TERCEIRA PARTE - PRODUÇÕES INTELECTUAIS DE JOSÉ BONIFÁCIO
Capítulo III - Trabalhos políticos
[...]
Representação
à Assembléia Geral Constituinte e
Legislativa do Império do Brasil
Sobre a escravatura
Fac-simile do frontispício da 1ª edição
Imagem publicada na página 445 do volume III
de Os Andradas
ADVERTÊNCIA
Esta representação estava para ser
apresentada à Assembléia geral constituinte e legislativa do império do Brasil, quando por motivos, cuja relação pertence a outro lugar, ela foi
dissolvida e seu autor, entre outros deputados, preso e deportado [Em 12 de novembro de 1825].
Existia porém uma cópia em mão de quem havia sido confiada a mesma representação: é desta cópia que fazemos a presente publicação sem que nenhuma
outra razão nos induza a este fim senão o amor da Pátria, que acende em nosso peito um lume santo.
A necessidade de abolir o comércio de
escravatura, e de emancipar gradualmente os atuais cativos, é tão imperiosa, que julgamos não haver coração brasileiro tão perverso, ou tão
ignorante, que a negue ou desconheça. Isto suposto, qualquer que seja a sorte futura do Brasil, ele não pode progredir e civilizar-se sem cortar,
quanto antes, pela raiz este cancro mortal, que lhe rói e consome as últimas potências da vida, e que acabará por lhe dar morte desastrosa.
Convencidos pois desta verdade é que, sem
consultarmos mais que o desejo que temos de ver a nossa Pátria livre dos males que a dilacerarão, damos à luz este Opúsculo, sentindo não nos ser
possível conferir com seu autor sobre alguma alteração, que hoje lhe agradasse fazer.
Entretanto, como ele é escrito com uma
eloqüência varonil, e concebido num plano tal de conhecimentos e experiência, não vacilamos em dá-lo assim como o possuímos, sem buscar
recomendá-lo, e por isso que ele leva consigo o tipo da sabedoria, e a expressão do patriotismo. Por último nos julgaremos bem pagos se esta
publicação fundir algum proveito ao Brasil; e estamos igualmente certos que seu autor, que sempre se desvelou pela felicidade de sua Pátria, e de
cujos benefícios os seus se cansarão, qual outro Aristides, ficará contente.
A.D.
Paris, 4 de outubro, 1825.
Fac-simile da Advertência de Vasconcellos
de Drumond, à 1ª edição da Representação de José Bonifácio sobre a abolição da escravatura
Imagem publicada nas páginas 447 e 448 do
volume III de Os Andradas
Chegada a época feliz da regeneração política
da Nação Brasileira, e devendo todo o cidadão honrado e instruído concorrer para tão grande obra, também eu me lisonjeio que poderei levar ante a
Assembléia Geral Constituinte e Legislativa algumas idéias, que o estudo e a experiência têm em mim excitado e desenvolvido.
Como cidadão livre e deputado da Nação, dois objetivos me
parecem ser, fora a Constituição, de maior interesse para a prosperidade futura deste Império.
O 1º é um novo regulamento par promover a civilização geral
dos índios no Brasil, que farão com o andar do tempo inúteis os escravos; cujo esboço já comuniquei a esta Assembléia. 2º - Uma nova Lei sobre o
Comércio da escravatura, e tratamento dos miseráveis cativos. Este assunto faz o objeto da atual representação. Nela me proponho mostrar a
necessidade de abolir o tráfico da escravatura, de melhorar a sorte dos atuais cativos, e de promover a sua progressiva emancipação.
