Imagem: ilustração na página 173 do livro Vidas em Pauta
[Páginas 175 a
176]
Arte, solidariedade e amor
Por Almir
Júnior
Falar sobre arte é sempre muito
prazeroso. Ela é algo que nos inspira, nos diverte e nos faz refletir. Ainda que não se tenha o costume de freqüentar teatros, circos ou cinemas,
acredito que ao menos uma vez você tenha sido espectador de uma apresentação, seja sentado numa confortável poltrona a contemplar uma caríssima
produção ou parado no semáforo da cidade, vendo um garoto com rosto sofrido esboçar um sorriso enquanto faz malabarismos com frutas no ar.
A arte é um verdadeiro mundo, que
só existe por causa de alguém, alguém que sempre nos convida com muita simpatia a viver momentos sublimes, que só mesmo nessa esfera somos capazes
de viver. Ele nos convida a um descobrimento e, ao vislumbrar esses novos horizontes, somos apresentados a um outro alguém dentro de nós.
Que faça a primeira careta quem
nunca riu de um tombo ensaiado do palhaço? Ou sofreu vendo o mágico transpassar uma lança pelo corpo da mocinha? Ou até mesmo se espantou ao ver um
homem imitar um dragão e soprar chamas ao vento?
Por mais que a cena seja repetida
ou que o truque seja velho, esses magos da diversão sempre nos surpreendem.
O artista guarda consigo algo
inenarrável, segredos que ele só compartilha durante seu show, momentos de prazer, mas também de obrigação. Porém, esse sorriso aberto e
simpático esconde alguém simples, discreto e normal, que já se acostumou a deixar de lado os problemas pessoais para se entregar por inteiro à
fantasia de seu outro mundo.
Talvez passe batido, mas o artista,
apesar de ser sempre artista, não consegue estar sempre artista. Às vezes precisa voltar a ser o mesmo alguém que ele se negou a ser um dia em nome
da arte, nada além de uma pessoa comum, que estuda, trabalha, namora, se apaixona, sente fome, sede e fica doente, por que não?
Esses homens e essas mulheres a
quem nos dedicamos a falar nesta obra nos mostram uma lição que valor nenhum poderia pagar. Aliás, o tal combustível que utilizam para fazer o que
fazem realmente não é algo comprável, nem muito menos adquirido durante alguma transação.
Limito-me a resumir sem rodeios que
só mesmo com Amor pode se realizar tal ação. Eles não vivem da arte, não se dedicam integralmente aos ensaios e treinamentos. São artistas sim, mas
bem diferentes dos que estamos acostumados a falar. A eles o destino reservou uma outra missão. Não precisam se preocupar com a arrecadação da
bilheteria, detalhes da produção, sonorização ou afinação das luzes do palco. De segunda a sexta-feira, são simplesmente Marco, Sílvio, José,
Solange, ajudantes, advogados e técnicos, profissionais com vidas normais, cheias de questões e responsabilidades, encarando dias agitados e
cansativos que teimam em não passar para dar espaço à merecida folga no final de semana.
Poderiam tranqüilamente aproveitar
todo o tempo extra para descansar junto à família, mas estranhamente preferem se dedicar a outra atividade.
Atentando para alago que até então
ninguém dava atenção, o ator Marco Antonio de Jesus, acostumado a encenar espetáculos para crianças saudáveis e bem cuidadas por seus familiares, se
comoveu com a situação de um outro público, também formado por crianças, porém sem as mesmas oportunidades que aquelas que se sentavam em sua
platéia.
A idéia foi regada já na primeira
visita a um hospital, quando se deparou com olhares apreensivos e curiosos. Crianças que aos poucos soltaram risos e posteriormente gargalhadas.
A partir daí já
estava fundado o grupo Doutores da Folia, batizado por um gostoso sorriso, de um menino pobre, comprometido por uma grave doença, que havia algum
tempo não esboçava nenhum sinal de felicidade.
