Sr. Acácio Teixeira Botelho, que chefiou a Revisão da A Tribuna até
a data de seu trespasse, verificado
a 15 de setembro de 1933 |
Sr. João da Silva Figueira, que
há 30 anos vem chefiando as
oficinas gráficas da A Tribuna
com dedicação e proficiência
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Fotos e legendas publicadas com a matéria
Revisão e revisores de jornal
Por Cyro Lacerda
As linhas que se vão ler, neste artiguete despido das
louçanias de estilo de literato ou jornalista consumado, não agradarão, por certo, àqueles que, fora da imprensa, dificilmente compreenderão os
anseios, as ambições e as desilusões que se formam, se agitam e se esvaem no âmbito dessas colméias onde laboriosas abelhas fabricam o mel do
pensamento... só os iniciados no culto à Imprensa, que sempre atraiu como ímã os moços de ideais nobres e generosos, fazendo-os depois adormecer no
leito de Procusto do Desencanto, talvez passearão os olhos displicentes e fatigados sobre este trabalho, analisando-o superficialmente, com o
propósito, porém, de descobrir-lhe as mil e uma imperfeições de que naturalmente está eivado.
Isto é velho nos anais do jornalismo. Mas, como não existe operário mais corajoso que
o da pena, não vacilo em enfrentar o pelotão de execução da crítica, pedindo, apenas, como fez aquele desventuroso imperador caído em Queretaro, que
me poupe a cabeça, não pelo receio de ficar com o rosto desfigurado, mas sim pelo temor de não se encontrar em seu interior um resquício sequer de
massa cinzenta...
Dito isto à guisa de advertência, que é uma coisa que deve estar sempre nas cogitações
de quem se anima a escrever mais que simples carta a amigos e fregueses, vou tentar compor as minhas reminiscências, de sorte a dizer qualquer
coisa, embora banal, sobre "Revisão e revisores de jornal".
É provável, para não dizer certo, pois com isto
espantaria, sem dúvida, problemáticos e escassos leitores, que não me desincumbirei da tarefa com a galhardia que seria de desejar. Como, porém, a
sabedoria popular já consagrou o "quem dá o que tem, não é obrigado a mais", tiro dos escaninhos da memória as peças poeirentas de minhas
recordações, molhando-as na tinta violeta da saudade, a fim de apresentá-las ao público, um tanto rejuvenescidas, nesta hora de regozijo para os que
labutam na imprensa indígena.
***
Desde os tempos de minha meninice, e lá se vão seis
lustros bem puxados, que nutria pela revisão e revisores de jornal uma inexplicável admiração. E esta admiração mais se acentuava quando ouvia de
meu pai, que também foi homem de imprensa, narrações interessantes a respeito de certos príncipes do jornalismo que iniciaram a carreira como
simples revisores.
Predestinação ou quer que seja, o certo é que, chegando à adolescência, fui para um colégio
de meninos pobres, como interno. As narrações que ouvira cristalizaram-se e não se apagaram jamais de minha lembrança. E, sonhando com ser um dia um
revisor de jornal, dediquei-me ao estudo da Gramática e da História, conseguindo, depois de certo tempo, alguns conhecimentos que ultrapassavam as
lindes do programa de ensino do colégio.
Os professores dessas matérias - e seus nomes me caem da pena envoltos num halo de
respeito e de saudade - eram a princípio o dr. Artur Assis e Pedro Correia de Melo, aquele já falecido e este alto funcionário hoje do Banco de S.
Paulo, os quais mais tarde cederam as respectivas cadeiras ao dr. Heliodoro Dematos e coronel A. Raposo de Almeida, ambos não mais pertencentes ao
número dos vivos.
Esses professores, competentes e bondosos, me estimularam tanto quanto podiam, e eu,
que não cessava de pensar em revisão de jornal, aproveitava sofregamente as sábias lições dos mestres, procurando além disso aperfeiçoar-me com a
leitura metodizada de livros de Cândido de Figueiredo, Soares Barbosa, Carolina Micaelis de Vasconcelos, Gonçalves Viana e outros expoentes da boa
linguagem portuguesa, além de escritores tidos e havidos como perfeitos dominadores do idioma.