Quando verdadeiros cristãos e filantropos levantaram a voz
pela primeira vez em Inglaterra contra o tráfico de escravos africanos, houve muita gente interesseira ou preocupada, que gritou ser impossível ou
impolítica semelhante abolição porque as colônias britânicas não podiam escusar um tal comércio sem uma total destruição; todavia, passou o Bill
(N.E.: ato governamental, em inglês), e
não se arruinaram as colônias. Hoje em dia, que Wilberforces e Buxtons trovejam de novo no Parlamento a favor da emancipação progressiva dos
escravos, agitam-se outra vez os inimigos da humanidade como outrora; mas, espero da justiça e generosidade do povo inglês, que se conseguirá a
emancipação, como já se conseguiu a abolição de tão infame tráfico. E porque os brasileiros somente continuarão a ser surdos aos gritos da razão, e
da religião cristã, e direi mais, da honra e brio nacional? Pois somos a única nação de sangue europeu que ainda comercia clara e publicamente em
escravos africanos.
Eu também sou cristão e filantropo; e Deus me anima para
ousar levantar a minha fraca voz no meio desta augusta Assembléia a favor da causa da justiça, e ainda da sã Política, causa a mais nobre e santa
que pode animar corações generosos e humanos.
Legisladores, não temais os urros do sórdido interesse:
cumpre progredir sem pavor na carreira da justiça e da regeneração política; mas todavia cumpre que sejamos precavidos e prudentes. Se o antigo
Despotismo foi insensível a tudo, assim lhe convinha ser por utilidade própria: queria que fossemos um povo mesclado e heterogêneo, sem
nacionalidade, e sem irmandade, para melhor nos escravizar. Graças aos Céus, e à nossa posição geográfica, já somos um povo livre e independente.
Mas, como poderá haver uma Constituição liberal e duradoura
em um país continuamente habitado por uma multidão imensa de escravos brutais e inimigos? Comecemos pois desde já esta grande obra pela expiação de
nossos crimes e pecados velhos. Sim, não se trata somente de sermos justos, devemos também ser penitentes; devemos mostrar à face de Deus e dos
outros homens, que nos arrependemos de tudo o que nesta parte temos obrado há séculos contra a justiça e contra a religião, que nos bradam acordes
que não façamos aos outros o que queremos que não nos façam a nós. É preciso pois que cessem de uma vez os roubos, incêndios e guerras que
fomentamos entre os selvagens d'África. É preciso que não venham mais a nossos portos milhares e milhares de negros, que morriam abafados no porão
de nossos navios, mais apinhados que fardos de fazenda; é preciso que cessem de uma vez todas essas mortes e martírios sem conta, com que
flagelávamos e flagelamos ainda esses desgraçados em nosso próprio território.
É tempo, pois, e mais que tempo, que acabemos com um tráfico
tão bárbaro e carniceiro; é tempo também que vamos acabando gradualmente até os últimos vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a
formar em poucas gerações uma nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes.
É da maior necessidade ir acabando tanta heterogeneidade
física e civil; cuidemos desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, e em amalgamar tantos metais diversos, para
que saia um Todo homogêneo e compacto, que se não esfarele ao pequeno toque de qualquer nova convulsão política. Mas que ciência química e
que dexteridade (N.E.: o mesmo que destreza)
não são precisas aos operadores de tão grande e difícil manipulação? Sejamos pois sábios e prudentes, porém constantes sempre.
Com efeito, senhores, nação nenhuma talvez pecou mais contra
a humanidade do que a portuguesa de que fazíamos outrora parte. Andou sempre devastando não só as terras d'África e d'Ásia, como disse Camões, mas
igualmente as do nosso país. Foram os portugueses os primeiros que, desde o tempo do infante d. Henrique, fizeram um ramo de comércio legal de prear
homens livres, e vendê-los como escravos nos mercados europeus e americanos. Ainda hoje perto de quarenta mil criaturas humanas são anualmente
arrancadas d'África, privadas de seus lares, de seus pais, filhos e irmãos, transportadas às nossas regiões, sem a menor esperança de respirarem
outra vez os pátrios ares, e destinadas a trabalhar toda a vida debaixo do açoite cruel de seus senhores, elas, seus filhos e filhos de seus filhos
para todo o sempre!
