aclamações:

- Viva Amador Bueno, nosso Rei e Senhor!

A esses brados repetidos, ele redarguia, repetidamente, com voz clara e enérgica:

- Viva d. João IV, nosso Rei e Senhor, pelo qual darei a vida!

E continuava, de passo firme, ereto e solene, sempre na mão a nua espada, a flamejar ao sol descambante que, naquela hora, lavava de começo a fim a rua "direita da Misericórdia a Santo Antonio" e palhetava de ouro e prata o piso novo de saibro, aterrada recentemente a via pública "per fazer nela laguoas".

Amador venceu logo a curta distância de sua casa assobradada, nessa rua, perpendicular à outra "direita", que levava ao mosteiro e Abadia de S. Bento.

O povo e os bandos pomposos organizados aglomeravam-se para os lados altos do povoado, principalmente em torno do prédio do Conselho e da Câmara, onde se ultimaria a solenidade da aclamação.

Logo, porém, que a todos chegara a notícia de que Amador abandonara a casa e descera o povoado, afluiu a massa, em tropelia, para o pátio de S. Bento.

Amador já penetrara os umbrais do pequeno mosteiro, ao lado da humilde abadia, um e outra substituídos depois, por Fernão Dias Paes, nos que seriam mais tarde derrubados para darem lugar à pomposa edificação hodierna. Os monges beneditinos, observando logo o furor cívico do povo, capaz de todos os excessos, fizeram rodar nos gonzos, contra ele, portas e portões pesados.

O habitual acatamento à igreja, ao mosteiro e aos seus "regulares", que souberam manter-se em postura discreta e simpática, na querela com os jesuítas, não conseguirá impedir as intimidações que chegaram a efetivar-se em ombradas às portas e aos portões aldravados e escorados.

Isto era acompanhado sempre de berros e exigências:

- Que venha Amador Bueno para fora!

- Viva Amador Bueno, nosso Rei e Senhor!

Num dado momento, um coro de estampidos atroou no pátio, repetidamente. Eram salvas de arcabuzes, escopetas e pistolas, com que os paulistas tradicionalmente festejam certos atos de sua vida social.

O abade d. João da Graça e Amador Bueno não perderam, entretanto, a cabeça. Conseguiram fazer entrar no Mosteiro, por aberturas dos fundos da propriedade, outros respeitáveis sacerdotes regulares e seculares, estimados do povo, bem assim várias figuras austeras de todas as facções, que já se haviam rendido aos sensatos argumentos do "aclamado" e do próprio chefe beneditino.

Às pressas, juntaram-se, lá dentro, Lourenço Castanho Taques, opulento e generoso, filho do velho Pedro Taques; seu irmão, Guilherme Pompeu Amaral, pai do futuro Creso, desse mesmo nome; Antonio Raposo Tavares; vários Camargos, inclusive Claudio Furquim, casado em terceiras núpcias, nessa família; alguns oficiais da Câmara etc.

Acrescidos desses prestigiosos elementos, os frades da comunidade, paramentados com suas vestes rituais, alçada à frente de tudo uma imensa cruz de madeira pintada de negro, seguida das irmandades e confrarias, também com suas opas e balandraus, mandaram abrir de par em par a portaria do mosteiro e desceram, impressionantemente, até ao povo amotinado.

Ao aparecimento dessa formação aparatosa, sucedeu um rápido silêncio.

Destacou-se do prestito d. Abade de S. Bento. Satisfeito com a metamorfose vingada pelo espetáculo concebido por sua imaginação, numa prédica apropriada e inteligente, digna da fama de sua ordem, a qual merecia os melhores qualificativos, como cultora das letras e ciências, chamou as suas ovelhas à razão e suplicou-lhes, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, que ouvissem e acatassem o velho chefe, pronto para lhes dirigir palavras patriarcais e sábias. Assim terminou a sua breve exortação:

- Meus filhos! Meu bom povo paulista! Sois vós que bem podeis acertadamente dizer: Mitem animam agresti sub tegmine servo! (Oculto uma alma benigna sob uma rude aparência). Pois bem, mostrai mais uma vez a benignidade de vossa alma, atendendo ao que vos vai dizer d. Amador Bueno!

Muitos daqueles homens - nobres e peões -, antes exaltadíssimos, impressionados com o aparato religioso que lhes surgira à frente e vencidos pela tocante prática de d. João da Graça, ajoelharam-se respeitosamente.