Doutor Zé Gotinha
Foto cedida a Novo Milênio pelos autores
[Páginas 177 e 179]
Doutores da Folia
Por Natália Kertes
Um aperto de mão, um abraço e
um sorriso. Pequenos gestos de carinho, mas que fazem toda a diferença para as crianças que ficam internadas nos hospitais. Os voluntários do
projeto Doutores da Folia levam, além de carinho, muita diversão. Brincadeira é o que não falta, desde palhaçadas até desenhos com lápis de cor,
tudo para deixar o ambiente mais alegre.
Muitas pessoas têm trauma de
hospital, porque o lugar está ligado à doença e também à morte. E ninguém quer ficar preso a uma cama, nem morrer e nem perder uma pessoa querida.
Isto é o que os adultos pensam. Imagine as crianças que não entendem muito bem a situação. Como deve ficar a cabecinha delas? Todo o clima de
preocupação só ajuda a piorar o estado clínico dos pequenos pacientes, que ficam com a auto-estima lá embaixo, sem nada e ninguém para motivá-los.
Para acabar com os momentos de
desânimo na internação, surgem, esbaforidos e atrapalhados, os Doutores da Folia. E já vão logo examinando pés, mãos, barriga e tentando escutar o
coração na cabeça do paciente.
Uma notícia no jornal iria
transformar a vida de Marco Antônio de Jesus que, aos 25 anos, acabava de ganhar o prêmio de ator revelação, no Festival de Teatro de Santos. Marco
Antônio, além de atuar nos grupos de teatro Luzes da Cidade e Offetex, também trabalhava na oficina mecânica de uma concessionária.
Doutores da Folia
Foto cedida a Novo Milênio pelos autores
Marco
conta que tudo começou quando conversou com Gimena Cristina Gomes Aranda, uma advogada que fazia parte da diretoria da ONG Comunidade Mãos Dadas,
dentro da empresa em que ele era funcionário. Ela sempre passava pelo rapaz, pois a instituição ficava no fundo, a oficina no meio e a sala do
empresário na frente do prédio. Quando precisava levar papéis para o empresário assinar, a advogada, para não dar a volta por fora da construção,
que tornava o caminho mais longo, cortava por dentro da oficina mesmo, assim mantendo um contato maior com Marco.
Ao ver no jornal que o funcionário
havia ganho um prêmio no festival e assim reconhecendo sua responsabilidade e talento para a arte, a advogada lhe deu a idéia de formar um grupo que
visitasse hospitais. Um grupo de doutores, com roupas e instrumentos característicos da profissão, mas, ao mesmo tempo, com a maquiagem, o colorido
e a alegria dos palhaços. A ONG em que Gimena trabalhava era ligada aos direitos da criança e do adolescente. Ela sempre se interessava por projetos
que visassem melhores condições de vida para os jovens.
Marco, então, seguiu a idéia de
Gimena e, até hoje, garante o sorriso de muitos pequeninos. Quando se transforma em Doutor da Folia, ele é o Dr. Zé Gotinha. Sempre de jaleco
vermelho, pintura de gotinhas no rosto, um par de óculos gigante e a maletinha na mão, o Doutor é especialista em raios x e receitinhas para durar a
doença que, na maioria das vezes, é a paixão. "Sabe qual é o problema dele, mãe? Ele está apaixonado" Deve ser por alguma médica ou por outra
paciente do hospital", costuma dizer ao se referir à criança internada. E quando percebe que a criança está muito desanimada, ele oferece um Agitol,
que imita uma caixa de remédio, mas é só para brincadeira.
O voluntário lembra que, no início,
foi muito difícil conseguir autorização para manter o trabalho nos hospitais, lugares sempre muito restritos. Conquistar parceiros e colaboradores
também não foi nada fácil, levou muito tempo e trabalho. E a credibilidade, o grupo foi conquistando a cada dia nas visitas e nos eventos da cidade,
como campanhas de vacinação, Mc Dia Feliz e Desfile Cívico, entre outros.
Hoje, todos os voluntários
transitam livremente pelo hospital Santa Casa de Santos, fazendo muitas amizades, entre pacientes e funcionários. Se tiver alguém na UTI (Unidade de
Terapia Intensiva) chamando pelos Doutores, eles também estão lá para colaborar na melhora do paciente. Além de brincadeiras e palhaçadas, os
Doutores distribuem bexigas em forma de cachorrinho e coração para as crianças, e também ligam um som portátil nos quartos para cantar e dançar a
música do grupo.