Se os negros são homens como nós, e não formam uma espécie
de brutos animais, se sentem a pensão como nós, que quadro de dor e de miséria não apresentam eles à imaginação de qualquer homem sensível e
cristão? Se os gemidos de um bruto nos condoem, é impossível que deixemos de sentir também certa dor simpática com as desgraças e misérias dos
escravos; mas tal é o efeito do costume, e a voz da cobiça, que vêm homens correr lágrimas de outros homens, sem que estas lhes espremam dos olhos
uma só gota de compaixão e de ternura.
Mas a cobiça não sente nem discorre como a razão e a
humanidade. Para lavar-se pois das acusações que merecia lançou sempre mão, e ainda agora lança, de mil motivos capciosos, com que pretende fazer a
sua apologia: diz que é um ato de caridade trazer escravos d'África, porque assim escapam esses desgraçados de serem vítimas de despóticos régulos;
diz igualmente que, se não viessem esses escravos, ficariam privados da luz do Evangelho, que todo cristão deve promover e espalhar; diz que esses
infelizes mudam de um clima e país ardente e horrível para outro doce, fértil e ameno; diz por fim que devendo os criminosos e prisioneiros de
guerra serem mortos imediatamente pelos seus bárbaros costumes, é um favor, que se lhes faz, comprá-los, para lhes conservar a vida, ainda que seja
em cativeiro.
Homens perversos e insensatos! Todas essas razões apontadas
valeriam alguma coisa, se vós fosseis buscar negros à África para lhes dar liberdade no Brasil, e estabelecê-los como colonos; mas perpetuar a
escravidão, fazer esses desgraçados mais infelizes do que seriam se alguns fossem mortos pela espada da injustiça, e até dar azos certos par que se
perpetuem tais horrores, é de certo um atentado manifesto contra as leis eternas da justiça e da religião.
E por quê continuarão e continuam a ser escravos os filhos
desses africanos: Cometeram eles crimes? Foram apanhados em guerra? Mudaram de clima mau para outro melhor? Saíram das trevas do paganismo para a
luz do Evangelho? Não, por certo, e todavia seus filhos, e filhos desses filhos, devem, segundo vós, ser desgraçados para todo o sempre.
Fala pois contra vós a justiça e a religião, e só vós podeis
escorar no bárbaro direito público das antigas nações, e principalmente na farragem das chamadas leis romanas: com efeito, os apologistas da
escravidão escudam-se com os gregos e romanos, sem advertirem que entre os gregos e romanos não estavam ainda bem desenvolvidos e demonstrados os
princípios eternos do Direito Natural, e os divinos preceitos da religião; e todavia, como os escravos d'então eram da mesma cor e origem dos
senhores, e igualmente tinham a mesma, ou quase igual civilização que a de seus amos, sua indústria, bom comportamento e talentos os habilitavam
facilmente a merecer o amor de seus senhores, e a consideração dos outros homens; o que de nenhum modo pode acontecer em regra aos selvagens
africanos.
Se ao menos os senhores de negros no Brasil tratassem esses
miseráveis com mais humanidade, eu certamente não escusaria, mas ao menos me condoeria da sua cegueira e injustiça; porém o habitante livre do
Brasil, e mormente o europeu, é não só, pela maior parte, surdo às vozes da justiça e aos sentimentos do Evangelho, mas até é cego a seus próprios
interesses pecuniários, e à felicidade doméstica da família.
Com efeito, imensos cabedais saem anualmente deste Império
para a África; e imensos cabedais se amortizam dentro deste vasto país, pela compra de escravos, que morrem, adoecem, e se inutilizam, e demais
pouco trabalham. QUe luxo inútil de escravatura também não apresentam nossas vilas e cidades, que sem ele poderiam limitar-se a poucos e necessários
criados? Que educação podem ter as famílias que se servem destes entes infelizes, sem honra nem religião? de escravas, que se prostituem ao primeiro
que as procura? Tudo porém se compensa nesta vida; nós tiranizamos os escravos e os reduzimos a brutos animais, e eles nos inoculam toda a sua
imoralidade, e todos os seus vícios.
