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Amador Bueno, o homem que não quis ser rei
A Folha da Manhã publica um capítulo inédito do romance histórico com que o sr. Aureliano Leite concorrerá ao Congresso comemorativo do primeiro centenário do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
Realizar-se-á dentro em breve o Congresso de História comemorativo do primeiro centenário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Convidado a participar desse
certame, o ilustre escritor Aureliano Leite já tem quase concluída a sua contribuição, que será um romance histórico. Neste, que se intitulará "Amador Bueno, o aclamado", é estudado, com precisão, que a fantasia não prejudica, o período em que
viveu a grande figura paulista, que se tornou símbolo da lealdade e da austeridade dos primeiros povoadores de Piratininga.
No capítulo, ainda inédito, que a 'Folha da Manhã' publica hoje, o sr. Aureliano Leite focaliza, com vivacidade de estilo e com rigor histórico, a cena dramática da
aclamação do rude paulista, que não quis ser rei. É o capítulo XIII do romance, subordinado ao título: "De como o aclamado foi d. João IV".
Pela hora do meio-dia, Amador Bueno e as figuras que o acompanhavam sofrearam os animais, montados no Guará, em frente da casa de entrada do venerando chefe
paulista.
A vila, excitada desde a véspera, continuava em polvorosa. A cavalgada daquela chegada acicatou mais o seu entusiasmo.
Ninguém, nesse 1º de abril de 1641, se dirigira para o trabalho. Toda a gente da lida das culturas dos campos permanecera no povoado, emendando o domingo da véspera à segunda-feira desse dia.
Indivíduos de todas as classes, cores e idades iam e vinham, nas ruas principais.
As igrejas e capelas conservavam-se de portas escancaradas.
Vigorava uma combinação geral: desse dia em diante, a capitania de S. Vicente, livre de jugos estranhos,possuiria o seu governo e o seu rei.
A custo, Amador e comitiva lograram penetrar na casa do primeiro, cujos cômodos do andar térreo se mostravam invadidos das principais pessoas do lugar.
Nos dois ângulos superiores da vila, reuniam-se elementos para dois bandos pomposos com bandeiras, troféus, palmas e paveses, a fim de, em certo momento, descerem decisivamente e se encontrarem e se fundirem no pátio de S. Bento.
Armavam-se luminárias para a noite, nas casas e templos.
Em vários pátios, os negros levantavam toros de lenha, dois a dois, em verdadeiras torres quadrangulares, para fogueiras monstros.
Assim que Amador se abancou na sala dos suas audiências, o povo, na rua, prorrompeu em vivas ao "nosso rei Amador Bueno".
Num minuto, o rastilho se inflamou e comunicou-se a toda a vila. Por cantos, vilas, ruas e terreiros, estrugiram aclamações:
- Viva Amador Bueno, nosso Rei e Senhor!
Dentro das peças do sobrado do velho paulista, o entusiasmo não se aquecera menos, impedindo ou abafando-lhe a voz que morria nos seus lábios desmaiados e trêmulos. Depois de muito esforço, ele alcançou um relativo silêncio e chegou a proferir:
- Honrados patrícios!
A esse vocativo, respondeu a assistência comprimida, nervosa, gesticulante, em brados altos:
- Viva Amador Bueno, nosso Rei e Senhor!
Amador passou também a gritar, a esbofar-se, baldadamente, sem ser ouvido. Mas percebia-se a sua recusa formal e veemente. As caretas do rosto angustiado, com os cabelos grisalhos empastados de suor, e as mãos crispadas, expressavam o seu completo
desacordo com aquele desatino.
Mas, a uma pausa repentina, de novo conseguiu dizer e fazer perceber:
- Honrados patrícios! Quereis-me para vosso rei e nem sequer me acatais! E nem sequer consentis em ouvir-me!
O ancião teve que parar, tomar fôlego, sufocado pelas lágrimas...
Então, a assistência, comovida, aquietou-se, esperando aflita as palavras do rijo homem, a quem um pranto sincero queimava as faces morenas e vincadas.
Mas, num instante, recobrando toda a energia perdida, aquele varão reassumiu sua expressão viril e pôde articular, com veemência, e ser escutado, em quase silêncio:
- Honrados patrícios! É impossível aceitar a coroa que me quereis colocar sobre a cabeça. Jamais concordarei com isso. "E, se por um instante me submetesse ao vosso entusiasmo, ao vosso desvario, seria só para assinar um decreto declarando traidor
à Pátria e hostil à prosperidade da América qualquer outro que, neste século XVII, o houvesse de aceitar. E a um tal decreto seguiria logo o da minha abdicação no príncipe de sangue a quem compete essa coroa!"
- Nada disso! - gritam vozes alteradas. Amador Bueno tem que ser rei, queira ou não queira!
Na confusão do novo alarido, ouvem-se estas frases:
- Do próprio reino nos vêm exemplos a imitar... A monarquia portuguesa e o próprio Portugal não existiriam, se Affonso Henriques, filho do conde Henrique de Borgonha, não se tivesse revoltado contra sua própria mãe, a formosa dona Thereza de
Castela e Leão, a quem chegou a prender numa fortaleza...
