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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - ASSISTÊNCIA
Doutores da Folia

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O trabalho voluntário dos Doutores da Folia foi abordado em matérias preparadas por estudantes de Jornalismo da Universidade Monte Serrat (Unimonte), que formariam um livro específico, projeto depois modificado para que esse material integrasse o livro-brochura Vidas em Pauta - o cotidiano narrado por futuros jornalistas, lançado em 2008 por aquela universidade santista, com a coordenação da professora Helena Gomes e impressão pela Gráfica Guarani, de Santos. O material, compreendido nas páginas 173 a 188, é a seguir transcrito:


Imagem: ilustração na página 173 do livro Vidas em Pauta

[Páginas 175 a 176]

Arte, solidariedade e amor

Por Almir Júnior

Falar sobre arte é sempre muito prazeroso. Ela é algo que nos inspira, nos diverte e nos faz refletir. Ainda que não se tenha o costume de freqüentar teatros, circos ou cinemas, acredito que ao menos uma vez você tenha sido espectador de uma apresentação, seja sentado numa confortável poltrona a contemplar uma caríssima produção ou parado no semáforo da cidade, vendo um garoto com rosto sofrido esboçar um sorriso enquanto faz malabarismos com frutas no ar.

A arte é um verdadeiro mundo, que só existe por causa de alguém, alguém que sempre nos convida com muita simpatia a viver momentos sublimes, que só mesmo nessa esfera somos capazes de viver. Ele nos convida a um descobrimento e, ao vislumbrar esses novos horizontes, somos apresentados a um outro alguém dentro de nós.

Que faça a primeira careta quem nunca riu de um tombo ensaiado do palhaço? Ou sofreu vendo o mágico transpassar uma lança pelo corpo da mocinha? Ou até mesmo se espantou ao ver um homem imitar um dragão e soprar chamas ao vento?

Por mais que a cena seja repetida ou que o truque seja velho, esses magos da diversão sempre nos surpreendem.

O artista guarda consigo algo inenarrável, segredos que ele só compartilha durante seu show, momentos de prazer, mas também de obrigação. Porém, esse sorriso aberto e simpático esconde alguém simples, discreto e normal, que já se acostumou a deixar de lado os problemas pessoais para se entregar por inteiro à fantasia de seu outro mundo.

Talvez passe batido, mas o artista, apesar de ser sempre artista, não consegue estar sempre artista. Às vezes precisa voltar a ser o mesmo alguém que ele se negou a ser um dia em nome da arte, nada além de uma pessoa comum, que estuda, trabalha, namora, se apaixona, sente fome, sede e fica doente, por que não?

Esses homens e essas mulheres a quem nos dedicamos a falar nesta obra nos mostram uma lição que valor nenhum poderia pagar. Aliás, o tal combustível que utilizam para fazer o que fazem realmente não é algo comprável, nem muito menos adquirido durante alguma transação.

Limito-me a resumir sem rodeios que só mesmo com Amor pode se realizar tal ação. Eles não vivem da arte, não se dedicam integralmente aos ensaios e treinamentos. São artistas sim, mas bem diferentes dos que estamos acostumados a falar. A eles o destino reservou uma outra missão. Não precisam se preocupar com a arrecadação da bilheteria, detalhes da produção, sonorização ou afinação das luzes do palco. De segunda a sexta-feira, são simplesmente Marco, Sílvio, José, Solange, ajudantes, advogados e técnicos, profissionais com vidas normais, cheias de questões e responsabilidades, encarando dias agitados e cansativos que teimam em não passar para dar espaço à merecida folga no final de semana.

Poderiam tranqüilamente aproveitar todo o tempo extra para descansar junto à família, mas estranhamente preferem se dedicar a outra atividade.

Atentando para alago que até então ninguém dava atenção, o ator Marco Antonio de Jesus, acostumado a encenar espetáculos para crianças saudáveis e bem cuidadas por seus familiares, se comoveu com a situação de um outro público, também formado por crianças, porém sem as mesmas oportunidades que aquelas que se sentavam em sua platéia.

