Reprodução parcial da matéria original
VIDA SOCIAL
Homenagem à rotina
Bem ruinzinho, aquele dia de ontem, sob a densa "bruéga"
a tombar das alturas, como finíssimos esguichos duma esponja gigantesca apertada por um braço ciclópico...
Fui levar algumas cartas ao correio, mensagens de amizade a pessoas distantes. Isto
que outrora constituía um prazer sempre renovado, hoje representa um verdadeiro martírio. Porque escrever não custa. Franquear a correspondência - é
que são "elas".
Quis entrar na repartição, para aquele benemérito mister. Que esperança! Uma fila
interminável, comprida como uma jibóia gigantesca, principiava na soleira da porta e acabava no único e estreito "guichet", onde um funcionário
solícito se multiplicava, para atender a todo aquele povaréu...
Sob a chuva, equilibrando-me na ponta dos pés, empurrado por outros pretendentes a
entrar na fila, pacientei como um inglês fleumático. Ao lado, um cavalheiro, um desconhecido que sempre aparece nessas ocasiões, para dar palpite e
taramelar enquanto o carro segue, observou-me, com tremuras indignadas na voz espessa:
- Maldita invenção, essa de se precisar apor um selo numa carta que se deseja mandar
para longe... Perde-se um tempo enorme e valioso, para o simples dever de adquirir esses retângulos coloridos...
- Que se há de fazer, amigo? - repliquei displicente.
- Não há outro remédio... Sem selos é que as cartas não podem ser expedidas...
- Como não? - berrou o outro com ênfase -
Tudo progride, se aperfeiçoa e melhora. Tudo se mecaniza. Apenas o correio continua a recorrer a esse processo, pouco asseado,
de se pregar um papelinho, com saliva, a fim de provar que se pagou o porte da correspondência. Pois não existem máquinas admiráveis para esse
ofício? Não seria mais rápido, mais prático, o uso desse moderno sistema, em lugar dos quadradinhos que somente servem para manter a mania dos
filatelistas?
- Meu caro patrício - concordei avançando dois passos, na
fila sem fim - a sua idéia é boa. A sua crítica é justa. Mas substituir o selo pela máquina de franquear seria combater
a rotina. E o correio é uma instituição eminentemente rotineira.
O meu interlocutor encarou-me com desconfiança. Mas continuei dando mais um passo na
direção do "guichet":
- Não me espantaria se esses funcionários gentis, entre os quais se deparam simpáticas
e jovens criaturas do sexo frágil, ainda usassem cabelos empoados e escrevessem com pena de pato. Este ambiente assim o sugere. Pois num tempo em
que o padeiro, o leiteiro, o doceiro, entregam a sua mercadoria, nos lares, com veículos velozes, o correio ainda se encarna dentro da humilde
silhueta do carteiro secular, que anda a pé, batendo de porta em porta, como na época de D. João Charuto...
Depois disto - para que blaterar?... - A fila acabava. Aproximei-me
do "guichet" e perdi de vista o meu companheiro fortuito.
Álvaro
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