Ao que uma outra voz acrescenta:
- E o caso menos antigo do Mestre de Avis? Tinha ele direito à coroa, quando foi ao paço real e ajudou a matar o conde Andeiro? Não; estamos fartos de ser mandados por estranhos no nosso território...
Novas aclamações seguiram-se:
- Viva Amador Bueno, nosso Rei e Senhor!
Amador cobriu com as mãos a cabeça, premindo as veias que pareciam querer estourar-lhe os parietais.
Daí a pouco, levantaram-se em torno de seu vulto punhos fechados. Chegaram a ameaçá-lo de morte...
A repugnância do eleito aumentara a obstinação popular. A arraia-miúda, com aguardente à discrição, representava bem o seu papel. Da rua, gritam rostos congestos, dentes cerrados, pelas janelas com as rótulas dobradas para o alto:
- O cetro ou a morte!
A esse ameaço, referve nos vasos do venerando personagem o sangue destemido. Levantou-se, rápido, e, numa decisão inopinada, saiu do recinto, caminhou para a sua panóplia, arrancou do gancho uma espada, pô-la nua e, alçando-a, abriu passagem,
galgou a porta da rua e se dirigiu, em passos apressados, para o Mosteiro de S. Bento, onde tinha sede a ordem religiosa mais simpatizada da Capitania.
Dando com ele, descoberto, grave, de espada desembainhada, em punho, o povo prorrompeu em novas aclamações:
- Viva Amador Bueno, nosso Rei e Senhor!
A esses brados repetidos, ele redarguia, repetidamente, com voz clara e enérgica:
- Viva d. João IV, nosso Rei e Senhor, pelo qual darei a vida!
E continuava, de passo firme, ereto e solene, sempre na mão a nua espada, a flamejar ao sol descambante que, naquela hora, lavava de começo a fim a rua "direita da Misericórdia a Santo Antonio" e palhetava de ouro e prata o piso novo de saibro,
aterrada recentemente a via pública "per fazer nela laguoas".
Amador venceu logo a curta distância de sua casa assobradada, nessa rua, perpendicular à outra "direita", que levava ao mosteiro e Abadia de S. Bento.
O povo e os bandos pomposos organizados aglomeravam-se para os lados altos do povoado, principalmente em torno do prédio do Conselho e da Câmara, onde se ultimaria a solenidade da aclamação.
Logo, porém, que a todos chegara a notícia de que Amador abandonara a casa e descera o povoado, afluiu a massa, em tropelia, para o pátio de S. Bento.
Amador já penetrara os umbrais do pequeno mosteiro, ao lado da humilde abadia, um e outra substituídos depois, por Fernão Dias Paes, nos que seriam mais tarde derrubados para darem lugar à pomposa edificação hodierna. Os monges beneditinos,
observando logo o furor cívico do povo, capaz de todos os excessos, fizeram rodar nos gonzos, contra ele, portas e portões pesados.
O habitual acatamento à igreja, ao mosteiro e aos seus "regulares", que souberam manter-se em postura discreta e simpática, na querela com os jesuítas, não conseguirá impedir as intimidações que chegaram a efetivar-se em ombradas às portas e aos
portões aldravados e escorados.
Isto era acompanhado sempre de berros e exigências:
- Que venha Amador Bueno para fora!
- Viva Amador Bueno, nosso Rei e Senhor!
Num dado momento, um coro de estampidos atroou no pátio, repetidamente. Eram salvas de arcabuzes, escopetas e pistolas, com que os paulistas tradicionalmente festejam certos atos de sua vida social.
O abade d. João da Graça e Amador Bueno não perderam, entretanto, a cabeça. Conseguiram fazer entrar no Mosteiro, por aberturas dos fundos da propriedade, outros respeitáveis sacerdotes regulares e seculares, estimados do povo, bem assim várias
figuras austeras de todas as facções, que já se haviam rendido aos sensatos argumentos do "aclamado" e do próprio chefe beneditino.
Às pressas, juntaram-se, lá dentro, Lourenço Castanho Taques, opulento e generoso, filho do velho Pedro Taques; seu irmão, Guilherme Pompeu Amaral, pai do futuro Creso, desse mesmo nome; Antonio Raposo Tavares; vários Camargos, inclusive Claudio
Furquim, casado em terceiras núpcias, nessa família; alguns oficiais da Câmara etc.
Acrescidos desses prestigiosos elementos, os frades da comunidade, paramentados com suas vestes rituais, alçada à frente de tudo uma imensa cruz de madeira pintada de negro, seguida das irmandades e confrarias, também com suas opas e balandraus,
mandaram abrir de par em par a portaria do mosteiro e desceram, impressionantemente, até ao povo amotinado.
Ao aparecimento dessa formação aparatosa, sucedeu um rápido silêncio.