Atualmente, Marco divide seu tempo
entre o grupo Doutores da Folia, sua família e a instituição onde trabalha como monitor, que fica em Santos e abriga crianças e adolescentes tirados
dos pais, pelo Conselho Tutelar, porque sofreram maus-tratos. Para o diretor do grupo, sempre foi difícil controlar os sentimentos. Nas visitas
encontram-se crianças, aparentemente pouco doentes, e outras muito doentes, o que é impressionante e deixa qualquer pessoa abalada. mas depois que
nasceu a filhinha de Marcos e Muriel, também voluntária, ele diz que sente um aperto ainda maior no coração. Por isso que, antes de participar das
visitas, os voluntários passam por cursos e preparo psicológico.
Em novembro de 2007, o grupo
completa 10 anos. Entre tantos acontecimentos importantes, tem um que Marco lembra como se fosse hoje: o dia em que ele realizou uma palestra
no Hospital Beneficência Portuguesa. Uma palestra? Aparentemente uma coisa tão simples, se não fosse levado em conta o passado do voluntário. Quando
era pequeno, Marco ficou internado na Beneficência Portuguesa por ter sopro no coração. Muitos anos depois, ele retornou ao hospital para dar uma
palestra sobre humanização, no salão nobre. O interessante é que o salão nobre do hospital é o lugar onde, antigamente, havia quartos e foi em um
deles que Marco ficou internado. Todo o passado voltou no momento em que soube que iria ministrar a palestra naquele lugar. Ele lembra que ficava
muito entediado, pois não tinha nada para fazer. Só havia um baú com carrinhos velhos que não o interessava. "Eu até ficava picando papeizinhos e
jogando pela janela", conta o voluntário, rindo.
Muitos voluntários passaram pelo
grupo, mas tem uma pessoa que está firme até hoje: Muriel Mureti, a Dra. Resprin. Ela entrou para o grupo em 1998, e sua primeira visita foi no dia
de Natal. A voluntária tinha amigos no grupo que a convidaram para participar das visitas. No começo, ela conta que era muito tímida e não sabia
como lidar com as crianças, mas depois de alguns encontros ela se soltou. E hoje é uma Doutora super extrovertida, uma verdadeira profissional da
Folia.
Sempre carinhosa e pronta para
conversar e atender a todos, Muriel cativa de imediato quem a conhece. Como Doutora não é diferente, ela encanta as crianças com bexigas em forma de
coração e de cachorrinho, que é sua especialidade. Seu jaleco é amarelo para combinar com os sucrilhos desenhados em seu rosto e, nos cabelos,
muitas presilhas de bichinhos para incrementar o penteado.
Muriel é
secretária e tesoureira dos Doutores da Folia e também trabalha em um laboratório de análises clínicas, em Santos. Ela não esconde seu amor por
crianças e, principalmente, por sua filha, que já tem o apelido de Dra. Tutti Frutti. Ela deixa uma mensagem final:" Vejam o mundo pelos olhos de
uma criança".
Hunter Patch Adams
Foto cedida a Novo Milênio pelos autores
[Páginas 180 a 181]
O encontro com o mestre
inspirador
Por Gisele
Fragnan
Era uma segunda-feira de muito
sol na bela Recife. O Aeroporto Internacional de Guararapes transformou-se em um grande picadeiro composto por dezenas de crianças, todas com
narizes de borracha vermelha, de palhaço, que aguardavam ansiosamente pela hilariante figura do médico norte-americano Hunter Patch Adams.
As crianças, portadoras de câncer,
estavam lá juntamente com milhares de outras pessoas, inclusive o grupo Doutores da Folia, para prestar homenagem ao grande ícone da humanização da
Medicina.
Conhecido no mundo inteiro por
causa do filme Patch Adams: O amor é contagioso (lançado no ano de 1998 e protagonizado pelo ator Robin Williams), Patch Adams tem uma
aparência excêntrica, sempre com nariz de palhaço, brincos em formato de garfo e cabelos que, além de compridos, são coloridos.
