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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM...
1685 - pelo incerto Francisco Coréal

"Provém esta prata das minas das montanhas que se acham entre S. Paulo e Santos..."

Ao longo dos séculos, as povoações se transformam, vão se adaptando às novas condições e necessidades de vida, perdem e ganham características, crescem ou ficam estagnadas conforme as mudanças econômicas, políticas, culturais, sociais. Artistas, fotógrafos e pesquisadores captam instantes da vida, que ajudam a entender como ela era então.

Na sua edição especial de 26 de janeiro de 1939, comemorativa do centenário da elevação de Santos à categoria de cidade, o jornal santista A Tribuna - exemplar no acervo do historiador Waldir Rueda - publicou esta matéria (grafia atualizada nesta transcrição):

Um pseudo-visitante de Santos em 1685

Affonso de E. Taunay
(Colaboração especial para "A Tribuna",
na Edição Comemorativa do 1º Centenário da Cidade de Santos)

Um dos enigmas da Bibliografia francesa é o que se refere às Viagens de Francisco Coréal. Será realmente obra de autor que existiu um contrafação habilmente obtida por meio de cerzidura dos depoimentos de diferentes viajantes? É o que até hoje não se desvendou.

Estudou o caso o erudito, e sempre tão interessante, Alfredo de Carvalho, com o enorme cabedal, tão seu, de conhecimento dos autores estrangeiros que escreveram sobre o Brasil.

Lembra o saudoso escritor pernambucano, tão cedo falecido, que Les voyages de François Corréal aux indes Occidentales tiveram, em 1722, a sua edição princep em 3 vols., in-12, e a declaração de traduzidas do espanhol.

O editor era um livreiro amsterdamês, J. Fréderic Bernard. Foi o livro reimpresso em Paris no ano de 1728, em Amsterdam e em Paris, respectivamente, ainda em 1736 e 1778. Possui a biblioteca do Museu Paulista um exemplar também de 1722, em 3 vols., in-12, edição de André Calleau, em Paris, à praça da Sorbonne.

Trata-se, pois, de nova edição da obra de Coréal, e não Correal, traduzida do espanhol, diz-lhe a folha de rosto. Serrano y Sansy, na sua exaustiva Bibliografia castellana, Autobiografias y Memorias, não cita o livro espanhol que deve ter servido de original às diversas traduções francesas.

Pode ser, aventa Alfredo de Carvalho, que a versão haja sido feita de manuscrito que se conservou inédito; é muito provável, porém, que se trate de algum caso de perfeita apocrifia, destes tão freqüentemente lançados à circulação pelos prelos holandeses seiscentistas e setecentistas.

Seja como for, contrafeito ou não, no livro de Coréal há coisas curiosas sobre o Brasil, especialmente sobre a Bahia, Santos e a região paulista.

Dizendo-se nascido em Cartagena, e em 164*(N.E.: ilegível no original, possivlemente 1648), partiu Coréal para longas viagens aos 18 anos de idade apenas. Em 1666, saiu de Cadiz, visitou as pequenas Antilhas, Cuba, a Jamaica e S. Domingo. Em 1669, percorreu a Florida, de cujos índios conta uma série de coisas bastante suspeitas. Estava em 1871 no México.

Passou depois à América Central e à Nova Granada. Descreve estas diversas regiões americanas e ocupa-se em lhes pintar os costumes. Tem-se a impressão de que devia ser de temperamento excessivamente erótico. Muito o preocupava, a cada passo, a questão sexual nos diferentes povos de que fala, quer se trate de índios, quer de colonos espanhóis ou portugueses. Diz horrores dos costumes do clero americano, a quem atribui a maior libidinagem.

Ao leitor, de todo, não ocorre a idéia de que seja espanhol quem haja escrito as páginas sobre "as causas da decadência dos espanhóis nas Índias Ocidentais" ou sobre "os costumes e a religião dos espanhóis e dos crioulos das Índias".

Não é uma mentalidade castelhana a que dita tais conceitos sobre assuntos castelhanos. Não há aí frase que não esteja a trair o calvinista, reparador acerbo das instituições de um povo, a quem detesta e despreza. Nem jamais se apontaria um escritor algum ibero, português ou espanhol, quem ousasse nos princípios do século XVIII, dizer das coisas de sua gente o que o pseudo cartaginês enuncia com o maior desabrimento de opiniões e palavras.