A idéia foi regada já na primeira visita a um hospital, quando se deparou com olhares apreensivos e curiosos. Crianças que aos poucos soltaram risos e posteriormente gargalhadas.

A partir daí já estava fundado o grupo Doutores da Folia, batizado por um gostoso sorriso, de um menino pobre, comprometido por uma grave doença, que havia algum tempo não esboçava nenhum sinal de felicidade.



Doutor Zé Gotinha

Foto cedida a Novo Milênio pelos autores

 

[Páginas 177 e 179]

Doutores da Folia

Por Natália Kertes

Um aperto de mão, um abraço e um sorriso. Pequenos gestos de carinho, mas que fazem toda a diferença para as crianças que ficam internadas nos hospitais. Os voluntários do projeto Doutores da Folia levam, além de carinho, muita diversão. Brincadeira é o que não falta, desde palhaçadas até desenhos com lápis de cor, tudo para deixar o ambiente mais alegre.

Muitas pessoas têm trauma de hospital, porque o lugar está ligado à doença e também à morte. E ninguém quer ficar preso a uma cama, nem morrer e nem perder uma pessoa querida. Isto é o que os adultos pensam. Imagine as crianças que não entendem muito bem a situação. Como deve ficar a cabecinha delas? Todo o clima de preocupação só ajuda a piorar o estado clínico dos pequenos pacientes, que ficam com a auto-estima lá embaixo, sem nada e ninguém para motivá-los.

Para acabar com os momentos de desânimo na internação, surgem, esbaforidos e atrapalhados, os Doutores da Folia. E já vão logo examinando pés, mãos, barriga e tentando escutar o coração na cabeça do paciente.

Uma notícia no jornal iria transformar a vida de Marco Antônio de Jesus que, aos 25 anos, acabava de ganhar o prêmio de ator revelação, no Festival de Teatro de Santos. Marco Antônio, além de atuar nos grupos de teatro Luzes da Cidade e Offetex, também trabalhava na oficina mecânica de uma concessionária.

Doutores da Folia

Foto cedida a Novo Milênio pelos autores

Marco conta que tudo começou quando conversou com Gimena Cristina Gomes Aranda, uma advogada que fazia parte da diretoria da ONG Comunidade Mãos Dadas, dentro da empresa em que ele era funcionário. Ela sempre passava pelo rapaz, pois a instituição ficava no fundo, a oficina no meio e a sala do empresário na frente do prédio. Quando precisava levar papéis para o empresário assinar, a advogada, para não dar a volta por fora da construção, que tornava o caminho mais longo, cortava por dentro da oficina mesmo, assim mantendo um contato maior com Marco.

Ao ver no jornal que o funcionário havia ganho um prêmio no festival e assim reconhecendo sua responsabilidade e talento para a arte, a advogada lhe deu a idéia de formar um grupo que visitasse hospitais. Um grupo de doutores, com roupas e instrumentos característicos da profissão, mas, ao mesmo tempo, com a maquiagem, o colorido e a alegria dos palhaços. A ONG em que Gimena trabalhava era ligada aos direitos da criança e do adolescente. Ela sempre se interessava por projetos que visassem melhores condições de vida para os jovens.

Marco, então, seguiu a idéia de Gimena e, até hoje, garante o sorriso de muitos pequeninos. Quando se transforma em Doutor da Folia, ele é o Dr. Zé Gotinha. Sempre de jaleco vermelho, pintura de gotinhas no rosto, um par de óculos gigante e a maletinha na mão, o Doutor é especialista em raios x e receitinhas para durar a doença que, na maioria das vezes, é a paixão. "Sabe qual é o problema dele, mãe? Ele está apaixonado" Deve ser por alguma médica ou por outra paciente do hospital", costuma dizer ao se referir à criança internada. E quando percebe que a criança está muito desanimada, ele oferece um Agitol, que imita uma caixa de remédio, mas é só para brincadeira.

O voluntário lembra que, no início, foi muito difícil conseguir autorização para manter o trabalho nos hospitais, lugares sempre muito restritos. Conquistar parceiros e colaboradores também não foi nada fácil, levou muito tempo e trabalho. E a credibilidade, o grupo foi conquistando a cada dia nas visitas e nos eventos da cidade, como campanhas de vacinação, Mc Dia Feliz e Desfile Cívico, entre outros.