Patch, por ter sido o pioneiro da
"terapia do riso", teve que enfrentar no início diversos obstáculos. Na faculdade de Medicina, por diversas vezes foi criticado por sua "alegria
excessiva" e por quebrar alguns paradigmas impostos pela sociedade. Patch sempre foi considerado um médico diferente, que não parece, não age e não
pensa como um doutor. Sua determinação é um exemplo de amor à vida, que se alastrou pelo mundo e inspirou a criação de instituições ou grupos
voluntários que também utilizam a mesma técnica de trabalho.
No Brasil, há vários grupos que
utilizam o humor como uma opção de terapia para combater doenças. Entre eles, está os Doutores da Folia que, ao receberem a notícia de que Patch
Adams viria para o Brasil para participar do 5º Congresso Brasileiro dos Conselhos de Enfermagem, no ano de 2002, o grupo decidiu, então, viajar
rumo à cidade do Recife.
A passagem foi concedida com um
grande desconto por uma empresa aérea. De malas prontas, o grupo embarcou em busca de um sonho: o encontro com o grande mestre inspirador.
Para os Doutores da Folia, estar
perto de alguém tão especial como Patch era, sem dúvida, uma sensação para lá de emocionante. Tanto que, no dia em que o grupo foi assistir à
palestra ministrada pelo médico norte-americano, o voluntário Marco Antonio de Jesus mal conseguiu prestar atenção no que o mestre falava. Era
emoção demais naquele momento.
Porém, Marco pôde perceber que a
mensagem que Patch queria transmitir era bastante simples. Ou seja, que ele não era Deus e sim um ser humano comum, e que seu maior desejo seria
alcançar a paz mundial. O que, segundo ele, só será possível quando as pessoas aprenderem a olhar à sua volta e passarem a ajudar os mais
necessitados.
O Congresso Brasileiro de
Enfermagem ofereceu, além de palestras aos participantes, um show com o animado grupo baiano Chiclete com Banana. Foi aí que os voluntários
dos Doutores da Folia puderam ter um contato mais próximo com Patch Adams.
Apesar de Patch ter um camarim
especialmente reservado para ele, preferiu ficar em meio à multidão para curtir e dançar ao som do contagiante ritmo de axé baiano.
Entre as centenas de pessoas
presentes, Marco avistou na fila de bebidas do bar um rapaz alto, de pele muito clara, com cabelos quase brancos de tão loiros e olhos azuis que,
segundo ele, fugiam dos padrões brasileiros. Por intuição ou sei lá o quê, o Doutor da Folia sentiu estar diante do filho de Patch Adams.
Intrigado com a presença do rapaz,
Marco não se conteve e pediu para que seu amigo Luís fosse até lá abordá-lo, uma vez que ele não falava nada em inglês, para confirmar sua suspeita.
E lá foi Luís. Para surpresa de
todos, aquele rapaz era mesmo o filho do médico norte-americano. Logo no início da conversa, o jovem percebeu pelo sotaque que Luís era brasileiro e
começou a falar com ele em português.
O rapaz já havia morado durante um
tempo no Sul do Brasil e por isso dominava o idioma, o que facilitou muito a comunicação com os Doutores.
O jovem, bastante simpático, logo
disse: "Meu pai está logo ali, vamos até lá com ele". Os olhos de Marco e Luís brilharam como os olhos de uma criança. Ambos sentiram um misto de
emoção e nervosismo. Afinal, em poucos minutos, estariam diante do grande mestre.
Marco e Luís perceberam que aquilo
não era um sonho e sim realidade. Não foi difícil avistar Patch dançando em meio à multidão. Ele se destacava por suas roupas coloridas e o visual
excêntrico.
O jovem
apresentou os Doutores a Patch, que foi bastante agradável. E, apesar de não falar português como o filho, todos acabaram se entrosando e curtindo a
noite animada. Uma oportunidade, sem dúvida, inesquecível para o grupo santista.