Pretende Francisco Coréal que depois de ter vivido algum tempo entre ingleses flibusteiros, foi à Inglaterra e de lá passou à cidade natal. Os pais já lhe haviam morrido. Dos amigos e colegas cada qual tomara rumo, e ninguém mais conhecia ali.

Assim, liquidando a pequena herança patrimonial, resolveu prosseguir a vida errante. Partindo para Lisboa, ali se embarcou para a Bahia, onde chegou a 31 de outubro de 1685.

Da cidade de Salvador, de Santos, e dos paulsitas, contam-se coisas curiosas no livro de Coréal; antes de as analisarmos, porém, seja-nos permitido examinar argumentos acerca da apocrifia, mais que presumível, da tal relação de viagens do pretenso cartaginês.

Já nem falemos mais na impressão inconfundível deixada pela mentalidade que inspirou o livro: não é de todo a espanhola.

Nele há o mais grosseiro estropiamento das mais comezinhas palavras castelhanas: "hilyo" por "hijo" (filho); "diabolo" por "diablo"; "di" por "de"; "capo" por "cabo"; e uma série de outros vocábulos a que empresta aspecto fortemente italiano. Nem falemos ainda nas denominações geográficas, que estas ele as deturpa de modo mais grosseiro, escrevendo - o que é inadmissível para um espanhol: "Cordova" em lugar de "Cordoba"; "Pueblo Veio" em vez de "Pueblo Viejo"; "Terra Fierma" (sic), "Rio Dolce" (sic), etc. etc.

Nada mais errado do que algumas frases castelhanas reproduzidas no texto: "Valgha-me Dios! estas son heregas lutheranas"!

Tratando do Brasil, ainda mais deturpadas vêm as palavras portuguesas: "Christian veio" por "cristão velho"; "Aldeja" por "aldeia". Pernambuco surge metamorfoseado em "Pharnambug", e no entanto era de toda a nossa nomenclatura geográfica a palavra mais popular na Europa.

Não pretendemos de todo estar a descobrir a falsidade do imaginário viajante: são unânimes a tal respeito os dicionários enciclopédicos. Não é o nosso fito senão reforçar, por meio de exame detido, a argumentação de tais informantes.

Assim, em 1889, diz La Grande Encyclopedie que, se a obra de Coréal alcançou algum apreço e teve várias edições, não é menos exato "que sejam muito pouco prováveis a existência de Francisco Coréal e a realidade de suas viagens".

Já assinalara Grand Dictionnaire Universe de XIX siécle que vários escritores tinham por certo que "alguém tomara o nome de Coréal para publicar sobre a América uma coletânea de documentos extraídos de diversos autores, opinião esta reproduzida no excelente Nouveau Larousse Illustré.

Quanto ao The Century Dictionairy and Cyclopedia, obra não menos apreciável, entende ele que "tal livro é geralmente tido como fictício", e que os nomes de Francisco Coréal a ele se anexam como com quaisquer outros se faria.

No exemplar pertencente ao Museu Paulista, ajuntou o editor Andre Calleau, a relação das jornadas de sir Walter Raleigh à Guyana, a de Narborough ao Mar do Sul pelo Estreito de Magalhães, outra de Tasman, cartas de missionários etc.

Saíram, pois, a lume ao mesmo tempo. Serviu-se Alfredo de Carvalho, para o seu Um globe trotter do século XVII, publicado na Revista do Instituto Histórico Brasileiro, tomo 72 parte 2ª, da edição de Amsterdam, onde há tópicos que não se encontram na parisiense. Nesta, além de tudo, lê-se a transcrição de um aviso régio, dando o privilégio literário, sobre a obra, ao editor Cailleau, para a França, naturalmente.

Não conhecemos a edição holandesa, mas nela é o autor chamado Correal, segundo Alfredo de Carvalho, ao passo que a parisiense e todos os dicionários enciclopédicos lhe chamam Coréal.

