Ewald e o diário sobre a Revolução de
1932
Foto: Paulo Freitas, publicada com a matéria
HISTÓRIA
Heróis em defesa da Constituição
Dois veteranos lembram que a batalha, apesar de durar menos tempo que a 2ª
Guerra Mundial, matou mais pessoas
Sandro Thadeu
Da Redação
"O ferido era muito pesado e nós estávamos cansadíssimos, pois
havia quatro dias que não dormíamos direito e todos os dias tínhamos de subir e descer morros". Essa é a descrição do vicentino Otto Gottelieb Ewald,
momentos antes do amigo Ivampa Lisboa morrer em seus braços, após levar um tiro na testa durante a Revolução Constitucionalista de 1932.
O trecho acima é um dos relatos do diário feito por este senhor de 99 anos durante o maior
conflito armado do Século 20 no Brasil. Após anos de esquecimento, o documento, uma verdadeira relíquia da história paulista, foi reencontrado pela
esposa Marlene no início do ano, quando procurava documentos para oficializar a união.
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Feriado de hoje marca a luta travada pela
população de São Paulo para proteger os direitos dos cidadãos e contra a ditadura de Vargas |
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Há 77 anos, Ewald trabalhava na Companhia Prado Chaves e decidiu, no dia 21 de julho de 1932, se
alistar como voluntário para ajudar os paulistas na luta contra as tropas federais. "Tive a idéia de começar a anotar tudo que acontecia e fazer
esse diário. APesar disso, lembro de muita coisa que aconteceu. Não sou gagá, não".
Este herói vicentino participou de conflitos em vários municípios do Vale do Paraíba, como Areias,
Lorena e Queluz. "As dificuldades eram muitas. Várias vezes ficamos sem munição, tive de correr muito para fugir das balas dos inimigos e vi muitos
morrerem, como o Ivampa Lisboa", recorda o veterano de guerra.
Para piorar ainda mais a situação, Ewald lembra que era comum as pessoas desertarem - chamadas
ironicamente de "pátria amada" -, o que deixava o pelotão vulnerável aos ataques inimigos, conforme escrito em seu diário: "Isso era muito grave.
Éramos 12 homens para retomar a posição abandonada por 40".
3 MIL |
homens da região participaram do movimento.
Somente seis estão vivos |
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Apesar dos momentos delicados, o ex-funcionário guarda na memória momentos de descontração. Um
deles foi quando o cozinheiro do grupo caiu na vala e todos começaram a brincar. Furioso, o rapaz se recusou a preparar o alimento como forma de
vingança.
A patrulha na Praia do Perequê, em Guarujá, é outro episódio engraçado de sua trajetória.
"Estávamos ali para evitar que os soldados gaúchos desembarcassem. Então, à noite, escutamos um barulho vindo do mato. De prontidão para atirar,
para a nossa surpresa sai uma vaca dali", recorda Ewald.
INCRÉDULO |
"Então, São Paulo perdeu e todo o nosso
sacrifício e as necessidades que passamos? Tudo foi em vão" |
trecho do diário de Otto Ewald
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Sacrifício - Outro herói do ideal bandeirante é José de Carvalho, de 90 anos. No período da
luta, ainda era um adolescente. No entanto, isso não o impediu de ajudar na organização das pessoas que vinham se alistar na Escola Barnabé, no
Centro, para incorporar o batalhão que iria para o interior e a Capital.
Uma diversão para os jovens e aos escoteiros da época era o recolhimento de latas para serem
enviadas ao parque industrial, na Capital, para a fabricação de material bélico. "Vínhamos correndo e andávamos por toda a cidade para conseguir
pedaços de metal, que eram deixados na Praça Mauá. Um Ford Bigode vinha buscá-los para levá-los à ferrovia Santos-Jundiaí".
A falta de trigo na Cidade está até hoje em seus pensamentos. O produto vinha pelo Porto, que não
estava em operação por conta da revolução. "As famílias compravam macarrão para moê-lo para fazer o pão", recorda.
Ewald escreveu um diário durante a
batalha e só agora o encontrou
Foto: Paulo Freitas, publicada com a matéria
Revolta - "Um armistício? Mas, como assim? Então, São Paulo perdeu e todo o nosso esforço,
o nosso sacrifício e as necessidades que passamos? Tudo isso foi em vão", perguntava a si mesmo Ewald no dia anterior ao fim da revolução, conforme
registrado no diário.
O desabafo do vicentino, após superar inúmeras dificuldades, é compreensível. Entretanto, o
sentimento de hoje é que toda a superação de homens como Carvalho e Ewald valeu a pena.
José de Carvalho ajudou no alistamento de
pessoas na Escola Barnabé
Foto: Luiz Fernando Menezes, publicada com a
matéria
Objetivo da luta é atingido em 34
Embora a Revolução Constitucionalista de 1932 tenha sido divulgada pelo presidente Getúlio Vargas
como um movimento separatista, a iniciativa, na verdade, foi a resposta do Estado em defesa da democracia, contra a ditadura e contra a revogação da
Constituição Federal.
Segundo o professor e mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Ney Paes
Loureiro Malvasio, o conflito registrou 934 mortes, sendo 630 do lado bandeirante, em quase três meses.
"É um número alto de vítimas. O Brasil lutou quase um ano na Itália, na 2ª Guerra Mundial, perdeu
440 homens. Isso mostra que o movimento foi sangrento", diz ele, que deu palestra sobre o tema no Instituto Histórico e Geográfico de Santos,
segunda-feira.
TEMPO |
87 dias
foi a duração do confronto armado entre as forças
paulistas e do Governo Federal |
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Conforme o docente, 220 mil pessoas se alistaram para participar dos confrontos armados, mas
somente 66 mil foram ao combate. O número de soldados poderia ter sido maior, caso não houvesse a desistência de outros estados.
"Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Amazonas e Pará declararam apoio à Revolução, mas São Paulo
ficou só. Houve pequenos focos de resistência na parte Sul do Mato Grosso, em Belém (PA), Manaus (AM) e no Rio de Janeiro, fato esse desconhecido
por muitos", diz.
Apesar da derrota militar, Malvasio explica que o Estado mostrou a força ao adaptar rapidamente as
fábricas para produção bélica e o objetivo foi alcançado em 1934: a promulgação da nova Carta Magna.
"O voluntariado foi imenso em todo o
Estado. Os santistas tiveram uma atuação de destaque e combateram em todos os frontes" - NEY PAES LOUREIRO MALVASIO, professor de História
Foto publicada com a matéria |