Destacou-se do prestito d. Abade de S. Bento. Satisfeito com a metamorfose vingada pelo espetáculo concebido por sua imaginação, numa prédica apropriada e inteligente, digna da fama de sua ordem, a qual merecia os melhores qualificativos, como
cultora das letras e ciências, chamou as suas ovelhas à razão e suplicou-lhes, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, que ouvissem e acatassem o velho chefe, pronto para lhes dirigir palavras patriarcais e sábias. Assim terminou a sua breve
exortação:
- Meus filhos! Meu bom povo paulista! Sois vós que bem podeis acertadamente dizer: Mitem animam agresti sub tegmine servo! (Oculto uma alma benigna sob uma rude aparência). Pois bem, mostrai mais uma vez a benignidade de vossa alma,
atendendo ao que vos vai dizer d. Amador Bueno!
Muitos daqueles homens - nobres e peões -, antes exaltadíssimos, impressionados com o aparato religioso que lhes surgira à frente e vencidos pela tocante prática de d. João da Graça, ajoelharam-se respeitosamente.
Amador Bueno discursou, agora, como um autêntico rei, para vassalos respeitosos. A sua lealdade transfigurou-o, tornando-o eloquente:
- Honrados patrícios! Reflexionemos um pouco. Isto nos fará quebrarmos a intrepidez de nossos ímpetos. O reino de que a nossa S. Paulo e as demais vilas desta Capitania constituem uma valiosa parte, no estado do Brasil, pertence à Sereníssima Casa
de Bragança. "Dele se acharia esta em posse pacífica, desde o dia da morte do Cardeal el-rei d. Henrique, se a violência dos monarcas espanhóis não houvesse sufocado esse direito". Esta é a razão primordial pela qual recuso a coroa que me quereis
colocar à cabeça. Mas existem outros argumentos ponderosos. "Não é Amador Bueno quem vos poderia servir de rei, que ele não nasceu para passar de uma honrada mediania; os mesmos que hoje o exaltam, amanhã o derrubariam; e teríamos apenas com isso
ganho a nossa desunião em vida, e a mofa dos outros, e até o escárnio da posteridade sobre nós". A coroa na minha cabeça não vos poderia dar a paz e a felicidade. "Um trono há mister bases sólidas sobre que assente e uma coroa só pode servir na
cabeça que já para ela nasceu formada. os reis são na terra uma família à parte de nós; reinam não só pelo esplendor que herdaram de seus maiores, mas também pela sua família - dos mais reis, que todos eles se protegem, como parentes que são entre
si... E são invioláveis e sagrados por Deus! Estão acima de todos os partidos: pairam noutra atmosfera mais livre de ambições e de paixões más do que a nossa..." Meus patrícios! "Não queiramos forçar, não, a época que um dia nos haverá de chegar.
Já el-rei de Castela queria ceder de todo este Estado ao herdeiro da Casa de Bragança, contanto que desistisse ele dos direitos a essa nesga de território na Península e já se nos escreve de Lisboa que o nosso rei d. João tem projeto de mandar que
o seu herdeiro se intitule Príncipe deste Estado do Brasil. E então esperemos. Andemos devagar, para subir ao pináculo, sem riscos nem fadigas. Algum dia, quando o Deus dos profetas marcar no livro dos destinos, teremos um rei ou título maior, se
maior o houver na terra! Mas até esse dia procuremos continuar a viver em paz, cultivando as nossas roças, aformoseando nossos sítios e chácaras e educando os nossos filhos..."
Vozes já gritavam:
- Tem razão... Tem razão...
Amador, pegando-lhes nas palavras:
- "Tenho razão, tenho; vós mesmos m'achais... Pois concluo: recebamos por nosso rei ao herdeiro dos reis que fizeram descobrir e colonizar estas terras; e quando eles e os seus sucessores se esquecerem de nós, mandemos-lhes procuradores expor-lhes
nossos direitos". Declaremos, pois, alto e bom som, todos os paulistas, sensatos, soberano do Brasil e da Capitania de S. Vicente, vila de S. Paulo incluída, por graça divina e aclamação dos povos, a d. João IV, "rei de Portugal e dos Algarves, de
aquém e de além-mar, em África, senhor da Guiné, e da Conquista, Navegação, Comércio de Etiópia, Arábia, Pérola e da Índia etc." Honrados patrícios! Chegou a ocasião de me acompanhardes no meu brado. Viva d. João IV, nosso Rei e Senhor!
O povo - nobres e arraia-miúda -, sem uma nota discordante, transfigurado no seu novo entusiasmo, repetiu em coro, impressionantemente:
- Viva d. João IV, nosso Rei e Senhor!
O mais curioso foi que os próprios espanhóis, apesar de pungentes desgostos lhes corroerem as vísceras, se dispuseram também a prestar juramento ao novel soberano aclamado, "a fim de não perderem as comodidades que tinham vindo procurar em S.
Paulo".
O povoado deixou-se tomar nos braços de exaltação indescritível em torno de nome daquele distante d. João de Bragança, tirado das suas caçadas em suas ricas tapadas de Vila-Viçosa, para o trono que, havia sessenta anos, a nobre Castela arrebatara
ao glorioso Portugal.
Imagem: reprodução da página do jornal de 24/4/1938 com a matéria
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