14 de novembro de 1943
Sessão de encerramento da Semana Médico-Social
Com uma brilhante conferência
pronunciada pelo professor Ernesto de Sousa Campos, foi encerrada na noite de 14 de novembro a Semana Médico-Social realizada em nossa cidade como
parte integrante dos festejos comemorativos do 4º Centenário de Fundação da Santa Casa da Misericórdia de Santos.
A sessão solene, realizada às 21
horas, no Consistório, foi presidida pelo prof. Clementino Fraga, tendo participado da mesa os srs. dr. Antônio Gomide Ribeiro dos Santos, prefeito
municipal; d. Idilio José Soares, bispo diocesano; monsenhor Luiz Gonzaga Rizzo, vigário geral da diocese; sr. Benedito Gonçalves, o provedor da
Santa casa; dr. Costa e Silva Sobrinho, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Santos; dr. Othon Feliciano, diretor clínico da Santa
Casa, e o conferencista prof. Ernesto de Sousa Campos, do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil e da Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo.
Estiveram presentes numerosas pessoas,
dentre as quais se destacavam médicos de nossa cidade e outras pessoas de representação social.
Iniciando os trabalhos, o professor
Clementino Fraga deu a palavra ao dr. Costa e Silva Sobrinho, que fez a apresentação do conferencista dizendo: "Às
comemorações do 4º Centenário da Fundação da Santa Casa da Misericórdia de Santos, não podia deixar de prestar sua cooperação o Instituto Histórico
e Geográfico de Santos".
Passou a seguir, o dr. Costa e Silva
Sobrinho, a descrever ação do professor Ernesto de Souza Campos, como médico e como historiador. Na Medicina é um dos seus expoentes mais notáveis.
Relembrou a sua ação no flagelo da gripe, em 1918. Em 1934, chefiou uma turma de estudantes numa excursão aos Estados Unidos e ao Japão, em visita
às escolas médicas daqueles países. Foi uma viagem para a qual os cofres públicos não despenderam um real, já que foi custeada pelos estudantes e
pelo professor, constituindo-se de uma verdadeira viagem à volta do mundo.
Em 1930, foi nomeado diretor da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; em 1937, passou a diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade de São
Paulo.
Relembrou as obras publicadas pelo
prof. Sousa campos, nas quais sempre dedicou carinho excepcional aos problemas educacionais. Destacou, depois, o trabalho, o mais recente do
professor Sousa campos, sobre o primeiro hospital fundado no Brasil: A Santa Casa da Misericórdia de Santos.
Conferência do prof. Sousa Campos
Levantou-se a seguir o professor
Ernesto de Sousa Campos, que pronunciou brilhante conferência, abordando a organização e fundação das Misericórdias, em geral. Durante mais de uma
hora o prof. Ernesto de Sousa Campos manteve presa a atenção de todos os presentes, com uma narração maravilhosa, revelando e precisando dados
documentários de um valor extraordinário, principalmente para a nossa cidade e para a Santa Casa de Santos.
É a seguinte a conferência do dr.
Ernesto de Sousa Campos, que tanto empolgou o seleto auditório:
"O
primeiro hospital do reino lusitano teve a invocação de Virgem Maria da Enfermaria. Foi estabelecido por Afonso Henriques, o fundador da monarquia
portuguesa, durante o cerco de Lisboa (N.E.: ocorrido de 1º de julho a 25 de outubro de 1147.
Afonso Henriques, ou Afonso I, foi o primeiro monarca de Portugal, assim aclamado em 1139).
"Na Bula de Pio IV dirigida ao rei d. Sebastião,
em 1561, existem referências a esta instituição. Instalada fora dos antigos muros da cidade, servia aos fiéis que durante
o cerco eram feridos ou adoeciam.
"Com o decorrer dos tempos, outros nosocômios
foram se organizando na metrópole conquistada. Serviam, simultaneamente, de hospitais, de pousada, para peregrinos e até de asilos para pobres e
inválidos. Funcionavam também hospitais privativos de certas classes como a dos marítimos, dos sapateiros, dos ourives, organizados sob princípios
cooperativistas.
"Monarcas, religiosos e particulares criavam
estabelecimentos piedosos. Entre estes convém destacar a Irmandade da Piedade, que parece ter sido a pioneira das Misericórdias. Discutiremos este
tema mais adiante.
"Com D. João II surgiu a idéia de centralizar
todas estas pequenas organizações de assistência médica em um grande hospital. Teve a invocação de Todos os Santos.
"A idéia centralizadora trouxe como conseqüência
a construção do vasto hospital, iniciado em 1492, por d. João II, e concluído por seu cunhado e sucessor d. Manoel, o Venturoso. Lindo sonho de d.
João II - esplêndida realização de d. Manoel.
"O acontecimento marcou época na metrópole
portuguesa ao tempo em que sua história começou a confundir-se com a nossa.
"E assim vemos, em Portugal, a repercussão do
tipo concentrado que sucedeu ao de pequenas unidades esparsas. O Hospital S. Luis e principalmente o Hotel Dieu de Paris culminaram esta fase. O
segundo chegou a reunir cinco mil doentes, postos quatro e cinco em um mesmo leito.
"Com o advento da era bacteriana regressamos ao
tipo pavilhonar, convertido, novamente, em monobloco em virtude dos progressos mecânicos e da Medicina preventiva.
"D. João II, quase ao finalizar seu reinado
tumultuoso, afogado na luta contra a fidalguia portuguesa em que muitos nobres pereceram sob suas mãos ou a seu comando, entrou a se preocupar com
obras de benemerência depois da morte trágica do seu único filho legítimo e malogrado herdeiro do seu sangue e do seu trono.
"A desgraça, que o atingiu de um modo súbito,
chamou à realidade o homem que não trepidara em martirizar o bispo de Évora, lançando-o em um poço. E, não podendo terminar a obra pia que
empreendera, deixou, em seu testamento, a súplica para que seu sucessor o fizesse. Cumpriu d. Manoel a disposição testamentária do cunhado, que tão
cruel fora com os de sua família.