Hoje, todos os voluntários transitam livremente pelo hospital Santa Casa de Santos, fazendo muitas amizades, entre pacientes e funcionários. Se tiver alguém na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) chamando pelos Doutores, eles também estão lá para colaborar na melhora do paciente. Além de brincadeiras e palhaçadas, os Doutores distribuem bexigas em forma de cachorrinho e coração para as crianças, e também ligam um som portátil nos quartos para cantar e dançar a música do grupo.

Atualmente, Marco divide seu tempo entre o grupo Doutores da Folia, sua família e a instituição onde trabalha como monitor, que fica em Santos e abriga crianças e adolescentes tirados dos pais, pelo Conselho Tutelar, porque sofreram maus-tratos. Para o diretor do grupo, sempre foi difícil controlar os sentimentos. Nas visitas encontram-se crianças, aparentemente pouco doentes, e outras muito doentes, o que é impressionante e deixa qualquer pessoa abalada. mas depois que nasceu a filhinha de Marcos e Muriel, também voluntária, ele diz que sente um aperto ainda maior no coração. Por isso que, antes de participar das visitas, os voluntários passam por cursos e preparo psicológico.

Em novembro de 2007, o grupo completa 10 anos. Entre tantos acontecimentos importantes, tem um que Marco lembra como  se fosse hoje: o dia em que ele realizou uma palestra no Hospital Beneficência Portuguesa. Uma palestra? Aparentemente uma coisa tão simples, se não fosse levado em conta o passado do voluntário. Quando era pequeno, Marco ficou internado na Beneficência Portuguesa por ter sopro no coração. Muitos anos depois, ele retornou ao hospital para dar uma palestra sobre humanização, no salão nobre. O interessante é que o salão nobre do hospital é o lugar onde, antigamente, havia quartos e foi em um deles que Marco ficou internado. Todo o passado voltou no momento em que soube que iria ministrar a palestra naquele lugar. Ele lembra que ficava muito entediado, pois não tinha nada para fazer. Só havia um baú com carrinhos velhos que não o interessava. "Eu até ficava picando papeizinhos e jogando pela janela", conta o voluntário, rindo.

Muitos voluntários passaram pelo grupo, mas tem uma pessoa que está firme até hoje: Muriel Mureti, a Dra. Resprin. Ela entrou para o grupo em 1998, e sua primeira visita foi no dia de Natal. A voluntária tinha amigos no grupo que a convidaram para participar das visitas. No começo, ela conta que era muito tímida e não sabia como lidar com as crianças, mas depois de alguns encontros ela se soltou. E hoje é uma Doutora super extrovertida, uma verdadeira profissional da Folia.

Sempre carinhosa e pronta para conversar e atender a todos, Muriel cativa de imediato quem a conhece. Como Doutora não é diferente, ela encanta as crianças com bexigas em forma de coração e de cachorrinho, que é sua especialidade. Seu jaleco é amarelo para combinar com os sucrilhos desenhados em seu rosto e, nos cabelos, muitas presilhas de bichinhos para incrementar o penteado.

Muriel é secretária e tesoureira dos Doutores da Folia e também trabalha em um laboratório de análises clínicas, em Santos. Ela não esconde seu amor por crianças e, principalmente, por sua filha, que já tem o apelido de Dra. Tutti Frutti. Ela deixa uma mensagem final:" Vejam o mundo pelos olhos de uma criança".



Hunter Patch Adams

Foto cedida a Novo Milênio pelos autores

 

[Páginas 180 a 181]

O encontro com o mestre inspirador

Por Gisele Fragnan

Era uma segunda-feira de muito sol na bela Recife. O Aeroporto Internacional de Guararapes transformou-se em um grande picadeiro composto por dezenas de crianças, todas com narizes de borracha vermelha, de palhaço, que aguardavam ansiosamente pela hilariante figura do médico norte-americano Hunter Patch Adams.