Todas estas divergências e a coincidência das datas da primeira tiragem são, ainda, a nosso ver, outras tantas demonstrações da flagrante apocrifia das Viagens.

À descrição do que viu na Bahia, consagra o pseudo Coréal algumas páginas que constituem verdadeira diatribe contra os baianos: "lúbricos, fúteis, arrogantes, basófios, covardes, ignorantes e carolas como ninguém mais".

Assim verbera em termos veementes a dissolução dos costumes na capital do Brasil, o claustramento das mulheres, as perversidades feitas aos escravos, o número enorme de atentados e crimes praticados impunemente, a indolência e madraçaria dos brancos entregues a práticas devocionárias eivadas das mais grosseiras superstições e fanatismo etc. etc.

Horrores escreve ainda dos clérigos baianos e ridiculariza as festas religiosas e a que declara haver assistido na cidade d'O Salvador.

Tudo quanto lemos nestas páginas parece-nos não passar do aproveitamento dos relatos de Pyrard de Laval em 1610, Froger em 1696, Dampier em 1699, Frezier em 1713 e, sobretuudo, talvez, Le Gentil la Barbinais, em 1717.

Como vemos, abundantes fontes teve Coréal, à sua disposição, para escrever a sua moxinifada.

Deixando a capital do Brasil, partiu o pseudo Coréal para Santos. Da sua permanência no porto paulista, pouca coisa interessante relata, como veremos.

Depois das notícias da Bahia, dá uma descrição sumária da costa brasileira, em que a nomenclatura é horrivelmente estropiada.

Assim nos fala do "Puerto das aguado", dos "Reios magnos" etc., dos índios "Ovetacates", moradores de Parahyba, ferozes e selvagíssimos.

Um pouco mais longe que o Cabo Frio estão o "Rio de Janeiro" e "Bahia fervorosa", e assim por diante, uma série de asneiras, que mostram quanto esta série de nomes foi copiada a trouxe-mouxe de alguma velha carta marítima holandesa, onde se acha singularmente aleijada.

Nem sequer se deu o contrafator ao trabalho de transcrever as denominações de algum mapa português. E já os havia impressos em 1722.

Vários capítulos consagra Coréal à nossa história natural e etnográfica: "Dos outros brasileiros indígenas e sua maneira de viver; Dos animais do Brasil; Das árvores, frutos e outras plantas do Brasil; Da guerra dos brasileiros indígenas e do modo pelo qual procedem em relação aos seus inimigos; Da religião dos selvagens do Brasil; Dos casamentos dos brasileiros e vários usos destes selvagens".

O que aí se lê nada de muito interessante revela: é a cerzidura das informações de muitos autores quanto à Botânica e à Zoologia. Percebe-se que o homem consultou a valer a obra de Maregraf; e, quanto aos costumes, a do velho Hans Staden.

Com a salacidade habitual, demora-se, detidamente, nos parágrafos referentes à vida sexual dos nossos selvagens.

Tomando Coréal por observador "de visu", houve quem o levasse a sério; é o que lembra Alfredo de Carvalho ao relatar que um etnólogo alemão moderno, Georg Friederici, "citou as supostas observações de Coréal sobre os indígenas do Brasil, reputando o seu testemunho, neste particular, assaz valioso para a História natural e a Etnografia".

Diz o aventureiro, no capítulo nono da segunda parte de suas Viagens, que passados três meses de sua chegada à Bahia, equiparam-se ali alguns barcos para levar provisões aos portugueses na Capitania de S. Vicente e "como me mandassem dirigir este comboio, tive ensejo de me instruir muito particularmente do estado desta Capitania".

Ora, sabemos todos que se dava o contrário: os portos paulistas é que abasteciam de gêneros agrícolas as praças do Norte.

"Santos, capital da Capitania (sic), é uma pequena cidade, muito bem situada perto do mar - escreve o nosso aventureiro -. Não creio haja em todas as Índias Ocidentais algum outro em condições de ser mais bem fortificado, e mais próprio a abrigar grandes navios.

"Esta colônia consta de trezentos a quatrocentos portugueses mestiços, casados, em geral, com mulheres indígenas, convertidas ao cristianismo, e governadas por padres e frades, que possuem o que há de melhor na terra, pois têm inúmeros escravos e índios tributários, a quem forçam no pagamento de certa quantidade de prata, a título de tributo".