"A morte do príncipe d. Afonso parece ter
exercido decisiva influência no ânimo do rei. Soberano, cortesãos e princesa consorte tosquiaram-se. Rei e rainha repeliram seus tarjes de luxo,
buscando roupas de tecido ordinário. A princesa de ponto em branco, como era o luto da época, trazia à cabeça espesso véu negro. O povo, mesmo o das
remotas províncias, trocou suas vestes habituais pelo burel. Os que não podiam comprá-lo vestiam suas roupas ao avesso.
"Tudo isto demonstra o grande choque determinado
pelo desaparecimento do desafortunado príncipe. Além do mais, sua morte prejudicava os interesses da coroa portuguesa na pretensão de reunir
Portugal e Castela em um só cetro, sob a égide de um soberano luso. Tentativa que mais de uma vez não logrou êxito, a não ser com Felipe II, mas
então, sob hegemonia espanhola.
"Pedro Maris, no Dialogo de Varia Historia,
dá boa interpretação destes sentimentos de d. João II (págs. 491-492):
"'Passadas
estas lástimas e outras cousas em que a prudência de el-rei resplandecia, vendo-se ele sem filhos legítimos e herdeiros... determinou ocupar-se das
cousas divinas que com tão larga usura são sempre sacrificadas... Começou a fazer muitas obras a oculto divino dedicadas e entre elas a quinze de
maio de mil quatrocentos e noventa e dois deu princípio à magnífica fábrica do Hospital Real da Cidade de Lisboa, unidos a ela todos os hospitais
que na cidade havia com suas rendas que eram muitas e por isso lhe pôs o nome de Todos os Santos'.
"Não sofreu menos a esposa de d. João II. Além da
morte do filho querido, fora ludibriada e ofendida nos seus legítimos direitos de esposa pelo valimento da mãe do bastardo d. Jorge, que quase se
colocou na posição de herdeiro do trono. A humilhação era incompatível com sua singular formosura de corpo e de espírito. Seus infortúnios
revigoraram a inclinação religiosa. Procurou na paz dos templos lenitivo para sua alma amargurada.
"Concebível é, portanto, que tendo em suas mãos o
trono português, na curta regência determinada pela viagem de d. Manoel a Castela, d. Leonor, inspirando-se na ação do esposo falecido, tomasse a
iniciativa de criar, como ele, uma grande instituição de assistência caritativa. Instituiu, então, a Misericórdia de Lisboa, no que foi aplaudida e
auxiliada por seu irmão d. Manoel, logo que este regressou ao seio da pátria.
"Construiu-lhe o monarca magnífico edifício
ornamentado ao gosto do estilo que lhe tomou o nome - estilo manoelino.
"Concedeu grandes privilégios à novel
instituição. No dizer de Rebelo da Silva, era d. Manoel 'largo por índole em todas as
aspirações e tão mimoso da fortuna que até os impossíveis lhe aclamavam'. Não teve porém a
ventura de ver inaugurado o hospital. O auspicioso acontecimento ocorreu treze anos depois do seu falecimento. Abriram-se as portas do grande
nosocômio a 25 de março de 1534.
"O edifício da Misericórdia tem a reputação de
ser o mais suntuoso da cidade, naquela época, depois do templo dedicado à Santa Maria do Belém. Descrição minuciosa aponta-o como obra monumental.
Basta, aliás, atentar para o porta poupado pelo terremoto, para se ter essa impressão. Em trabalho que oferecemos à Misericórdia de Santos como
humilde homenagem pela passagem do seu quarto centenário, reproduzimos uma fotografia deste portal maravilhoso, hoje integrado no conjunto da igreja
da Conceição Velha de Lisboa.
"No templo da primitiva Misericórdia erguiam-se
20 colunas de mármore cinzelado. Seis subdividiam a nave em três amplos corpos. As outras quatorze colunas sustentavam a abóbada ricamente
adereçada. Ali, as divisas de d. Manoel alternavam com emblemas da fé, ornatos e lacarias. A capela-mor ostentava notável obra de talha em que
sempre se esmerou a arte portuguesa. Em tudo, um deslumbramento.
"A par da suntuosa igreja, contava a Confraria
com o hospital, com dois recolhimentos de órfãos e mais dependências com a secretaria e os cartórios. Obra de grandeza tão característica da
transbordante personalidade do rei venturoso.
"Trezentos irmãos contava a Confraria em 1550 e
seiscentos em 1640. Metade da Irmandade era constituída por fidalgos e entre eles o rei de Portugal. Outra metade cabia aos que denominavam de
mecânicos. Para a mesa eram eleitos seis nobres e seis mecânicos sob chefia de um provedor, obrigatoriamente fidalgo. As principais tarefas eram
exercidas por um escrivão e um tesoureiro, quatro visitadores de enfermos e viúvas, dois encarregados do jantar dos presos. Domingo forneciam pão,
carne e vinho aos encarcerados. Quarta-feira era o dia de visitação dos pobres. Na sexta-feira eram distribuídas as esmolas.
"Era escasso o corpo clínico: um físico, um
cirurgião, um sangrador. Cuidavam mais do espírito do que do corpo, pois que, em contraste com o reduzido número de profissionais, avultava o de
religiosos a serviço da casa: 20 capelães, um mestre de capela, um organista e quatro moças para ajudarem o serviço divino.
"Faltava-lhes o senso de equilíbrio entre os
cuidados do espírito e do corpo de que nos falou Clementino Fraga, na sua formosa oração de abertura da semana médica.
"Duas boticas contava a Misericórdia, uma para os
internados, outra para os doentes de ambulatório.
"D. Leonor não foi penas a Instituidora das
Misericórdias. Um dia, passando ao trote largo da sua sege, vira alguns homens banhando-se em ribeiro próximo. Indagando, soube que assim procediam
para tratamento de seus males. Não hesitou a rainha em experimentar aquelas águas. E tomou sob seus ombros a empresa daquelas termas, depois
denominadas Caldas da Rainha.