As crianças, portadoras de câncer, estavam lá juntamente com milhares de outras pessoas, inclusive o grupo Doutores da Folia, para prestar homenagem ao grande ícone da humanização da Medicina.

Conhecido no mundo inteiro por causa do filme Patch Adams: O amor é contagioso (lançado no ano de 1998 e protagonizado pelo ator Robin Williams), Patch Adams tem uma aparência  excêntrica, sempre com nariz de palhaço, brincos em formato de garfo e cabelos que, além de compridos, são coloridos.

Patch, por ter sido o pioneiro da "terapia do riso", teve que enfrentar no início diversos obstáculos. Na faculdade de Medicina, por diversas vezes foi criticado por sua "alegria excessiva" e por quebrar alguns paradigmas impostos pela sociedade. Patch sempre foi considerado um médico diferente, que não parece, não age e não pensa como um doutor. Sua determinação é um exemplo de amor à vida, que se alastrou pelo mundo e inspirou a criação de instituições ou grupos voluntários que também utilizam a mesma técnica de trabalho.

No Brasil, há vários grupos que utilizam o humor como uma opção de terapia para combater doenças. Entre eles, está os Doutores da Folia que, ao receberem a notícia de que Patch Adams viria para o Brasil para participar do 5º Congresso Brasileiro dos Conselhos de Enfermagem, no ano de 2002, o grupo decidiu, então, viajar rumo à cidade do Recife.

A passagem foi concedida com um grande desconto por uma empresa aérea. De malas prontas, o grupo embarcou em busca de um sonho: o encontro com o grande mestre inspirador.

Para os Doutores da Folia, estar perto de alguém tão especial como Patch era, sem dúvida, uma sensação para lá de emocionante. Tanto que, no dia em que o grupo foi assistir à palestra ministrada pelo médico norte-americano, o voluntário Marco Antonio de Jesus mal conseguiu prestar atenção no que o mestre falava. Era emoção demais naquele momento.

Porém, Marco pôde perceber que a mensagem que Patch queria transmitir era bastante simples. Ou seja, que ele não era Deus e sim um ser humano comum, e que seu maior desejo seria alcançar a paz mundial. O que, segundo ele, só será possível quando as pessoas aprenderem a olhar à sua volta e passarem a ajudar os mais necessitados.

O Congresso Brasileiro de Enfermagem ofereceu, além de palestras aos participantes, um show com o animado grupo baiano Chiclete com Banana. Foi aí que os voluntários dos Doutores da Folia puderam ter um contato mais próximo com Patch Adams.

Apesar de Patch ter um camarim especialmente reservado para ele, preferiu ficar em meio à multidão para curtir e dançar ao som do contagiante ritmo de axé baiano.

Entre as centenas de pessoas presentes, Marco avistou na fila de bebidas do bar um rapaz alto, de pele muito clara, com cabelos quase brancos de tão loiros e olhos azuis que, segundo ele, fugiam dos padrões brasileiros. Por intuição ou sei lá o quê, o Doutor da Folia sentiu estar diante do filho de Patch Adams.

Intrigado com a presença do rapaz, Marco não se conteve e pediu para que seu amigo Luís fosse até lá abordá-lo, uma vez que ele não falava nada em inglês, para confirmar sua suspeita.

E lá foi Luís. Para surpresa de todos, aquele rapaz era mesmo o filho do médico norte-americano. Logo no início da conversa, o jovem percebeu pelo sotaque que Luís era brasileiro e começou a falar com ele em português.

O rapaz já havia morado durante um tempo no Sul do Brasil e por isso dominava o idioma, o que facilitou muito a comunicação com os Doutores.

O jovem, bastante simpático, logo disse: "Meu pai está logo ali, vamos até lá com ele". Os olhos de Marco e Luís brilharam como os olhos de uma criança. Ambos sentiram um misto de emoção e nervosismo. Afinal, em poucos minutos, estariam diante do grande mestre.

Marco e Luís perceberam que aquilo não era um sonho e sim realidade. Não foi difícil avistar Patch dançando em meio à multidão. Ele se destacava por suas roupas coloridas e o visual excêntrico.