Um belo dia saí do colégio, e numa fria manhã de junho de 1920, muito jovem ainda,
ingressei na redação do extinto Jornal da Noite, onde, entre outras amizades, captei as de Mário Amazonas, capitão Sousa Filho, dr. Bastos
Coelho, Luiz Correia Pais, Afonso Schmidt, Gomes dos Santos Neto.
Foi ali também que travei conhecimento com João da Silva Figueira, o nosso dinâmico
chefe das oficinas, o qual, cheio de entusiasmo pela vida de jornal, e de mocidade, se esmerava em paginar o vespertino tão bem quanto o matutino,
porque "mestre Figueira" empregava sua atividade em dois setores: à noite, na A Tribuna, e à tarde, no Jornal da Noite.
Comecei nesse jornal com modestas reportagens, sobressaindo a que fiz por ocasião da
chegada a Santos do finado rei Alberto, da Bélgica. Três meses depois de provar o vinho agridoce do jornalismo, por indicação de Décio de Andrade,
essa alma boníssima que há pouco tivemos a desventura de perder, entrava para a Revisão da A Tribuna, no lugar vago com a transferência, para
a administração do grande órgão, de Jacinto Costa.
Era a materialização do meu sonho da meninice. Que ilusão, Senhor!
Lembro-me perfeitamente desse episódio, que marcou de maneira definitiva o rumo de
minha existência.
Foi a 20 de agosto de 1920. Noite escura e chuvosa.
Às 20 horas, que nesse tempo se dizia 8 da noite, apresentei-me, sem nenhum "pistolão", ao sr. M. Nascimento Júnior, que me recebeu com a bonomia
que é um dos traços marcantes de sua personalidade de escol. Perguntou-me polidamente se havia já trabalhado em jornal, ao que respondi
afirmativamente. Em seguida, determinou-me que fosse falar ao então chefe da Revisão, sr. Acácio Teixeira Botelho.
***
Numa sala pequena, sentados a uma mesa junto à
parede, em frente, estavam dois homens, nos quais reconheci Roberto Miler e João Figueiredo, redatores da parte comercial e repartições. O chefe da
Revisão, também sentado a outra mesa e cortando com enorme tesoura etiquetas para a remessa do jornal, endireitou os óculos, olhou em torno e
fixando depois a vista em mim, perguntou-me o que desejava. Respondi-lhe que ia da parte do sr. Nascimento Júnior, a fim de ocupar o cargo de
auxiliar da revisão, que estava vago.
- Muito bem, muito bem, meu rapaz! - exclamou o chefe. - Com que então - continuou - queres
trabalhar aqui? Conheces já o mister de revisor?
- Talvez não tanto quanto o senhor desejaria, porém me esforçarei por fazer jus à sua
indulgência - respondi.
- Está bem. A resposta não está má. Conheces o idioma?
- Mais ou menos.
- Isto de mais ou menos é muito vago, porém vá lá, vá lá... Podes sentar-te, pois
vamos iniciar o serviço.
Realmente, pouco depois as provas tipográficas e de linotipia começaram a chegar,
trazidas pelos auxiliares da estante, Caraboo e Santos.
Com paciência, o sr. Acácio, que era um ótimo chefe de revisão, pois conhecia a fundo
os mistérios da boa linguagem portuguesa e era um grande admirador dos nossos clássicos, tais como Camilo, Castilho, Herculano, Vieira e outros,
iniciou-me nos segredos do ofício.
Trabalhamos durante cinco anos juntos, sempre dentro da mais perfeita harmonia,
respeitando-nos mutuamente, pois, além de chefe meticuloso e capaz, possuía o sr. Acácio Teixeira Botelho, malgrado certas maneiras um tanto
bruscas, oriundas sem dúvida da insidiosa moléstia que lhe ia aos poucos minando o robusto organismo, um coração sentimental e um caráter leal, como
que a identificar-lhe a genuína origem lusitana.