"Cuidou também da penosa situação sanitária de
Lisboa. Quadro doloroso que mãos portuguesas descreveram e que não queremos desvendar nesta hora tão festiva. São conhecidas e reproduzidas as
cartas da rinha reclamando medidas sanitárias à Câmara de Lisboa. Uma das missivas foi endereçada a 25 de setembro de 1495, isto é, três anos antes
da fundação lisboeta. A resposta certamente não satisfez à rainha, pois que a 8 de julho do ano seguinte novo apelo foi enviado à Câmara e a seu
capelão.
"Estabelecendo a Misericórdia, não se esqueceu a
rainha de criar outros estabelecimentos pios, como o hospital das Caldas, as cinco mercearias na Igreja de Santa Maria de Óbidos, outras tantas em
Nossa Senhora da Graça de Torres Vedras, algumas garfarias, os conventos de Anunciada, de Xabregas, de Santa Clara, primor da arte arquitetônica.
"Admite-se, ainda, que d. Leonor influiu na
edificação da Igreja das merceanas e das capelas imperfeitas do Convento da Batalha. Não descurou as Belas Artes, as Letras e o Teatro português.
Obras culturais e de assistência aqui rememoradas pela palavra do eminente embaixador José Carlos de Macedo Soares, na síntese admirável que traçou
na figura moral e espiritual da rainha d. Leonor.
"Julio de Castilho, na Ribeira de Lisboa,
comenta:
'Bastava
a iniciação do seu grandioso e caridoso pensamento para tornar esta rainha credora da gratidão de todos os portugueses; mas a rainha não se limitou
a iniciar. Pediu, insinou (N.E.: SIC),
acumulou sobre a Irmandade beneficente as esmolas e bênçãos dos grandes e dos pequenos, e até privilégios e isenções dos Sumos Pontífices'.
"Neste aspecto de devotamento aos enfermos, d.
Leonor igualou ou excedeu a rainha Santa Isabel, a do milagre das rosas, esposa de d. Diniz, o rei fundador da Universidade de Coimbra. Santa Isabel
foi a fundadora dos hospitais de Coimbra, de Leiria e dos enfermos e enjeitados de Santarém.
"Eis aí outro argumento em favor da atuação de d.
Leonor na criação da Misericórdia de Lisboa - a tradição. A história das rainhas de Portugal consigna iniciativas dessa natureza, como se este papel
lhes estivesse reservado. Beatriz de Gusmão, segunda mulher de Afonso III, lançou as bases do Hospital da Mouraria e do Colégio de Jesus dos meninos
órfãos de Lisboa. Beatriz de Castela criou um hospital na mesma cidade.
"Não precisava, portanto, a rainha, de quem lhe
lembrasse a idéia de fundar a Santa Casa de Misericórdia. Tinha todas as credenciais para tomar iniciativa própria. Dispensaria a insinuação do
frade espanhol frei Miguel de Contreiras. Aliás, se quisermos acreditar no que revela o Santuario Mariano, Portugal já possuíra há longos
anos uma instituição análoga, a que já nos referimos - a Irmandade da Piedade.
"Instalada em um capela do claustro da Sé de
Lisboa, tinha por missão enterrar os mortos, visitar os encarcerados e acompanhar os condenados. Basta enunciar estas finalidades para
demonstrar que tal instituição teve exatamente os mesmos objetivos da primitiva Misericórdia florentina.
"Foi, sem dúvida, a pioneira das Misericórdias,
se é fiel a descrição do autor do Santuario. Funcionou quase dois séculos e meio antes da fundação da primeira Misericórdia portuguesa, que
vem de 1498. A Irmandade da Piedade é de 1230.
"Se acreditarmos ao que menciona o Santuario
Mariano (Livro I, Título X, pág. 63 em diante), a Irmandade da Piedade, apesar de não ter a denominação de Santa Casa da Misericórdia, foi
realmente a iniciadora destas atividades no reino português. Vale dizer em toda a Europa, quiçá no mundo inteiro, se não quisermos acreditar da
existência de semelhante confraria na China em época que se perde na noite dos tempos.
"Eis o que diz o Santuario Mariano ao
tratar da imagem de N. S. da Piedade da terra solta, na Sé de Lisboa:
"'Na
Claustra da Sé metropolitana se venera com grande devoção e concurso de devoto povo hua antiga Imagem de Nossa Senhora da Piedade, de pincel, que
agora em nosso tempo a quiz a bondade divina fazer celebre com milagres e maravilhas que por sua intercesão experimentam os que a buscam. Os
principios desta Irmandade e sua Origem são muito antigos. O que consta é que já pelos anos de 1.230, reinando El Rei D. Sancho II, chamado o
Capelo, havia na mesma Sé uma Santa Irmandade a qual já naquele tempo usava nos acompanhamentos um bandeira com a Imagem de Nossa Senhora com o
filho Santissimo morto em seus braços e este era o brazão daquela devota Irmandade da Piedade. Seu exercicio era enterrar os mortos, visitar os
encarcerados e acompanhar os que iam padecer pelos seus crimes.'
"Em favor da recíproca relação entre as duas
Irmandades milita a circunstância de ter sido a Misericórdia ao pé do altar da Virgem da Piedade, ao invés de o ser o altar mor do Claustro da Sé.
"Não faltaria mesmo a bandeira com os atributos
que compuseram a de Lisboa - Cristo entre os braços de Virgem Maria - e que na do Rio de Janeiro foi expresso pela reprodução da Descida da Cruz,
de Rubens.
"Neste caso, a Misericórdia portuguesa, através
da Irmandade da Piedade, pelo menos em espírito seria anterior à de Florença, que data de 1240. Teria, assim, propriedade de uma década sobre a casa
florentina. Esta vem de 1240, a de Piedade de 1230, a de Misericórdia de Lisboa de 1498. Aliás, o compromisso da Irmandade portuguesa parece ter
sido em boa parte modelado pelo de Florença.
"Não estão bem esclarecidas as origens da
Misericórdia florentina. Algumas lendas pretendem traçar-lhe as raízes. Uma delas atribui a iniciativa ao encontro do cadáver de uma jovem, atirado
em plena rua da cidade. As mãos hábeis de um pintor regional fixaram e ilustraram a impressionante circunstância. Daí ter-se-ia originado a idéia de
uma organização social destinada a sepultar os mortos.