O jovem apresentou os Doutores a Patch, que foi bastante agradável. E, apesar de não falar português como o filho, todos acabaram se entrosando e curtindo a noite animada. Uma oportunidade, sem dúvida, inesquecível para o grupo santista.



Doutora Resprin

Foto cedida a Novo Milênio pelos autores

[Páginas 182 a 183]

Ser voluntário

Por Aline Moreira

Cuidar. Esta palavra resume o trabalho voluntário do grupo Doutores da Folia. Com o rosto pintado como o de palhaços, os voluntários entram na ala da pediatria do Hospital Santa Casa de Santos. As crianças, felizes e encantadas com a chegada dos voluntários, correm para ver cada passo daqueles que levam um pouco de alegria em meio a tanta dor.

Zé Gotinha, o único palhaço homem do grupo de quatro, com sua música e dança, faz a criançada se balançar, arrancando sorrisos até dos mais doentes. Até os pais se soltam e caem no ritmo.

São vários os quartos a serem visitados, cada um com uma característica especial. Alguns pais olham, mas permanecem distantes, receosos. Outros se juntam às palhaçadas do Doutor e até usam os adereços que Zé Gotinha tem em sua maleta, como nariz de monstro, medidor de pressão arterial de plástico e um estetoscópio de brinquedo.

Em um quarto, onde havia sete pessoas, entre familiares e crianças internadas, um pai mostra o seu descaso com o próprio filho. Embriagado, desdenha daquele que entra para festejar e alegrar as duas crianças. Mas, com jogo de cintura e muito bom humor, logo o clima pesado naquele ambiente vai embora, deixando lugar para sorrisos e agradecimentos.

Uma voluntária chama a atenção por sua simpatia e disposição em ajudar o próximo. Bruna de Paula Silva, trajando o jaleco de Doutora da Folia, na cor rosa claro, com maquiagem bastante colorida no rosto, encantava as crianças do hospital.

Bruna decidiu entrar para os Doutores por intermédio de uma amiga, que já conhecia o trabalho realizado por eles. "Achei que, no mínimo, iria me divertir muito". Foi aprovada numa etapa de capacitação na cidade de Cubatão, que durou o dia inteiro. Aconteceram dinâmicas em grupo e uma palestra para que, desta forma, os candidatos pudessem conhecer melhor o trabalho, regras e seu modo de agir enquanto Doutores da Folia. A partir desse dia, Bruna se apaixonou pelo grupo. Isto foi há seis meses.

Em sua primeira atuação como uma "Doutora" de verdade, Bruna acompanhou o grupo durante uma visita ao asilo Casa do Sol, no Morro da Nova Cintra, em Santos. Era semana de Páscoa e os Doutores foram distribuir ovos para os idosos internados. Ao entrar no abrigo, Bruna logo percebeu o peso do ambiente, tamanha era a tristeza dos que viviam lá.

Depois de um bom tempo, os velhinhos entraram em clima de festa. Bruna e uma amiga foram entregar um ovo de Páscoa para um senhor chamado Roberto, que caminhava com a ajuda de andador. Ao pegar o presente na mão, ele disse que não abriria, pois aquele ovo iria ser entregue por ele a um amigo que se encontrava em condições piores que a dele. Estava deitado numa cama, impossibilitado de buscar o seu.

Segurando na mão das meninas, o velho senhor as levou até o quarto onde estava seu amigo. "Pessoas como ele passam anos aqui e ninguém vem visitá-los, ninguém quer saber como estão", desabafou Roberto. Para o velho senhor, o asilo é um lugar bastante confortável. Os internos têm toda a assistência necessária, cuidados médicos, mas, apesar de tudo, é um lugar triste, pelo tamanho descaso e abandono dos parentes e familiares.

"Alguns estão aqui porque a família não tem condições financeiras para mantê-los em casa, mas não deixam de visitá-los. Já outros estão aqui por conveniência, porque a família não quer um peso, um estorvo dentro de casa. Essas pessoas esquecem quem são, de onde vieram e até mesmo por que motivo estão neste lugar", relatou Roberto, com lágrimas nos olhos.