Amador Bueno discursou, agora, como um autêntico rei, para vassalos respeitosos. A sua lealdade transfigurou-o, tornando-o eloquente:

- Honrados patrícios! Reflexionemos um pouco. Isto nos fará quebrarmos a intrepidez de nossos ímpetos. O reino de que a nossa S. Paulo e as demais vilas desta Capitania constituem uma valiosa parte, no estado do Brasil, pertence à Sereníssima Casa de Bragança. "Dele se acharia esta em posse pacífica, desde o dia da morte do Cardeal el-rei d. Henrique, se a violência dos monarcas espanhóis não houvesse sufocado esse direito". Esta é a razão primordial pela qual recuso a coroa que me quereis colocar à cabeça. Mas existem outros argumentos ponderosos. "Não é Amador Bueno quem vos poderia servir de rei, que ele não nasceu para passar de uma honrada mediania; os mesmos que hoje o exaltam, amanhã o derrubariam; e teríamos apenas com isso ganho a nossa desunião em vida, e a mofa dos outros, e até o escárnio da posteridade sobre nós". A coroa na minha cabeça não vos poderia dar a paz e a felicidade. "Um trono há mister bases sólidas sobre que assente e uma coroa só pode servir na cabeça que já para ela nasceu formada. os reis são na terra uma família à parte de nós; reinam não só pelo esplendor que herdaram de seus maiores, mas também pela sua família - dos mais reis, que todos eles se protegem, como parentes que são entre si... E são invioláveis e sagrados por Deus! Estão acima de todos os partidos: pairam noutra atmosfera mais livre de ambições e de paixões más do que a nossa..." Meus patrícios! "Não queiramos forçar, não, a época que um dia nos haverá de chegar. Já el-rei de Castela queria ceder de todo este Estado ao herdeiro da Casa de Bragança, contanto que desistisse ele dos direitos a essa nesga de território na Península e já se nos escreve de Lisboa que o nosso rei d. João tem projeto de mandar que o seu herdeiro se intitule Príncipe deste Estado do Brasil. E então esperemos. Andemos devagar, para subir ao pináculo, sem riscos nem fadigas. Algum dia, quando o Deus dos profetas marcar no livro dos destinos, teremos um rei ou título maior, se maior o houver na terra! Mas até esse dia procuremos continuar a viver em paz, cultivando as nossas roças, aformoseando nossos sítios e chácaras e educando os nossos filhos..."

Vozes já gritavam:

- Tem razão... Tem razão...

Amador, pegando-lhes nas palavras:

- "Tenho razão, tenho; vós mesmos m'achais... Pois concluo: recebamos por nosso rei ao herdeiro dos reis que fizeram descobrir e colonizar estas terras; e quando eles e os seus sucessores se esquecerem de nós, mandemos-lhes procuradores expor-lhes nossos direitos". Declaremos, pois, alto e bom som, todos os paulistas, sensatos, soberano do Brasil e da Capitania de S. Vicente, vila de S. Paulo incluída, por graça divina e aclamação dos povos, a d. João IV, "rei de Portugal e dos Algarves, de aquém e de além-mar, em África, senhor da Guiné, e da Conquista, Navegação, Comércio de Etiópia, Arábia, Pérola e da Índia etc." Honrados patrícios! Chegou a ocasião de me acompanhardes no meu brado. Viva d. João IV, nosso Rei e Senhor!

O povo - nobres e arraia-miúda -, sem uma nota discordante, transfigurado no seu novo entusiasmo, repetiu em coro, impressionantemente:

- Viva d. João IV, nosso Rei e Senhor!

O mais curioso foi que os próprios espanhóis, apesar de pungentes desgostos lhes corroerem as vísceras, se dispuseram também a prestar juramento ao novel soberano aclamado, "a fim de não perderem as comodidades que tinham vindo procurar em S. Paulo".

O povoado deixou-se tomar nos braços de exaltação indescritível em torno de nome daquele distante d. João de Bragança, tirado das suas caçadas em suas ricas tapadas de Vila-Viçosa, para o trono que, havia sessenta anos, a nobre Castela arrebatara ao glorioso Portugal.


Imagem: reprodução da página do jornal de 24/4/1938 com a matéria

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