"Outra versão, menos dramática, foi alicerçar as
origens entre os homens mais humildes da sociedade florentina, em frágil agremiação de rudes carregadores estacionados na Praça de S. João. Ganhavam
a vida transportando para as feiras o produto dos lanifícios que avultavam em Florença na primeira metade do século XIII. Quando lhes escasseava o
serviço ou em dias frios e úmidos, recolhiam-se às lojas que marginavam a praça. Disputavam, praguejando e blasfemando.
"Pietro di Luca Borsi, o mais velho, piedoso e
paciente, propôs que cada blasfêmia se convertesse em multa depositada em cofre adrede preparado. Não se refinaram os costumes. Ao contrário, boa
soma foi amealhada com a multiplicação da penitência. Borsi destinou o patrimônio à construção de uma Companhia dedicada ao recolhimento e
sepultamento dos cadáveres abandonados nas estradas e ao transporte de enfermos para os hospitais.
"Desse pequeno núcleo teria evoluído o imenso
pedestal sobre que assentam as beneméritas Misericórdias dos nossos tempos. Falecendo Pietro di Luca, cuidou a população da cidade em perpetuar a
sua agremiação. Surgiram logo recursos para edificação da sede e oratório.
"Fundada em 1240, a Irmandade foi reconhecida em
1329 pela República Florentina, que lhe deu existência legal e categoria de instituição pública. Até o século XVI, a organização é citada sob as
denominações de Companhia, Compagnia e Societá, Fraternitá della Virgine Maria della Misericórdia, Compagnia della
Misericórdia, e Santa Misericórdia. Foi seu patrono o compassivo S. Tobias do Velho Testamento.
"Em 1490, oito ano antes da fundação da
Misericórdia lisboeta, a Confraria florentina tomou caráter estável e definitivo com a composição dos seus Estatutos ou Capitoli.
"O problema da origem das Misericórdias é
apresentado no preâmbulo do Compromisso da Misericórdia do Porto, redigido em 1646. Três são as origens consideradas: portuguesa, florentina,
chinesa.
"Não quis o historiador escolher definitivamente
nenhuma das hipóteses. Deixou, entretanto, entrever sua preferência em favor de Florença. Se o estímulo veio de fora, diz o autor do referido
proêmio, é mais verossímil que sua imagem fosse tomada em "República vizinha, cristã e política" e não de uma "república bárbara e gentílica,
afastada por tantas mil léguas", e da qual naquela época pouco se conhecia em Portugal.
"Com Florença, ao contrário, era mantido intenso
intercâmbio comercial. Não eram poucos, também, os florentinos que gozavam de altos privilégios em Portugal. A Carta Régia de Afonso III, de 4 de
abril de 1338, concedeu grandes regalias e mercês aos florentinos que fossem residir no reino português. Seu número cresceu rapidamente, juntando-se
aos genoveses, venezianos e outros mercadores, oriundos da península itálica. Estes estrangeiros eram tão numerosos no século XV que os nacionais se
queixaram às cortes. A concorrência, no seu dizer, afetava profundamente a economia da nação.
"Em seu Coup d'oeil, Hauteford conta ter
visto em Madri numerosas associações de caridade. Não encontrou, porém, naquela metrópole, uma instituição como observara em Florença e que tinha o
nome de Confraria da Misericórdia. Destinava-se - conta Hauteford - a transportar doentes para os hospitais e a cuidar dos mortos.
"Narra o viajante que se achava certa vez na
capital da Toscana examinando a estrutura colossal dos sinos da igreja metropolitana. Subitamente, ouviu por três vezes os sinos dobrarem a finados.
Imediatamente, os que caminhavam pararam. Dirigiram seus passos para um edifício situado na praça. Os elegantes que consumiam seu ócio em cafés ou
casas de chá logo se ergueram, tomando o destino daquela porta misteriosa.
"Atento ficou o viajante. Viu, então, que dali
saia um esquife. Transportado por quatro indivíduos. Revestiam-no de amplo burel e de capuz que ocultavam inteiramente a figura. Grande rosário
pendia-lhe da cintura. Outros com o mesmo tarje seguiam em marcha compassada e em profundo recolhimento. Ouvia-se apenas o bater dos sapatos no
lajeado e o ruído das contas dos rosários a se entrechocarem. Soube então que assistia a um cerimonial dos irmãos da Misericórdia.
"O espírito de Tobias tinha presidido ao
estabelecimento da piedosa instituição que lhe disseram provir do começo do século XIV. Homens de todas as classes se reuniram nestas casas onde
desapareciam as diferenças de nível social. Cristovão Rodrigues, em seu Sumario, dedica um capítulo à ordenação dos irmãos da Misericórdia.
"Descreve o cortejo processional. Quinze homens,
o conjunto. Seis conduziam a tumba, seis empunhavam tochas. O porta-bandeira era ladeado pelo irmão da campainha e pelo esmoler que ia recolhendo as
dádivas. Dois irmãos graduados comandavam a fúnebre companhia.
"Nos dias de execução, a Irmandade saía também
com seus irmãos, clérigos e confessores, depois de esgotar todos os recursos em prol da comutação da pena. Era seu privilégio proteger, tocando com
a bandeira, o condenado que, vivo ou morto, caía da forca. No primeiro caso estava satisfeita a justiça; no segundo, podia ser sepultado o cadáver.
Não ficaria balouçando nos ares. Posto aos corvos e aos cães.
"Cabia à Irmandade fornecer a corda, não raro
previamente mergulhada em água forte, para facilitar o humanitário privilégio.
"No Rio de Janeiro certa vez houve conflito. A
bandeira da misericórdia foi crivada de balas pelos esbirros que, à força, se opunham ao cumprimento do sagrado privilégio da confraria.