E na verdade, senhores, se a moralidade e a justiça social
de qualquer povo se fundam, parte nas suas instituições religiosas e políticas, e parte na Filosofia, para dizer assim, doméstica de cada família,
que quadro pode apresentar o Brasil, quando o consideramos debaixo destes dois pontos de vista? Qual é a religião que temos, apesar da beleza e
santidade do Evangelho, que dizemos seguir? A nossa religião é pela maior parte um sistema de superstições e abusos anti-sociais; o nosso clero, em
muita parte ignorante e corrompido, é o primeiro que se serve de escravos, e os acumula para enriquecer pelo comércio, e pela agricultura, e para
formar, muitas vezes, das desgraçadas escravas, um harém turco.
As famílias não têm educação, nem a podem ter com o tráfico
de escravos, nada as pode habituar a conhecer e amar a Virtude e a Religião. Riquezas e mais riquezas gritam os nossos pseudo-estadistas, os nossos
compradores e vendedores de carne humana; os nossos sabujos eclesiásticos; os nossos magistrados, se é que se pode dar um tão honroso título a
almas, pela mor parte, venais, que só empunham a vara da justiça para oprimir desgraçados, que não podem satisfazer a sua cobiça, ou melhorar a sua
sorte.
E então, senhores, como pode regular a justiça e a virtude,
e florescerem os bons costumes, entre nós? Senhores, quando me emprego nestas tristes considerações, quase que perco de todo as esperanças de ver o
nosso Brasil um dia regenerado e feliz, pois que se me antolha que a ordem das vicissitudes humanas está de todo invertida no Brasil. O luxo e a
corrupção nasceram entre nós antes da civilização e da indústria; e qual será a causa principal de um fenômeno tão espantoso? A escravidão,
senhores, a escravidão, porque o homem, que conta com os jornais de seus escravos, vive na indolência, e a indolência traz todos os vícios após si.
Diz porém a cobiça cega que os escravos são precisos no
Brasil, porque a gente dele é frouxa e preguiçosa. Mentem por certo. A Província de S. Paulo, antes da criação dos engenhos de açúcar, tinha poucos
escravos, e todavia crescia anualmente em povoação e agricultura, e sustentava de milho, feijão, farinha, arroz, toucinhos, carnes de porco etc., a
muitas outras províncias marítimas e interiores.
Mas conceda-se (caso negado) que com efeito a gente livre do
Brasil não pode com tantos trabalhos aturados da lavoura, como na Europa, pergunto, se produzindo o milho, por exemplo, em Portugal nas melhores
terras quarenta por um, e no Brasil acima de duzentos, e as mais sementeiras à proporção; e estando as horas do trabalho necessário da lavoura na
razão inversa do produto da mesma; para que se precisa de maior robustez e trabalhos mais aturados? Os lavradores da Índia são porventura mais
robustos do que um branco, um mulato, um cabra do Brasil: Não, por certo, e todavia não morre aquele povo de fome. E porque eles não têm escravos
africanos, deixam as suas terras de ser agricultadas, e o seu país um dos mais ricos do Globo, apesar da sua péssima religião e governo, e da
impolítica infernal da divisão em casta?
Hoje em dia, a cultura dos canaviais e o fabrico do açúcar
têm crescido prodigiosamente, cujo produto já rivaliza nos mercados públicos da Europa com o do Brasil e ilhas do golfo do México.
Na Cochinchina não há escravos, e todavia a produção e
exportação do açúcar já montava em 1750, segundo nos diz o sábio Poivre, a quarenta mil pipas de duas mil libras cada uma, e o seu preço era
baratíssimo no mercado: ora advirta-se, que todo este açúcar vinha de um pequeno país sem haver necessidade de estragar matas e esterilizar
terrenos, como desgraçadamente entre nós está sucedendo.
Demais, uma vez que acabe o péssimo método da lavoura de
destruir matas e esterilizar terrenos em rápida progressão, e se forem introduzindo os melhoramentos da cultura européia, de certo com poucos
braços, a favor dos arados e outros instrumentos rústicos, a agricultura ganhará pés diariamente, as fazendas serão estáveis, e o terreno, quanto
mais trabalhado, mais fértil ficará. A Natureza próvida e sábia, em toda e qualquer parte do Globo, nos dá os meios precisos aos fins da sociedade
civil, e nenhum país necessita de braços estranhos e forçados para ser rico e cultivado.