Doutora Resprin
Foto cedida a Novo Milênio pelos autores
[Páginas 182 a 183]
Ser voluntário
Por Aline
Moreira
Cuidar. Esta palavra resume o
trabalho voluntário do grupo Doutores da Folia. Com o rosto pintado como o de palhaços, os voluntários entram na ala da pediatria do Hospital Santa
Casa de Santos. As crianças, felizes e encantadas com a chegada dos voluntários, correm para ver cada passo daqueles que levam um pouco de alegria
em meio a tanta dor.
Zé Gotinha, o único palhaço homem
do grupo de quatro, com sua música e dança, faz a criançada se balançar, arrancando sorrisos até dos mais doentes. Até os pais se soltam e caem no
ritmo.
São vários os quartos a serem
visitados, cada um com uma característica especial. Alguns pais olham, mas permanecem distantes, receosos. Outros se juntam às palhaçadas do Doutor
e até usam os adereços que Zé Gotinha tem em sua maleta, como nariz de monstro, medidor de pressão arterial de plástico e um estetoscópio de
brinquedo.
Em um quarto, onde havia sete
pessoas, entre familiares e crianças internadas, um pai mostra o seu descaso com o próprio filho. Embriagado, desdenha daquele que entra para
festejar e alegrar as duas crianças. Mas, com jogo de cintura e muito bom humor, logo o clima pesado naquele ambiente vai embora, deixando lugar
para sorrisos e agradecimentos.
Uma voluntária chama a atenção por
sua simpatia e disposição em ajudar o próximo. Bruna de Paula Silva, trajando o jaleco de Doutora da Folia, na cor rosa claro, com maquiagem
bastante colorida no rosto, encantava as crianças do hospital.
Bruna decidiu entrar para os
Doutores por intermédio de uma amiga, que já conhecia o trabalho realizado por eles. "Achei que, no mínimo, iria me divertir muito". Foi aprovada
numa etapa de capacitação na cidade de Cubatão, que durou o dia inteiro. Aconteceram dinâmicas em grupo e uma palestra para que, desta forma, os
candidatos pudessem conhecer melhor o trabalho, regras e seu modo de agir enquanto Doutores da Folia. A partir desse dia, Bruna se apaixonou pelo
grupo. Isto foi há seis meses.
Em sua primeira atuação como uma
"Doutora" de verdade, Bruna acompanhou o grupo durante uma visita ao asilo Casa do Sol, no Morro da Nova Cintra, em Santos. Era semana de Páscoa e
os Doutores foram distribuir ovos para os idosos internados. Ao entrar no abrigo, Bruna logo percebeu o peso do ambiente, tamanha era a tristeza dos
que viviam lá.
Depois de um bom tempo, os
velhinhos entraram em clima de festa. Bruna e uma amiga foram entregar um ovo de Páscoa para um senhor chamado Roberto, que caminhava com a ajuda de
andador. Ao pegar o presente na mão, ele disse que não abriria, pois aquele ovo iria ser entregue por ele a um amigo que se encontrava em condições
piores que a dele. Estava deitado numa cama, impossibilitado de buscar o seu.
Segurando na mão das meninas, o
velho senhor as levou até o quarto onde estava seu amigo. "Pessoas como ele passam anos aqui e ninguém vem visitá-los, ninguém quer saber como
estão", desabafou Roberto. Para o velho senhor, o asilo é um lugar bastante confortável. Os internos têm toda a assistência necessária, cuidados
médicos, mas, apesar de tudo, é um lugar triste, pelo tamanho descaso e abandono dos parentes e familiares.
"Alguns estão aqui porque a família
não tem condições financeiras para mantê-los em casa, mas não deixam de visitá-los. Já outros estão aqui por conveniência, porque a família não quer
um peso, um estorvo dentro de casa. Essas pessoas esquecem quem são, de onde vieram e até mesmo por que motivo estão neste lugar", relatou Roberto,
com lágrimas nos olhos.