"Um dos grandes serviços da casa lisboeta era o
da remissão e permuta de cativos. Estava Portugal empenhado na luta contra os mouros, pela conquista de Tânger e de Ceuta. Numerosos eram os
prisioneiros. Tal era o empenho n obra de remissão e permuta que Felipe II, pretendendo a sucessão da coroa portuguesa, engodou a população lisboeta
oferecendo à Misericórdia 120.000 ducados. Destinavam-se ao resgate de cativos, em partes iguais entre fidalgos e homens do povo. Atraía destarte a
simpatia da família portuguesa.
"Tocante era o preceito de promover amizade e
reconciliação. Encontros amistosos eram promovidos na quaresma, época de exaltação de espírito religioso. Saíam provedor e irmãos à procura de
malquerentes. Apelavam para o momento, que era de renuncia e de penitência.
"Socorros médicos, proteção aos presos e órfãos
completavam esta farta messe de benemerências. Interessante era o mister de pedintes ou mãposteiros. E. Muntz, escrevendo em 1886, descreve
seu encontro com esmoler Misericórdias. Ao desembarcar na praça de Pisa, encontrou-se com uma espécie de fantasma. Estava integralmente coberto por
túnica de cetim azul que descia-lhe até os pés. Uma corda grossa cingia-lhe os rins. O rosto oculto por longo capuz da mesma cor e tecido. O contato
com o exterior fazia-se apenas por dois orifícios à altura dos olhos. Assustou-se Munte, diante daquela aparição. Imaginou tratar-se de leproso ou
de criminoso a quem tivesse imposto a curiosa indumentária. Mas a revelação logo se fez. Estendendo uma escudela, o fantasma implorou: 'per
poveri incarcerati'.
"Interessante era o juramento dos irmãos da
Misericórdia:
"'Por
estes Santos Evangelhos, em que ponho as mãos, juro de servir esta Irmandade, conforme o seu compromisso e em particular de acudir a esta casa
de Misericórdia todas as vezes que ouvir a campainha com a insígnia da Irmandade ou for chamado pelo provedor e mesa para servir a Deus e Nossa
Senhora e cumprir as obras da Misericórdia na forma em que por elas me for ordenado, não tendo legítima causa, que segundo Deus e minha consciência
me escuse; e assim juro mais de votar e dizer aquilo que mais convém ao serviço de Deus e bem da Irmandade, em todas as mesas, juntas e eleições,
sem respeito algum de afeição ou paixão contrária, deixando aos outros irmãos votar livremente sem lhes persuadir cousa alguma, e os obrigar a dar
voto por pessoa que lhes nomear para provedor, irmãos da mesa, eleitores e mais cargos desta qualidade; e debaixo do mesmo juramento prometo guardar
o segredo devido em todas as cousa que de mim se tratarem assim em mesa como em junta, eleição e qualquer outro ato que debaixo de segredo se fizer
para serviço de Deus e bem da dita Irmandade'.
"Em traços largos, eis o que havia em Lisboa e
Florença nos primitivos tempos das Misericórdias.
"Com a invasão de Junot e retirada da família
real para o Brasil, entrou em declínio a casa lisboeta. Em 1823 houve planos de reforma e reorganização. Onze anos mais tarde, outra comissão traçou
novos rumos. Finalmente, o decreto de 1851 transformou a Confraria em serviço de assistência pública, com administração de três membros, dos quais o
presidente conservou o título de Provedor.
"Em relação à contribuição de frei Miguel de
Contreiras na fatura da primeira Misericórdia lusitana, são mudos os antigos escritores que compulsamos até Duarte Nunes Liam. Neste último existe
uma referência ao tratar de d. Sancho II na Crônica dos Reis de Portugal.
"Vejamos, em primeiro lugar, o depoimento do
famoso quinhentista Damião de Goes. Nascido em 1502 e falecido em 1574, foi contemporâneo de d. Leonor e d. Manoel. Moço de câmera, assistiu à morte
de d. Manoel e tinha 23 anos quando faleceu a viúva de d. João II. Dedicou ao nosso tema o capítulo XXVI, do volume X, parte quarta, pág. 99) da
crônica d'el-rei d. Manoel. Discorrendo sobre d. Leonor, diz: 'Esta virtuosa e católica rainha
instituiu a Confraria da Misericórdia nestes reinos'. Nem uma palavra sobre instituidores fora
da casa real.
"Existe na Biblioteca Nacional da capital
portuguesa um códice em gótico, sem frontispício e conhecido pela denominação de Estatistica de Lisboa. Admite-se que o precioso manuscrito
tenha sido redigido em 1552. Esclarece o autor que d. Leonor, observando o desamparo dos presos, pobres e necessitados, determinou e ordenou o
compromisso de Misericórdia. Frei Miguel não é mencionado.
"Pedro Maris é também omisso em relação ao frade.
Apresenta d. Manoel como fundador.
"Contreiras não aparece no Sumario de
Cristovão Rodrigues de Oliveira. Oliveira aliás é confuso na sua narrativa. Atribui a fundação ao rei d. Manoel e sua esposa d. Maria. Ora, o
consórcio de d. Manoel com esta sua segunda esposa efetuou-se em 1500, dois anos depois da criação da Misericórdia.
"Frei Luiz de Souza, fazendo a crônica de S.
Domingos, nem uma palavra reservou para o religioso da SS. Trindade, frade como ele. Assevera que as casas de Misericórdia foram invenção de
seculares para exercício da virtude.
"Nenhuma alusão ao trinitário encontra-se nas
narrativas do padre Saude, que citou as Misericórdias na sua descrição de Lisboa de 1584.
"Outro argumento em desfavor de frei Miguel é a
omissão do seu nome nos primitivos Compromissos. D. Manoel e d. Leonor aí aparecem, em capítulos especiais, como merecedores de todas as
homenagens.
"Apenas uma notícia anexa a um Compromisso,
muito posterior, de Coimbra, assinala Contreiras. Reserva porém, para d. Leonor, o título de 'inventora
e principal autora'.
"Há um quadro célebre comemorativo da fundação
das Misericórdias. É de autor desconhecido. Peritos de arte deram-lhe a qualificação que mencionamos. Neste quadro não figura qualquer frade.