Depois de tal novidade, vem a explicação do fato, prova evidente de que o escritor jamais pisou em Santos, onde aliás pretende haver se demorado bastante.

"Provém esta prata das minas das montanhas que se acham entre S. Paulo e Santos". (sic). É o caso de nos acudir à mente o provérbio relativo ao canto daqueles galos, que os informantes não conseguem localizar.

Leu o apócrifo autor algumas referências às minas de ouro do Jaraguá, e logo as transmutou em prata, inspirado pelas reminiscências do Potosi, e "savagelandorianamente", se nos é permitido o advérbio neologístico que se apresenta estrambótico, mas pelo menos energicamente evocativo - dali logo deduziu a sua colocação na única serra que conhecia em terras vicentinas - a do Mar. Assim, zás: surgiram as minas de prata dentre S. Paulo-Santos...

Impressionou-se Coréal com a opulência dos santistas: "Calculo que os vários eclesiásticos e seculares da Capitania de S. Vicente têm bens para cima de quarenta mil cruzados".

Mas que gente bronca" - observa a seguir.

"Esta boa gente é a mais ignorante de quantas conheci nas Índias ocidentais. Sabendo um dos tais mestiços que eu chegara de Portugal, pediu-me que o visitasse. Recebeu-me do modo mais amável, não há dúvida, mas o fez com perguntas das mais impertinentes sobre os países da Europa. Assim, entre outras coisas, indagou se havia bugres em Portugal e na Espanha, e se os homens na Europa tinham a mesma constituição anatômica que no Brasil.

"Como por acaso viéssemos a falar da diferença de posição entre o Brasil e Portugal - o que faz que num país haja verão quando no outro é inverno, e dia aqui quando é noite lá - benzeu-se mais de cem vezes, dizendo-me que jamais poderia crer que se pudessem fazer tais coisas, a menos de ser a gente feiticeira. Muito pior ainda quando lhe contei que já servira entre ingleses flibusteiros: indagou mais de trinta vezes, creio, se eu não seria herege, e, apesar de todas as minhas afirmativas em contrário, não resistiu ao desejo de espargir com água benta o aposento em que estávamos".

Além deste episódio com o indivíduo que o impostor declara ser um expoente cultural santista, outro relato que Alfredo de Carvalho reproduziu e, no entanto, foi cortado da edição das Viagens, que temos em mão.

Voltando ainda desta vez à balda costumeira anti-católica, diz o calvinista, tão mal disfarçado em espanhol globe-trotter: "Durante a minha estada em Santos surgiu uma questão entre Nossa Senhora e o Menino Jesus, que ela trazia ao colo. Foi por causa de uma jovem viúva, que desejava casar-se de novo. Consultara a imagem de Nossa Senhora, e esta lhe prometera que se casaria dentro de um ano. Este prazo pareceu excessivo à viúva e assim reiterou as preces com tamanho zelo, que o Menino Jesus, ou antes, um frade escondido por trás do altar, lhe assegurou que acharia marido ao cabo de três meses, caso lhe fizesse uma dádiva proporcional à graça; concordou com isto, voluntariamente, a viúva, e ambos se separaram satisfeitos. Esse milagre logo se espalhou em Santos; não sei se a viúva casou realmente mais depressa, mas a imagem ganhou muitas dádivas".

O incorrigível erotismo do pseudo Coréal leva-o a encaixar na sua estadia em Santos um incidente de que se diz protagonista e não passa, como bem observa Alfredo de Carvalho, do aproveitamento de história idêntica ocorrida na Bahia, relatada por Pyrard de laval.

Isto constitui, di-lo o eminente escritor pernambucano, um dos indícios internos contra a autenticidade do livro do pseudo aventureiro espanhol. Ouçamos, porém, o impostor: "Aconteceu-me em Santos aventura bastante esquisita. Apesar da ignorância e da grosseria dessa boa gente, as mulheres, em matéria amorosa, são tão sutís e astutas quanto as de qualquer cidade da Europa.