Ao chegarem perto do senhor que
estava deitado na cama, totalmente encolhido em um canto, muito triste, as meninas viram que ele não estava disposto a brincadeiras. Pegou o ovo de
Páscoa e disse o seu nome: José. E só de pois de quase vinte minutos de bate-papo é que José cedeu aos encantos dos voluntários brincalhões.
Ao final da visita ao abrigo Casa
do Sol, José foi tirado da cama pelos Doutores e se despediu dizendo que os voluntários haviam feito uma coisa muito importante. Deram-lhe uma
atenção especial que ele já não recebia há muito tempo. José agradeceu muito. Então, ele deu um beijo no rosto de cada uma das meninas do grupo.
Virou-se para o único rapaz e disse, com uma gargalhada contagiante: "Não beijo marmanjo".
Esta experiência
marcou a primeira visita de Bruna como voluntária e a encorajou a sempre querer ajudar os que mais precisam. "Coisas tão simples e até mesmo bobas
podem significar muito para alguém que não tem nada".
Doutores, na promoção McDia Feliz em 2001, da lanchonete McDonald's do bairro do Gonzaga
Foto cedida a Novo Milênio pelos autores
[Páginas 184 a 186]
Uma vida preciosa...
Por Bruna Campoi
Um presente esperado durante
nove meses, cuidado com muito carinho e amor por toda a família. Desde o momento de seu nascimento , já se torna uma pessoa importante na vida de
quem os ama.
Fragilidade, inocência, pureza,
espontaneidade e sinceridade fazem das crianças pequenos muito especiais. Alguns, porém, necessitam de uma atenção ainda maior, pois nascem com
problemas de saúde.
Neste momento, muitas vezes, os
pais se sentem impossibilitados de fazer algo pelo filho, principalmente quando o caso é muito grave.
Existem almas que parecem que foram
criadas para este tipo de situação, pessoas que se dedicam a buscar a alegria de viver e trazer para a vida desta criança toda a magia, o amor, as
descobertas, da verdadeira infância. Sem tristeza, sem lágrimas, sem seriedade, sem incertezas...
São chamados de voluntários, ou
melhor, Doutores da Folia. "Para curar, é preciso mais do que remédio", dizem. "É preciso carinho".
O grupo, que atua para atender
crianças e adolescentes do Hospital Santa Casa da Misericórdia de Santos, é formado por 28 atores que têm como ponto principal a dedicação a este
trabalho.
Dia 28 de outubro, às 13h30,
caminhando dentro deste hospital, pude perceber o quanto este lugar traz angústia e tristeza para quem permanece por lá por mais de um minuto. Um
corredor imenso, cheio de quartos, crianças de todas as idades, um lugar que não deveria ser de uma criança.
Durante todo o processo de
arrumação para me tornar uma doutora por um dia, senti dentro do coração que faria a diferença na vida de almas profundamente puras.
Ao me olhar no espelho, senti que
nunca estive tão bela em toda a minha vida. Borboletas e cores faziam do meu rosto um conjunto de harmonia, uma sensação de parecer ter aguardado
este momento todos estes anos. Conhecer a fundo o verdadeiro mundo das crianças é inexplicavelmente o maior sentimento que alguém pode vivenciar.
Agora estamos indo de encontro às
crianças. cerca de vinte quartos seriam visitados nesta tarde. Logo que entrei, uma senhora me relatou que todas as crianças nos aguardavam
ansiosamente.
Começamos pelo último quarto e, ao
entrar, encontramos Camile, uma neném de três meses de vida, com as mãozinhas frágeis, pequeninas, no colo do pai Manoel. Camile está com infecção
generalizada.
Que neném de coragem, mesmo
passando por várias dificuldades, permanecia ali, lutando pela vida, no aconchego de seus pais.
Ao tocar suas mãos, olhar em seus
olhinhos azuis, meio acinzentados, cabelos lisos, finos, castanho claros, percebi a tristeza em seu olhar. Nem posso imaginar o tipo de dor que
naquela hora ela estava sentindo. Como não seria possível com palavras, me comuniquei do modo mais intenso em toda a minha experiência de vida: dei
um sorriso transmitindo a minha vontade de arrancar toda a doença daquele ser tão frágil.