Aparecem, porém, d. Manoel, d. Leonor; d. Brites, mãe de ambos; d. Maria, a segunda esposa do rei; damas da corte; o arcebispo de Lisboa, d.
Martinho da Costa; os doze irmãos da mesa; o provedor retendo em suas mãos o livro do Compromisso. Ao centro, imensa taça recolhe o rubro
sangue de Cristo. Erguido na Cruz, ao meio da composição, jorra-lhe um jato do coração. É a fonte da vida. Nas bordas da taça, de pé, vêem-se a
Virgem Maria, fonte da Misericórdia, e S. João Batista, fonte da piedade. Reproduzimos esta tela e seus pormenores em trabalho de sair do prelo.
"Vejamos agora o caso de Duarte Nunes Liam. Eis o
que diz:
"'Nem
se deve ter por menos fruto desta Ordem as obras da Misericórdia que nesta cidade e em todo o reino fazem por Irmandade dela que frei Miguel
Contreiras, frade da mesma Ordem e confessor da rainha d. Leonor, instalou de princípio sendo ele autor e executor dela. O qual tomou por ofício
pedir por sua própria pessoa esmola para remir os que eram cativos, curar os que eram enfermos, soltar os que eram presos, alimentar os pobres,
casar os órfãos, sustentar as viúvas e persuadir el-rei d. Manuel que criasse casas de Misericórdia e lhes apropriasse rendas e desse privilégios.
Porque é a mais célebre Confraria da Caridade'.
O escritor omitiu o nome de d. Leonor,
intimamente ligado ao da fundação. Esta se deu na sua curta regência e consta dos termos dos primitivos Compromissos e depoimentos de todos
os escritores anteriores a Liam. Por outro lado, é impressionante o fato de não se referirem os antigos Compromissos e os antigos escritores à
atuação de frade na Misericórdia, como vemos.
"Outro fato notável: no mais antigo livro da
Misericórdia de Lisboa existiam até os nossos tempos nada conta sobre Miguel de Contreiras. Descobrimos os dois volumes, grande formato, ricamente
encadernados, entre o documentos manuscritos da nossa Biblioteca Nacional. O precioso manuscrito que pertencia à Biblioteca da Ajuda foi trazido por
d. João VI quando se refugiou no Brasil, em 1808.
"Constam os nomes dos subscritores da casa real e
de inúmeros outros que contribuíram para a Misericórdia de Lisboa. Neste documento, aparece como instituidora da Misericórdia apenas a 'Senhora
Rainha D. Leonor'. Como 'aperfeiçoador e
protetor' figura o 'Senhor Rei D. Manoel
de gloriosa memória'.
"O autor previne, na introdução, que empreendeu largas pesquisas durante
dois anos no intuito de reconstituir a vida da instituição após o terremoto de 1755. A obra é da lavra do conde de Val de Reis, nomeado provedor por
d. José 1º. Tem a sua assinatura e o carimbo da Biblioteca Real da Ajuda. Não é significativo o fato de não figurar no livro o nome de Contreiras?
"Por que faz Liam referência citada, quando Damião de Goes, Pedro
Maris e outros escritores anteriores a ele nada revelam neste particular? É que Liam, sendo amigo dos trinitários, como ele confessa, não foi um
estudioso do assunto. Fez apenas uma referência a tratar da história dos reis de Portugal, e mesmo assim, em capítulo não específico. Foi ao tratar
de d. Sancho II. Sem dúvida, ter-se-ia ele inspirado na pretensão dos frades trinitários em reivindicar para a sua confraria a honra da fundação.
Depois, segundo a regra, outros historiadores foram copiando.
"No seu propósito, os trinitários imodestamente requerem um inquérito.
Queriam demonstrar ter sido a Misericórdia obra de iniciativa exclusiva do frade. E pediram que se pintasse na bandeira a sua efígie, que aliás não
está bem definida. Ora aparece como patriarca de longas barbas, ora com o resto completamente glabro. Mas o fato é que foi obtido o alvará de Felipe
III, mandando pintar nas bandeiras da Misericórdia 'um religioso do hábito da Ordem da SS.
Trindade'. Notem que o rei, sendo espanhol, muita facilidade teria em expedir um alvará que
teria por efeito homenagear um patrício seu. Entretanto, não figura, no documento da lavra de el-rei, Contreiras como sendo o Instituidor e sim
apenas 'uma das principais figuras'.
"Notável e parcialíssimo é o fato de não terem os frades sequer mencionado
os nomes de d. Leonor e de d. Manoel. Queriam tudo para si. Para a Ordem a 'mui ilustre
Irmandade da Santa Misericórdia' seria da inteira autoria do 'Reverendíssimo
padre mestre com outros pios varões que para isso ajuntara'.
"D. Manoel, que mandou edificar suntuosíssimo edifício para a Misericórdia,
todo rebuscado em decorativo estilo, que desde logo doou elevadíssima soma para a época, de um conto e quinhentos mil réis, poderia para a Ordem
estar entre os pios varões. D. Leonor não logrou ao menos o título de colaboradora na súplica ao rei.
"É impossível neste momento discutir os autos do inquérito. Asseveramos,
porém, que o lemos na íntegra, sem encontrar razões capazes de justificar o título de Instituidor que quiseram dar a Contreiras. Depuseram
principalmente religiosos e frades da Ordem. Não há afirmação categórica desta qualidade. Declararam, em geral, ter ouvido dizer...
"Os próprios termos da petição são frágeis. Fizeram-na por constar que o
provedor e irmão da Santa Misericórdia haviam decidido, em 1575, pintar na bandeira da Misericórdia um religioso do hábito da Ordem da SS. Trindade.
Uma súplica enviada ao rei espanhol menciona constar que teria resolvido em 1575 tal homenagem.
"Ora, a súplica é de 1637. Redigida quase 140 anos depois da fundação da
Misericórdia, refere-se a um provável ato que teria ocorrido há mais de sessenta anos. E apesar de ter o rei ordenado a pintura da imagem na
bandeira, nenhuma conhecemos em que se credencie tal figura, a não ser que o consideremos entre os diversos personagens abrigados sob o manto
protetor de N. S. da Misericórdia.
