Imagem: capa da publicação original
A capela de Santo Antonio do Embaré
Luiz de Moraes Carvalho
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Ao sair da missa
r ouvir a missa das dez horas, aos domingos na capela do Embaré, é um dever religioso que as
famílias distintas de Santos e S. Paulo que moram pelas avenidas próximas cumprem com prazer, enchendo-a até a porta. Tem havido até alguns domingos em que as retardatárias já não encontram lugar, e é fora, na alameda, que escutam a cerimônia
religiosa.
Isto demonstra que o culto ali praticado goza da maior consideração, propagando a fé e a crença, sob a divisa austera do silêncio e respeito, que se vê afixada nos umbrais da entrada.
A fé não se aprende nem se ensina. Nasce na alma humana com toda a seiva dos sentimentos generosos, cresce e se desenvolve com a educação e a ilustração, vindo trazer ao espírito
abrasado pelas lutas do pensamento essa sombra fagueira que as árvores frondosas dão ao viandante extenuado.
Por toda a parte onde o homem passa, desde os tempos remotos até hoje, desde as tribos selvagens aos centros da civilização luminosa, encontra-se sempre, sob formas toscas ou com os
caprichos mais sutis da arte e do talento, inúmeros padrões da fé.
Reconhece-se assim que ela serve de bordão e de alicerce, de consolação e d'estímulo.
A fé religiosa espalhando a doutrina do Cristianismo é, sem dúvida, a mais bela que a humanidade possui.
Na capela do Embaré, a missa das dez, cheia de fé no seu fundo e no seu princípio, não se furta porém ao aspecto interessante de um quadro movimentado, quando termina.
Entre uma parte da população laboriosa que por ali vive passa uma multidão de famílias conhecidas, pessoas de relevo no nosso meio e que, satisfeito o preceito religioso, não se proíbem
os comentários alegres de festas e acontecimentos a que assistiram e presenciaram nas vésperas.
Nesse desfilar de primaveras buliçosas que as moças representam, entre a gravidade de pais e avós, há o requinte da vida moderna com o luxo indispensável das sedas, dos perfumes, dos
olhares apaixonados e dos rostos formosos.
Nos curtos diálogos que se trocam, nos beijos das despedidas, nos grupos que se formam e se separam, ouvem-se risinhos álacres, motivos zombeteiros que estalam como notas vibrantes de um
clarim.
A pureza do ar em frente da praia, e a pureza desses corações que, à saída da missa, vêm ainda ungidos da bênção sagrada, dá às expressões que se escutam uma graça ingênua que cativa.
O sentimento profano, o mundo real abrindo-se com todo o esplendor da civilização, após as graças espirituais e a elevação a Deus, é um contraste frisante de beleza e harmonia. Ligam-se,
e combinam-se, como a espuma da vaga que se encrespa e se desfaz, ficando a água eterna do mar, calma e serena, dando passagem aos navegantes.
As impressões e as críticas ligeiras que uns lábios carminados podem desferir, como alfinetadas sutis, são a espuma da onda, que passa, desaparece, enquanto o coração generoso e cheio de
carinhos continua a se manifestar com piedade e afeto.
Uma frase que provoca o riso, um olhar que desperta uma frase, são as notas da vida que freme e ruge em ímpetos de amor e paixão.
Todos estes movimentos tão humanos e sinceros na sua estratégia irregular, são, afinal, sem conseqüência ofensiva, porque têm a desculpá-los, com um bendito manto protetor, a satisfação
do dever cumprido, o santo sacrifício da missa que se ouviu.
Esse revoar de plumas e de penachos, de cores variegadas dos tecidos, de ironias cravejadas de mocidade, não aparecem, não palpitam no santuário da capela do Embaré durante essa missa
das dez, em que tudo se funde e confunde na homenagem à Divindade.
Fechadas as portas do templo, o cunho da elegância alteia o seu formato, e é então a vida mundana que surge com todas as vibrações do seu caráter.
Foto não legendada, publicada na obra original
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