"Um dia em que pela noitinha voltava a casa, fez-me uma preta parar, dizendo-me que sua ama lhe ordenara que me conduzisse à sua casa, fosse como fosse. Como conhecia o perigo a que me expunha, seguindo-a, hesitei muito tempo antes de atender às suas solicitações.

"Afinal, deixei-me convencer e segui a preta, que, por caminhos escusos, me levou à casa da patroa, dando tempo, porém, a que a noite nos alcançasse antes de entrarmos.

"Esta mulher me recebeu com uma cortesia e polidez que eu jamais sonhara encontrar em Santos. Não há, porém, o que inspire mais delicadeza e graça que o amor. Nada poupou para me obsequiar magnificamente, de várias maneiras; prometi voltar na noite seguinte. Durava esta aventura, havia já vários dias, quando, receosa de minha perda se o marido viesse a informar-se do que havia, propôs-me a dama que me disfarçasse em clérigo (sic). Assim, sem perigo algum pude vê-la durante toda a minha permanência em Santos".

A Coréal serve ainda esta história, inspirada evidentemente pelo viajante francês (capítulo XXVI do Discours du voyage des Français aux Indes Orientales), para denegrir os odiados inimigos, os sacerdotes católicos.

As informações que Coréal dá dos paulistas e de seu modo de vida foram presumível e naturalmente colhidas em Santos, desde que nesta vila pretende haver vivido algum tempo.

São tão verídicas, porém, que a nosso ver constituem um dos itens mais rigorosos do capítulo das acusações que se podem formular acerca da apocrifia da obra. Chama "Parnabaccaba" uma floresta espessa que circundava a S. Paulo; prova evidente de que a propósito da serra de Paranapiacaba ouviu cantar o galo.

De Santos passou o nosso manchauseniano Coréal ao Rio de Janeiro, onde se demora longamente, nada revelando, porém, acerca desta permanência.

Cinco anos afirma ter estado no Brasil. Em 1690 partiu para Buenos Aires, de onde regressou para o Peru. Diz que viveu em Quito e na Havana, onde passou o ano de 1697. De 1700 a 1706 permaneceu em Londres, tendo neste lapso de tempo feito duas viagens à Holanda.

Em 1707 resolveu jamais intentar nova viagem, desejando morrer na casa paterna, em Cartagena, "onde se acha para não mais sair como bom cristão na comunhão da Santa Madre Igreja e no respeito de Deus e de J. Cristo, seu Salvador, cuja misericórdia implorava e sob o governo de seu soberano senhor e rei legítimo, Filipe 5º de nome, a quem acrescentasse Deus e livrasse dos inimigos de sua coroa".

Empregando o tempo na redação das suas memórias, neste afã pretendia ocupar os velhos dias.

Nas últimas fases das Viagens, mais uma vez ingênua e tolamente se trai o contrafator holandês, a quem se atribui a autoria da personalidade de Coréal. Imaginou, para afastar qualquer suspeita derradeira da falsidade de sua obra, terminá-la por tremenda descompostura nos holandeses, verdadeira diatribe.

Haja ou não haja Coréal existido ou viajado, acha-se o seu nome apenso a uma relação de jornada pela América Latina, que teve larga divulgação e certos foros de autenticidade.

Cabe-lhe a honra averiguada de haver, quanto ao Brasil, inaugurado a literatura "savefelandoriana" de viagens, gênero hoje bem avultado, em cujo catálogo se inscrevem numerosos nomes de procedências várias.

O verdadeiro intento do compilador, a quem se deve a mal-ajambrada contrafação, na frase exata de Saint'Hillaire, foi, a nosso ver, procurar desmoralizar as crenças e instituições católicas e os costumes dos latino-americanos.

E, para tanto, nada mais autorizado do que a voz de um espanhol falando de sua própria gente. E assim inventou esse Francisco Coréal, reparador ultra-malévolo, incorrigível faunívago que andou a passear a maledicência e a libidinosidade pelas terras iberas da América.

Tão carregada a charge e tão grosseiro o embuste, tão visível a ignorância do autor, que ninguém, desde muito, toma a sério o amontoado de patranhas e asneiras, que do consórcio daquelas inspirações veio a surgir.