"E no alvará ficavam intimados todos os desembargadores, corregedores e
ouvidores das comarcas dos reinos e mais juízes de justiças, oficiais e outras a cumprirem o que nele se continha.
"Relatam que a Mesa, ao tratar do assunto em 1575,nada havia resolvido
sobre a pintura da bandeira. Então, em 1576, teria havido a decisão do seguinte teor:
"'De comum acordo e
unânime consentimento determinamos que no pintar das bandeiras esteja de uma parte a imagem de Cristo Nosso Senhor e da outra a Santíssima Virgem
Mãe da Misericórdia. À sua direita um papa, um cardeal e um bispo, como cabeças da igreja militante e um religioso da Santíssima Trindade, velho e
macilento, de joelhos e mãos levantadas, com estas letras F.M.I., qu querem dizer Frei Miguel Instituidor, e da parte esquerda da mesma Senhora um
rei e uma rainha em memória do inditoso rei d. Manoel e a rainha d. Leonor, como primeiros irmãos desta irmandade, mais dois velhos graves e
devotos, companheiros do venerável Instituidor e ao pés da Senhora alguma figura de miseráveis, que representam os pobres'.
"Não há prova segura em favor deste documento que relega d. Leonor e d. Manoel para o posto de simples 'primeiros
irmãos' da Confraria.
"A semente lançada por d. Leonor deu imediatamente farta colheita. Por
todas as províncias portuguesas e suas colônias foram se multiplicando as Misericórdias.
"Braz Cubas, voltando de Portugal após a sua primeira visita ao Brasil,
lembrou-se de criar instituição semelhante neste recanto da América. E no sopé do outeirinho de Santa Catarina lançou os alicerces que assinalam não
só o estabelecimento do primeiro hospital do Brasil e talvez da América do Sul, como também o da organização da primeira Irmandade brasileira. E
como, em nosso parecer, este foi o marco inicial da cidade de Santos, foi também, por este ato, iniciado o núcleo da próspera e adiantada cidade do
litoral paulista. Três grandes iniciativas em uma só realização.
"E Santos cresceu em torno desta grande instituição filantrópica, como S.
Paulo o fez em derredor do Colégio erguido pelas mãos carinhosas de Manoel da Nóbrega.
"Pouco importa que os terrenos onde Braz Cubas cravou esta primeira estaca
tivessem pertencido a outros, como pertenceram a Domingos Pires e Pascoal Fernandes. Também foram dos índios que ali viveram antes da colonização
vicentina. Não interessa saber que ali já existira pequeno povoado de colonizadores portugueses.
"Para o caso, importa conhecer que Braz Cubas reuniu em sua personalidade e
em seus atos uma série de atributos que o fazem merecer, indubitavelmente, o título de fundador da cidade.
"Foi ele um dos primeiros povoadores do Brasil, aqui chegado com Martim
Afonso de Sousa; tornou-se um dos principais moradores das terras onde assenta a cidade; possuidor de boa parte da gleba, dela expeliu o gentio, com
tropa que assalariou à sua custa; tomou a iniciativa de transferência do porto após o maremoto de S. Vicente; em terras suas plantou o primeiro
hospital brasileiro; nelas doou terrenos para os conventos dos jesuítas, do Carmo e de São Bento; ali erigiu a igreja que depois serviu de matriz;
foi o primeiro alcaide-mor do lugar; ocupou os cargos de provedor e contador da Fazenda Real; mais tarde, de capitão-mor e ouvidor; concedeu-lhe o
foro de Vila; levantou-lhe o primeiro pelourinho, defendeu-a dos galeões de Treton; e ao longo do canal criou a sua indústria de curtume, para o que
canalizou as águas de Itororó, através da antiga Rua do Cano, hoje Pedro II.
"Amanhando a terra, fomentando a indústria, não limitou seus
empreendimentos em encher as arcas com o produto do seu trabalho. Ao contrário, demonstrou-se dotado de grande espírito público. Homem mais útil ao
Brasil do que Martim Afonso de Sousa - que daqui logo se retirou quando S. Vicente apenas começava a alvorecer.
"Felix Ferreira, fazendo o histórico da Santa Casa do Rio de Janeiro, por
autorização e conta da mesma, esforçou-se em demonstrar que cabia àquela instituição a glória de ter estabelecido o primeiro hospital brasileiro.
"Na ânsia de demonstrar a sua tese, baseada na má interpretação de
documentos, ousa o autor mencionado marcar a data de 1545 para a fundação do hospital do Rio de Janeiro, isto é, para uma época em que a cidade
ainda não existia.
"Abstenho-me de discorrer sobre este tema já tratado em outro lugar. Basta
adiantar que não há razão para modificar a data estabelecida para a fundação da Misericórdia do Rio de Janeiro. Ela vem de 1582. Raízes mais antigas
possuem outras casas, além da de Santos, cujo quarto centenário agora festejamos. A da Bahia é coeva dos tempos de Tomé de Souza. A de Olinda
proclama a sua origem a partir de 1560. A de Vitória agita-se em controvérsia entre 1545 e 1595. A de S. Paulo é, provavelmente, posterior à do Rio
de Janeiro. A mais antiga menção que encontramos é a do Testamento de Isabel Fernandes, deixando, em 1599, a quantia de um mil réis, para a
Misericórdia paulista.
"Sobre a localização da primitiva sede da Misericórdia de Santos, assim
como da sua segunda instalação, encontramos preciosos documentos no arquivo do Convento do Carmo de Santos, graças ao precioso auxílio de frei
Timoteo van den Broek, um grande conhecedor da história desta terra abençoada. Deles daremos conta em trabalho já anunciado.
"Procuramos, com auxílio dessas informações, estabelecer a localização tão
exata quanto possível da primeira e da segunda sede junto ao outeirinho e no Campo da Misericórdia, hoje Praça Mauá.
"A atual terceira sede do Monte Serrat e a quarta no Jabaquara ficarão
indelevelmente assinaladas, com precisão, pela copiosa documentação fotográfica dos nossos tempos.