Além disso, a introdução de novos africanos no Brasil não
aumenta a nossa população, e só serve de obstar a nossa indústria. Para provar a primeira tese bastará ver com atenção o censo de cinco ou seis anos
passados, e ver-se-á que apesar de entrarem no Brasil, como já disse, perto de quarenta mil escravos anualmente, o aumento desta classe é ou nulo,
ou de mui pouca monta; quase tudo morre ou de miséria, ou de desesperação, e todavia custaram imensos cabedais, que se perderam para sempre, e que
nem sequer pagaram o juro do dinheiro empregado.
Para provar a segunda tese, que a escravatura deve obstar a
nossa indústria, basta lembrar que os senhores que possuem escravos vivem, em grandíssima parte, na inércia, pois não se vêm precisados pela fome ou
pobreza a aperfeiçoar sua indústria, ou melhorar sua lavoura. Demais, continuando a escravatura a ser empregada exclusivamente na agricultura, e nas
artes, ainda quando os estrangeiros pobres venham estabelecer-se no país, em pouco tempo, como mostra a experiência, deixam de trabalhar na terra
com seus próprios braços e logo que podem ter dois ou três escravos entregam-se à vadiação e desleixo, pelos caprichos de um falso pundonor.
As Artes não se melhoram; as máquinas, que poupam braços,
pela abundância extrema de escravos nas povoações grandes, são desprezadas. Causa raiva, ou riso, ver vinte escravos ocupados em transportar vinte
sacos de açúcar, que podiam conduzir uma ou duas carretas bem construídas com dois bois ou duas bestas muares.
A lavoura do Brasil,
feita por escravos boçais e preguiçosos, não dá os lucros com que homens ignorantes e fantásticos se iludem. Se calcularmos o custo atual da
aquisição do terreno, os capitais empregados nos escravos que o devem cultivar, o valor dos instrumentos rurais com que deve trabalhar cada um
destes escravos
[1],
sustento e vestuário, moléstias reais e afetadas, e seu curativo, as mortes numerosas, filhas do mau tratamento e da desesperação, as repetidas
fugidas aos matos e quilombos, claro fica que o lucro da lavoura deve ser mui pequeno no Brasil, ainda apesar da prodigiosa fertilidade de suas
terras, como mostra a experiência.
No Brasil, a renda dos prédios rústicos
não depende da extensão e valor do terreno, nem dos braços que o cultivam, mas sim da mera indústria e inteligência do lavrador. Um senhor de terras
é de fato pobríssimo, se pela sua ignorância ou desmazelo não sabe tirar proveito da fertilidade de sua terra, e dos braços que nela emprega. Eu
desejara, para bem seu, que os possuidores de grande escravatura conhecessem que a proibição do tráfico de carne humana os fará mais ricos, porque
seus escravos atuais virão a ter então maior valor, e serão por interesse seu mais bem tratados; os senhores promoverão então os casamentos, e estes
a população. Os forros aumentados, para ganharem a vida, aforarão pequenas porções de terras descobertas ou taperas, que hoje nada valem. Os bens
rurais serão estáveis, e a renda da terra não se confundirá com a do trabalho e indústria individual.
Não são só estes males particulares que
traz consigo a grande escravatura no Brasil, e o Estado é ainda mais prejudicado. Se os senhores de terras não tivessem uma multidão demasiada de
escravos, eles mesmos aproveitariam terras já abertas e livres de matos, que hoje jazem abandonadas como maninhas. Nossas matas preciosas em
madeiras de construção civil e náutica não serão destruídas pelo machado assassino do negro, e pelas chamas devastadoras da ignorância. Os cumes de
nossas serras, fonte perene de umidade e fertilidade para as terras baixas, e de circulação elétrica, não estariam escalvados
(N.E.: carecas, estéreis, sem vegetação) e tostados pelos ardentes estios do
nosso clima.