Ao chegarem perto do senhor que estava deitado na cama, totalmente encolhido em um canto, muito triste, as meninas viram que ele não estava disposto a brincadeiras. Pegou o ovo de Páscoa e disse o seu nome: José. E só de pois de quase vinte minutos de bate-papo é que José cedeu aos encantos dos voluntários brincalhões.

Ao final da visita ao abrigo Casa do Sol, José foi tirado da cama pelos Doutores e se despediu dizendo que os voluntários haviam feito uma coisa muito importante. Deram-lhe uma atenção especial que ele já não recebia há muito tempo. José agradeceu muito. Então, ele deu um beijo no rosto de cada uma das meninas do grupo. Virou-se para o único rapaz e disse, com uma gargalhada contagiante: "Não beijo marmanjo".

Esta experiência marcou a primeira visita de Bruna como voluntária e a encorajou a sempre querer ajudar os que mais precisam. "Coisas tão simples e até mesmo bobas podem significar muito para alguém que não tem nada".



Doutores, na promoção McDia Feliz em 2001, da lanchonete McDonald's do bairro do Gonzaga

Foto cedida a Novo Milênio pelos autores

 

[Páginas 184 a 186]

Uma vida preciosa...

Por Bruna Campoi

Um presente esperado durante nove meses, cuidado com muito carinho e amor por toda a família. Desde o momento de seu nascimento , já se torna uma pessoa importante na vida de quem os ama.

Fragilidade, inocência, pureza, espontaneidade e sinceridade fazem das crianças pequenos muito especiais. Alguns, porém, necessitam de uma atenção ainda maior, pois nascem com problemas de saúde.

Neste momento, muitas vezes, os pais se sentem impossibilitados de fazer algo pelo filho, principalmente quando o caso é muito grave.

Existem almas que parecem que foram criadas para este tipo de situação, pessoas que se dedicam a buscar a alegria de viver e trazer para a vida desta criança toda a magia, o amor, as descobertas, da verdadeira infância. Sem tristeza, sem lágrimas, sem seriedade, sem incertezas...

São chamados de voluntários, ou melhor, Doutores da Folia. "Para curar, é preciso mais do que remédio", dizem. "É preciso carinho".

O grupo, que atua para atender crianças e adolescentes do Hospital Santa Casa da Misericórdia de Santos, é formado por 28 atores que têm como ponto principal a dedicação a este trabalho.

Dia 28 de outubro, às 13h30, caminhando dentro deste hospital, pude perceber o quanto este lugar traz angústia e tristeza para quem permanece por lá por mais de um minuto. Um corredor imenso, cheio de quartos, crianças de todas as idades, um lugar que não deveria ser de uma criança.

Durante todo o processo de arrumação para me tornar uma doutora por um dia, senti dentro do coração que faria a diferença na vida de almas profundamente puras.

Ao me olhar no espelho, senti que nunca estive tão bela em toda a minha vida. Borboletas e cores faziam do meu rosto um conjunto de harmonia, uma sensação de parecer ter aguardado este momento todos estes anos. Conhecer a fundo o verdadeiro mundo das crianças é inexplicavelmente o maior sentimento que alguém pode vivenciar.

Agora estamos indo de encontro às crianças. cerca de vinte quartos seriam visitados nesta tarde. Logo que entrei, uma senhora me relatou que todas as crianças nos aguardavam ansiosamente.

Começamos pelo último quarto e, ao entrar, encontramos Camile, uma neném de três meses de vida, com as mãozinhas frágeis, pequeninas, no colo do pai Manoel. Camile está com infecção generalizada.

Que neném de coragem, mesmo passando por várias dificuldades, permanecia ali, lutando pela vida, no aconchego de seus pais.

Ao tocar suas mãos, olhar em seus olhinhos azuis, meio acinzentados, cabelos lisos, finos, castanho claros, percebi a tristeza em seu olhar. Nem posso imaginar o tipo de dor que naquela hora ela estava sentindo. Como não seria possível com palavras, me comuniquei do modo mais intenso em toda a minha experiência de vida: dei um sorriso transmitindo a minha vontade de arrancar toda a doença daquele ser tão frágil.