"As outras instalações foram de caráter provisório, em um seção do antigo
prédio dos jesuítas e no Campo da Chácara, hoje travessa dos Andradas.
"Não entraremos entretanto agora na história particularizada da Santa Casa
de Santos. Muito rememorada já foi nestes festejos. Falaremos em outro lugar, oferecendo modesta contribuição, fruto de nossas pesquisas.
"Preferimos, no momento, versar o tema Misericórdias, em sua generalidade.
Desejamos somente acentuar um ponto que, em nosso trabalho, não é relatado. É resultante de verificação mais recente, de hoje.
"Trata-se de uma escritura encontrada no Arquivo do Convento do Carmo,
dirigido pelo eminente frei Timoteo van den Broek. É de 1545. Composição de divas entre Braz Cubas e Luis de Goes. Nesse documento aparece a
designação: 'Povoação de Santos'.
"Duas conclusões podemos tirar. A primeira é que a povoação primitivamente
chamou-se Santos e não porto Santos, a não ser que indiferentemente empregassem uma ou outra expressão. A segunda é que já havia hospital em 1545. O
nome de Santos provém da invocação de Todos os Santos para o hospital de Braz Cubas, à semelhança de outro de igual nome existente em Lisboa.
"Frei Gaspar da Madre de Deus cita uma escritura de 1547, na qual é
mencionado o hospital. Não conseguimos encontrá-la. Temos, porém, agora, outra dois anos mais antiga, na qual se patenteia a existência anterior do
Hospital, certamente criado simultaneamente com a Irmandade em 1543.
"Frei Gaspar da Madre de Deus cita uma escritura, de 1547. O fato é
importante por ser mais um argumento contra a afirmativa de Felix Ferreira, a que já aludimos.
"É admirável a atuação das Misericórdias, que - transplantadas de Portugal
para o Brasil - aqui tomaram grande impulso, difundindo-se por todos os recantos do nosso país. Dando assistência aos necessitados, têm, por outro
lado, trazido imensa contribuição para a educação médica brasileira. Servindo todas nossas faculdades médicas, têm sido, ainda, escolas de
aperfeiçoamento. Poder-se-ia mesmo dizer que as Misericórdias têm sido no Brasil as escolas práticas de Medicina.
"É extraordinário que, idênticas ou semelhantes na sua organização e nos
seus altruísticos objetivos, sejam todas independentes entre si. Função sistemática que se observa nas Beneficências, outro fruto da inigualável
bondade da gente portuguesa.
"Esta multiplicidade e independência são as alavancas do seu prestígio e de
sua vitalidade. Útil, porém, seria mais estreito intercâmbio.
"E assim ousamos, neste momento, lembrar a idéia de um Congresso das
Misericórdias brasileiras, a exemplo do que fizeram as portuguesas, por iniciativa de Elas, em 1924.
"Melhores auspícios não poderia ter o programa do que este em que se
comemora a quarta centúria de Santos.
"Santos e São Paulo nasceram sob a inspiração de forças espirituais.
Invisíveis mas insuperáveis, são, ao final, as dominantes e vitoriosas. Por isso, as duas cidades tiveram rápida ascensão, projetando-se para o alto
em vertical que é o espelho do vertiginoso progresso do rincão paulista.
"No planalto, esperançosos e avisados jesuítas edificaram o colégio sob o
patrocínio de Saulo, o convertido de Damasco, douto apóstolo dos gentios. Ao pé do mar, colonizador vigoroso e prudente, ergueu a Casa de Deus,
tecendo-lhe a cúpula com o manto da rainha das rainhas-mãe da Misericórdia. Morreu. Mas a sua luz, como das estrelas que se apagam, nos chega
ainda e nos chegará por milênios.
"Que se conservem as bênçãos do Senhor sobre esta casa, alerta vigia do
mar, orgulho de Santos, admiração de São Paulo, e monumento nacional, sem dúvida, como vanguardeira da hospitalização e da caridade em toda a imensa
extensão do continente sul-americano".
Palavras do dr. Guilherme Gonçalves
Pediu a palavra a seguir o dr. Guilherme Gonçalves, para, em nome do corpo
clínico da Santa Casa, dizer o seguinte:
"Eu não admiro v.s.,
sr. professor Clementino Fraga. Porque também não admiro o sol; abençôo-o, louvando-o, pela luz que me alumia e o calor que me afaga e faz viver.
"O admirar não requer esse complexo ascensional de sentimentos de que é
feita a minha exaltação por v.s.: fervor, entusiasmo e atração que vêm da distância, desde quando, pela primeira vez, os meus olhos regalados se
pousaram num dos seus escritos - onde o flóreo da linguagem não tirava o brilho da exposição - e que estruturavam numa hora amarga para v.s. em
respeitoso respeito.
"Nessa hora aguda em que muitos se flexibilizavam nas trêmulas atitudes de
fuga à responsabilidade e na qual v.s. maiormente se engrandeceu, por uma honesta coerência que endossava perante demagogia acusadora, vida pública
que nada tinha a temer.
"Daí o meu desejo, o meu mais ardente desejo, de um dia lhe apertar a mão,
para sentir contato da mão honrada de um grande brasileiro.
"Sr. prof. Clementino Fraga - receba v.s. as minhas pobres palavras como
alta homenagem de agradecimento de todo o corpo clínico desta Santa Casa; homenagem ao saber, à cultura, ao poder de sedução do emérito continuador
de Osvaldo Cruz.
"Sr. provedor e srs. mesários, ainda em nome do corpo clínico, sou a
elogiar vv. ss. por tudo que fizeram para o esplendor desta Semana Médico-Social".
Palavras do prof. Clementino Fraga encerrando a
Semana Médico-Social
O professor Clementino Fraga, encerrando a Semana Médico-Social, falou
sobre o brilhantismo registrado pela mesma, ressaltando o valor dos trabalhos nela desenvolvidos e felicitando, por esse sucesso, a direção da
Irmandade da Santa Casa de Santos, à qual manifestou o seu mais profundo agradecimento. |