É pois evidente que, se a agricultura se
fizer com os braços livres dos pequenos proprietários, ou por jornaleiros, por necessidade e interesse serão aproveitadas essas terras, mormente nas
vizinhanças das grandes povoações, onde se acha sempre um mercado certo, pronto e proveitoso, e deste modo se conservarão, como herança sagrada para
nossa posteridade, as antigas matas virgens, que pela sua vastidão e frondosidade caracterizam o nosso belo país.
É de espantar pois que um tráfico tão
contrário às leis da moral humana, e às santas máximas do Evangelho, e até contra as leis de uma sã política, dure há tantos séculos entre homens
que se dizem civilizados e cristãos! Mentem, nunca o foram.
A sociedade civil tem por base primeira a
justiça, e por fim principal a felicidade dos homens; mas que justiça tem um homem para roubar a liberdade de outro homem, e o que é pior, dos
filhos deste homem e dos filhos destes filhos? Mas dirão talvez que se favorecerdes a liberdade dos escravos será atacar a propriedade. Não vos
iludais, senhores, a propriedade foi sancionada para bem de todos, e qual é o bem que tira o escravo de perder todos os seus direitos naturais, e se
tornar de pessoa a coisa, na frase dos jurisconsultos?
Não é pois o direito de propriedade que
querem defender, é o direito da força, pis que o homem, não podendo ser coisa, não pode ser objeto de propriedade. Se a lei deve defender a
propriedade, muito mais deve defender a liberdade pessoal dos homens, que não pode ser propriedade de ninguém, sem atacar os direitos da
Providência, que fez os homens livres, e não escravos; sem atacar a ordem moral das sociedades, que é a execução estrita de todos os deveres
prescritos pela Natureza, pela Religião e pela sã Política; ora, a execução de todas estas obrigações é o que constitui a virtude; e toda
legislação, e todo governo (qualquer que seja a sua forma), que a não tiver por base, é como a estátua de Nabucodonosor, que uma pedra desprendida
da montanha a derribou pelos pés; é um edifício fundado em areia solta, que a mais pequena borrasca abate e desmorona.
Gritam os traficantes de carne humana
contra os piratas barbarescos, que cativam por ano mil, ou dois mil brancos, quando muito; e não gritam contra dezenas de milhares de homens
desgraçados, que arrancamos de seus lares, eternizando em dura escravidão toda a sua geração. Não basta responder, que os compramos com o nosso
dinheiro; como se o dinheiro pudesse comprar homens! - Como se a escravidão perpétua não fosse um crime contra o direito natural, e contra as leis
do Evangelho, como disse. As leis civis, que consentem estes crimes, são não só culpadas de todas as misérias que sofre sta porção da nossa espécie,
e de todas as mortes e delitos que cometem os escravos, mas igualmente o são de todos os horrores que, em poucos anos, deve produzir uma multidão
imensa de homens desesperados, que já vão sentindo o peso insuportável da injustiça, que os condena a uma vileza e miséria sem fim.
Este comércio de carne humana é pois um
cancro que rói as entranhas do Brasil, comércio porém que hoje em dia já não é preciso para aumento da sua agricultura e povoação, uma vez que, por
sábios regulamentos, não se consinta a vadiação dos brancos e outros cidadãos mesclados e a dos forros; uma vez que os muitos escravos, que já
temos, possam, às abas de um governo justo, propagar livre e naturalmente com as outras classes, uma vez que possam bem criar e sustentar seus
filhos, tratando-se esta desgraçada raça africana com maior cristandade, até por interesse próprio; uma vez que se cuide enfim da emancipação
gradual da escravatura, e se convertam brutos imorais em cidadãos úteis, ativos e morigerados.
Acabe-se pois de uma vez o infame tráfico
da escravatura africana; mas, com isto, não está tudo feito: é também preciso cuidar seriamente em melhorar a sorte dos escravos existentes, e tais
cuidados são já um passo dado para a sua futura emancipação.