Após este ato, senti que sua mãozinha segurou meu dedo e um sorriso surgiu em forma de gratidão. Assim o meu objetivo se concretizou. Pude tocar o seu coração da maneira mais sincera.

Foi difícil deixar aquele quarto. Tinha tantas coisas para ver, tantas vidas para alegrar, levar esperança. Os voluntários foram ao próximo quarto, mas eu quis ficar só mais um pouquinho. A sensação que tive ao estar ao lado de Camile me fez refletir sobre a minha própria vida, lembrar as pessoas que me cercam, que eu amo, enfim, o quanto se perde tempo com brigas tolas e egoísmo.

Neste momento, pude perceber a verdadeira essência e propósito de nossas vidas que, muitas vezes, deixamos de lado, sem perceber os detalhes que nos rodeiam.

Ao me retirar, senti nos olhos daqueles pais aflitos a gratidão por ter proporcionado alegria e afeto à sua filha.

Caminhei rumo ao próximo encontro, um quarto cheio de crianças de todas as idades. Começamos a fazer cachorros em formato de bexigas para todos os presentes. No canto, havia uma neném, que me observava há algum tempo. Ao perceber isto, fui em sua direção.

Mariana, de 2 anos, estava ansiosa para receber a bexiga e, ao mesmo tempo, prestava atenção nas cores que estavam em meu rosto. Com a mãe ao lado, brincava e apertava o cachorrinho.

Existem certas ocasiões que não precisam de respostas para notar o quanto o caso é grave. Era o caso de Mariana, que estava debilitada e, mesmo assim, não perdeu um segundo para brincar. Faltou coragem para perguntar o que ela tinha, mas achei melhor assim, O silêncio e o meu carinho foram a melhor compreensão.

Ao passar por um corredor, vejo um mural que chama minha atenção. Ele exibe a criatividade de cada criança, seja em desenhos, rabiscos, uma letra. Este espaço é dedicado simbolicamente aos Doutores, com recadinhos, agradecimentos, enfim, há demonstrações de carinho e de agradecimento.

Vi o desenho de uma boneca chamada Aspirina, feito por Juliana, de 6 anos. Ao lado, tem uma folha com a receita: "1 quilo de alegria, 2 doses de folia, 3 porções mágicas de amor e saúde. Dra. Vitamina A, o amor é contagiante". A letra é de Vinícius, de 9 anos.

É incrível a recuperação das crianças que se encontram internadas, a partir das visitas constantes que aumentam a auto-estima.

Para você conseguir atingir diretamente o coração de uma criança, primeiramente é preciso criatividade, simplicidade e um mergulho no mundo infantil, fazendo com que o paciente sinta a sua presença.

O amor é realmente contagiante, assim como a beleza de um grande oceano. O mais importante é a profundidade e a intensidade com que são cultivados, tocando os olhos e o coração de cada pessoa. E senti quando conheci o trabalho dos Doutores da Folia.

Os especialistas em "Besteirologia" utilizam de sensibilidade e muito bom humor para transformar ambientes frios e sombrios, como os dos hospitais, em verdadeiros circos, levando a todos o riso e, ao mesmo tempo, a reflexão sobre a vida.

É impressionante a transformação das crianças, até então abatidas, que passam a sorrir e brincar quando os Doutores chegam. Há um engajamento de corpo e alma dos "palhaços" que, no início, têm que lidar com o estranhamento e a desconfiança dos pacientes até que se chegue à entrega total, através de um belo e comovente sorriso dos pequeninos, alguns deles em estado terminal.

Poder ver que o sofrimento pode ser atenuado, mesmo que seja por apenas alguns minutos, é uma sensação inigualável.


Gisele Fragnan[Páginas 187 a 188]

Depoimentos

"Uma experiência, para mim, inesquecível, e que irei guardar para sempre. Obrigada, Doutores da Folia!" - Gisele Fragnan.