Após este ato, senti que sua
mãozinha segurou meu dedo e um sorriso surgiu em forma de gratidão. Assim o meu objetivo se concretizou. Pude tocar o seu coração da maneira mais
sincera.
Foi difícil deixar aquele quarto.
Tinha tantas coisas para ver, tantas vidas para alegrar, levar esperança. Os voluntários foram ao próximo quarto, mas eu quis ficar só mais um
pouquinho. A sensação que tive ao estar ao lado de Camile me fez refletir sobre a minha própria vida, lembrar as pessoas que me cercam, que eu amo,
enfim, o quanto se perde tempo com brigas tolas e egoísmo.
Neste momento, pude perceber a
verdadeira essência e propósito de nossas vidas que, muitas vezes, deixamos de lado, sem perceber os detalhes que nos rodeiam.
Ao me retirar, senti nos olhos
daqueles pais aflitos a gratidão por ter proporcionado alegria e afeto à sua filha.
Caminhei rumo ao próximo encontro,
um quarto cheio de crianças de todas as idades. Começamos a fazer cachorros em formato de bexigas para todos os presentes. No canto, havia uma
neném, que me observava há algum tempo. Ao perceber isto, fui em sua direção.
Mariana, de 2 anos, estava ansiosa
para receber a bexiga e, ao mesmo tempo, prestava atenção nas cores que estavam em meu rosto. Com a mãe ao lado, brincava e apertava o cachorrinho.
Existem certas ocasiões que não
precisam de respostas para notar o quanto o caso é grave. Era o caso de Mariana, que estava debilitada e, mesmo assim, não perdeu um segundo para
brincar. Faltou coragem para perguntar o que ela tinha, mas achei melhor assim, O silêncio e o meu carinho foram a melhor compreensão.
Ao passar por um corredor, vejo um
mural que chama minha atenção. Ele exibe a criatividade de cada criança, seja em desenhos, rabiscos, uma letra. Este espaço é dedicado
simbolicamente aos Doutores, com recadinhos, agradecimentos, enfim, há demonstrações de carinho e de agradecimento.
Vi o desenho de uma boneca chamada
Aspirina, feito por Juliana, de 6 anos. Ao lado, tem uma folha com a receita: "1 quilo de alegria, 2 doses de folia, 3 porções mágicas de amor e
saúde. Dra. Vitamina A, o amor é contagiante". A letra é de Vinícius, de 9 anos.
É incrível a recuperação das
crianças que se encontram internadas, a partir das visitas constantes que aumentam a auto-estima.
Para você conseguir atingir
diretamente o coração de uma criança, primeiramente é preciso criatividade, simplicidade e um mergulho no mundo infantil, fazendo com que o paciente
sinta a sua presença.
O amor é realmente contagiante,
assim como a beleza de um grande oceano. O mais importante é a profundidade e a intensidade com que são cultivados, tocando os olhos e o coração de
cada pessoa. E senti quando conheci o trabalho dos Doutores da Folia.
Os especialistas em "Besteirologia"
utilizam de sensibilidade e muito bom humor para transformar ambientes frios e sombrios, como os dos hospitais, em verdadeiros circos, levando a
todos o riso e, ao mesmo tempo, a reflexão sobre a vida.
É impressionante a transformação
das crianças, até então abatidas, que passam a sorrir e brincar quando os Doutores chegam. Há um engajamento de corpo e alma dos "palhaços" que, no
início, têm que lidar com o estranhamento e a desconfiança dos pacientes até que se chegue à entrega total, através de um belo e comovente sorriso
dos pequeninos, alguns deles em estado terminal.
Poder ver que o
sofrimento pode ser atenuado, mesmo que seja por apenas alguns minutos, é uma sensação inigualável.
[Páginas
187 a 188]
Depoimentos
"Uma experiência, para mim,
inesquecível, e que irei guardar para sempre. Obrigada, Doutores da Folia!" - Gisele Fragnan.