Com Acácio Botelho não só fiz o meu aprendizado, como também recolhi, através de
instrutivas e amistosas palestras e discussões, um caudal de lições práticas que me habilitaram a exercer, sem receio, o árduo e penoso mister de
revisor de jornal. Por isso, além de modesta homenagem à sua memória, consigno aqui, de público, minha imperecível gratidão ao chefe e amigo.
Saí depois da Revisão e ingressei na Redação, e o sr. Acácio ficou no seu posto, até
que a morte o empolgou em suas garras. Nos meus primeiros tempos de revisor-auxiliar, tinha como companheiros Cristiano Teixeira e Acácio Augusto
Borges, aquele filho e este sobrinho do saudoso chefe. Outros muitos rapazes passaram por essa escola de periodismo, chamada Revisão, olhada,
infelizmente, com certo desdém por aqueles que sabem ser possível fazer de um revisor um bom redator, ao passo que nem sempre se transforma em bom
revisor um redator...
Atualmente, a Revisão da A Tribuna conta com
um pugilo de moços esforçados e inteligentes, cujos nomes declino com a simpatia a que fazem jus pelos bons serviços que prestam. São eles: Geraldo
Ferrone, Elisiário Feijó Fernandes, Francisco Dupré de Lacerda, José E. Leopoldo e Silva, Carlos Henrique Klein, Hugo de Paiva, José Lupion Gião e
João Barbosa Júnior.
***
A função de revisor, num jornal diário de
responsabilidade, é sobremaneira espinhosa. É tão ingrata como, se me permitem a comparação, a de um agente da autoridade encarregado de fiscalizar
a conduta do paisano na via pública. Tanto quanto este, quando se torna elemento perturbador da ordem e recalcitrante, a olhar de través e com ódio
concentrado o polícia, assim também o redator de jornal desleixado e quiçá incompetente nutre invencível prevenção pelo revisor, que policia seus
erros, emenda seus lapsos e corrige suas deficiências.
O mesmo, no entanto, não acontece com o redator competente e cumpridor de seus deveres, o
qual chega a ter a delicadeza de solicitar à Revisão que de modo nenhum deixe passar sem emendar algum lapso originado pela pressa e angústia do
tempo, pois sabe perfeitamente que "errare humanum est..."
O redator que torceu a vocação, entretanto, acha que não erra, que tudo quanto escreve
está matematicamente certo, e que colocação de pronomes, separação correta de sentenças por vírgulas, ortografia etc., tudo isso não passa de
baboseiras ou caturrices de filólogos. Desconhece, o coitado, a importância da vírgula no escrito. Não atina com o perigo da má distribuição desses
sinais, chegando a dar sentido grotesco o seu deslocamento, como o exemplo que segue:
"O rapaz entrou na cabeça, um chapéu de palha nos pés,
sapatos de verniz sobre a fronte, uma sombria nuvem na mão, uma bengala de ébano de cabo esculpido em seus olhos brilhantes, uma ameaça muda..."
Seria injúria aos leitores restabelecer em seu sentido normal essa frase disparatada,
criada, de resto, expressamente para ser desfigurada pela deslocação das vírgulas. No entanto, conheço alguns redatores que, embora trabalhando na
imprensa há décadas, pensam que a vírgula nas sentenças é um mero adorno, como esses sinaizinhos que os jovens elegantes costumam pintar em
determinados sítios da face...
E todos os dias, o revisor, que geralmente é moço e sonhador, deixando, num gesto de
suprema renúncia o aconchego do lar, a palestra com os amigos ou a diversão predileta, nos salões cheios de rumor e de luzes cambiantes,
encaminha-se, indiferente às intempéries, para a sede do jornal, onde, na quietude de horas sonolentas, como sentinela avançada no seu posto de
sacrifício, se dedica à tarefa anônima e sem glória de compor períodos sem sentido, de retirar pastéis, de melhorar a pontuação deslocada, de
colocar corretamente pronomes, na certeza de que, se tudo sair na folha escorreito, sem falhas, os louvores serão para o redator que escreveu mal, à
pressa, sem atenção... Ai, porém, se cochilou e deixou escapar o mais insignificante pastel: um mundo de reproches desabará sobre ele, esmagando-o
de modo inexorável!... |