"Os Doutores são pessoas abençoadas. Além de muito talento Aline Moreirapara fazer o que fazem, se dedicam de corpo e alma. A visita ao hospital junto a eles me ensinou uma nova forma de ver as coisas, me ensinou a me doar sem esperar nada em troca. É muito lindo o amor que eles têm pelo trabalho voluntário, são 10 anos de histórias maravilhosas a serem contadas. Só quem passa por essa vivência sabe a importância que eles têm para as crianças internadas e também para a humanização nos hospitais. Parabéns a todos que participam dessa corrente" - Aline Moreira.

Bruna Campoi"Que momento tão profundo e especial foi este encontro de vida a vida que os Doutores da Folia proporcionaram. Dentre tantos olhinhos tristes, pude ver brilharem. Entre tanto sofrimento, pude levar um sorriso. Entre tanta dor, pude doar o meu coração, como jamais pensei! Como foram profundos estes minutos neste hospital, um grande aprendizado para a vida toda, estar ao lado destas crianças me fez voltar no tempo, me fez enxergar o verdadeiro propósito de lutar pela felicidade das pessoas. Achei que as conhecia, mas me surpreendi, elas são inexplicáveis, transformando o que está à sua volta com um amor que contagia, não permitindo que minhas lágrimas persistissem em cair. Um dia eterno para toda a minha vida. Crianças, vocês são a chave da esperança para toda a humanidade...! Sempre estarão guardadas por toda a minha vida!" - Bruna Campoi.

Natália Kertes"Os Doutores da Folia dão uma lição de amor ao próximo a quem conhece o trabalho. Ser Doutora da FOlia por um dia foi uma experiência única. De jaleco e maquiagem feita, esqueci de tudo e só queria saber de alegrar as crianças. Uma situação que me marcou bastante foi quando o Dr. Zé Gotinha (Marco Antônio) conversava e fazia palhaçadas para o menino Leandro*. O pai, ao ver a alegria do filho, que minutos antes estava se queixando de dor, parecia não estar acreditando. Com um sorriso de orelha a orelha e bastante emocionado, disse: 'Olha, ele está até cantando!' Saí do hospital renovada e acreditando ainda mais no papel fundamental que é o voluntariado e a humanização nos hospitais" - Natália Kertes.

Almir Júnior"Assim como todo ser humano, creio ter nas veias um pouco desse néctar da verdadeira arte. Sempre defendi que a arte não pode morrer. É preciso dar vida, voz e espaço ao artista. Desta vez, a experiência foi bem diferente. Não falamos somente sobre uma trupe de artistas que vivia o auge de suas carreiras. Nossos personagens não são famosos e nem mesmo se dedicam para isso. São simples artistas que deixaram de lado a ambição de conquistar grandes platéias em troca de sorrisos. Não há quem não se emocione com as histórias que acompanhamos. Crianças com rostinhos tristonhos em poucos minutos esboçam novamente a esperança de continuar vivendo. Os profissionais médicos em consenso, assim como mães, parentes e as próprias crianças, aprovam as ações. Para mim, isto basta. Está provado cientificamente que o amor realmente é capaz de curar. Quem vai além e consegue acreditar em enviados divinos, não precisa fazer muito esforço para confirmar que os Doutores são alguns deles" - Almir Júnior.


Capa original do projeto para publicação como livro específico

Imagem cedida a Novo Milênio pelos autores do trabalho


Agradecimentos dos autores do trabalho

 (texto concebido para a publicação original independente):

 

    Gostaríamos de agradecer especialmente a todas as pessoas que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização deste livro reportagem.

     A nossa orientadora, Profª. Maria Helena Gomes, que sempre se mostrou muito disposta a ouvir, com interesse e ânimo, todas as questões, dúvidas e problemas que surgiram durante o processo de produção.

     Aos voluntários Marco Antônio de Jesus e Muriel Murati, pela confiança depositada em nosso trabalho, e que nos receberam de braços abertos ao grupo Doutores da Folia, proporcionando a todos nós uma experiência inesquecível, de "Doutores" por um dia.

     Ao desenhista e amigo Fábio Luiz Cavalcanti, que nos presenteou com todo carinho, com a ilustração da capa do nosso livro.

     Aos nossos familiares, por todo apoio, carinho e amor dispensados.

     Muito obrigado!

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