"Os Doutores são pessoas
abençoadas. Além de muito talento
para fazer o que fazem, se
dedicam de corpo e alma. A visita ao hospital junto a eles me ensinou uma nova forma de ver as coisas, me ensinou a me doar sem esperar nada em
troca. É muito lindo o amor que eles têm pelo trabalho voluntário, são 10 anos de histórias maravilhosas a serem contadas. Só quem passa por essa
vivência sabe a importância que eles têm para as crianças internadas e também para a humanização nos hospitais. Parabéns a todos que participam
dessa corrente" - Aline Moreira.
"Que momento tão profundo
e especial foi este encontro de vida a vida que os Doutores da Folia proporcionaram. Dentre tantos olhinhos tristes, pude ver brilharem. Entre tanto
sofrimento, pude levar um sorriso. Entre tanta dor, pude doar o meu coração, como jamais pensei! Como foram profundos estes minutos neste hospital,
um grande aprendizado para a vida toda, estar ao lado destas crianças me fez voltar no tempo, me fez enxergar o verdadeiro propósito de lutar pela
felicidade das pessoas. Achei que as conhecia, mas me surpreendi, elas são inexplicáveis, transformando o que está à sua volta com um amor que
contagia, não permitindo que minhas lágrimas persistissem em cair. Um dia eterno para toda a minha vida. Crianças, vocês são a chave da esperança
para toda a humanidade...! Sempre estarão guardadas por toda a minha vida!" - Bruna Campoi.
"Os Doutores da Folia dão
uma lição de amor ao próximo a quem conhece o trabalho. Ser Doutora da FOlia por um dia foi uma experiência única. De jaleco e maquiagem feita,
esqueci de tudo e só queria saber de alegrar as crianças. Uma situação que me marcou bastante foi quando o Dr. Zé Gotinha (Marco Antônio) conversava
e fazia palhaçadas para o menino Leandro*. O pai, ao ver a alegria do filho, que minutos antes estava se queixando de dor, parecia não estar
acreditando. Com um sorriso de orelha a orelha e bastante emocionado, disse: 'Olha, ele está até cantando!' Saí do hospital renovada e acreditando
ainda mais no papel fundamental que é o voluntariado e a humanização nos hospitais" - Natália Kertes.
"Assim como todo ser
humano, creio ter nas veias um pouco desse néctar da verdadeira arte. Sempre defendi que a arte não pode morrer. É preciso dar vida, voz e espaço ao
artista. Desta vez, a experiência foi bem diferente. Não falamos somente sobre uma trupe de artistas que vivia o auge de suas carreiras. Nossos
personagens não são famosos e nem mesmo se dedicam para isso. São simples artistas que deixaram de lado a ambição de conquistar grandes platéias em
troca de sorrisos. Não há quem não se emocione com as histórias que acompanhamos. Crianças com rostinhos tristonhos em poucos minutos esboçam
novamente a esperança de continuar vivendo. Os profissionais médicos em consenso, assim como mães, parentes e as próprias crianças, aprovam as
ações. Para mim, isto basta. Está provado cientificamente que o amor realmente é capaz de curar. Quem vai além e consegue acreditar em enviados
divinos, não precisa fazer muito esforço para confirmar que os Doutores são alguns deles" - Almir Júnior.
Capa original do projeto para publicação como livro específico
Imagem cedida a Novo Milênio pelos autores do trabalho
Agradecimentos dos autores do trabalho
(texto concebido para a publicação original independente):
Gostaríamos de agradecer especialmente a
todas as pessoas que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização deste livro reportagem.
A nossa orientadora, Profª. Maria
Helena Gomes, que sempre se mostrou muito disposta a ouvir, com interesse e ânimo, todas as questões, dúvidas e problemas que surgiram durante o
processo de produção.
Aos voluntários Marco Antônio de Jesus
e Muriel Murati, pela confiança depositada em nosso trabalho, e que nos receberam de braços abertos ao grupo Doutores da Folia, proporcionando a
todos nós uma experiência inesquecível, de "Doutores" por um dia.
Ao desenhista e amigo Fábio Luiz
Cavalcanti, que nos presenteou com todo carinho, com a ilustração da capa do nosso livro.
Aos nossos familiares, por todo apoio,
carinho e amor dispensados.
Muito obrigado! |