As leis devem prescrever estes meios, se
é que elas reconhecem que os escravos são homens feitos à Imagem de Deus. E se as leis os consideram como objetos de legislação penal, porque o não
serão também da proteção civil?
Torno a dizer, porém, que eu não desejo
ver abolida de repente a escravidão; tal acontecimento traria consigo grandes males. Para emancipar escravos sem prejuízo da sociedade, cumpre
fazê-los primeiramente dignos da liberdade; cumpre que sejamos forçados pela razão e pela lei a convertê-los gradualmente de vis escravos em homens
livres e ativos. Então, os moradores deste Império, de cruéis que são em grande parte neste ponto, se tornarão cristãos e justos, e ganharão muito
pelo andar do tempo, pondo em livre circulação cabedais mortos, que absorve o uso da escravatura: livrando as suas famílias de exemplos domésticos
de corrupção e tirania; de inimigos seus e do Estado, que hoje não têm pátria, e que podem vir a ser nossos irmãos e nossos compatriotas.
O mal está feito, senhores, mas não o
aumentemos cada vez mais; ainda é tempo de emendar a mão. Acabado o infame comércio da escravatura, já que somos forçados pela razão política a
tolerar a existência dos atuais escravos, cumpre em primeiro lugar favorecer a sua gradual emancipação, e antes que consigamos ver o nosso país
livre de todo deste cancro, o que levará tempo, desde já abrandemos o sofrimento dos escravos, favoreçamos e aumentemos todos os seus gozos
domésticos e civis; instruamo-los no fundo da verdadeira religião de Jesus Cristo, e não em momices e superstições; por todos estes meios nós lhes
daremos toda a civilização de que são capazes no seu desgraçado estado, despojando-os o menos que pudermos da dignidade de homens e cidadãos.
Este é não só o nosso dever, mas o nosso
maior interesse, porque só então, conservando eles a esperança de virem a ser um dia nossos iguais em direitos, e começando a gozar desde já da
liberdade e nobreza d'alma, que só o vício é capaz de roubar-nos, eles nos servirão com fidelidade e amor; de inimigos se tornarão nossos amigos e
clientes.
Sejamos pois justos e benéficos,
senhores, e sentiremos dentro d'alma que não há situação mais deliciosa, que a de um senhor carinhoso e humano, que vive sem medo e contente no meio
de seus escravos, como no meio da sua própria família, que admira e goza do fervor com que esses desgraçados adivinham seus desejos, e obedecem a
seus mandos, observa com júbilo celestial o como maridos e mulheres, filhos e netos, sãos e robustos, satisfeitos e risonhos, não só cultivam suas
terras para enriquecê-lo, mas vêm voluntariamente oferecer-lhe até as primícias dos frutos de suas terrinhas, de sua caça e pesca como a um Deus
tutelar. É tempo, pois, que esses senhores bárbaros, que por desgraça nossa ainda pululam no Brasil, ouçam os brados da consciência e da humanidade,
ou pelo menos o seu próprio interesse, senão, mais cedo do que pensam, serão punidos das suas injustiças, e da sua incorrigível barbaridade.
Eu vou, finalmente, senhores,
apresentar-vos os artigos que podem ser objeto da nova lei que requeiro. Discuti-os, emendai-os, ampliai-os segundo a vossa sabedoria e justiça.
Para eles me aproveitei da legislação dos dinamarqueses e espanhóis, e mui principalmente da legislação de Moisés, que foi o único, entre os
antigos, que se condoeu da sorte miserável dos escravos, não só por humanidade, que tanto reluz nas suas instituições, mas também pela sábia
política de não ter inimigos caseiros, mas antes amigos, que pudessem defender o novo Estado dos Hebreus, tomando as armas, quando preciso fosse, a
favor de seus senhores como já tinham feito os servos do patriarca Abraão antes dele.
Artigo I - Dentro de 4 ou 5 anos
cessará inteiramente o comércio da escravatura africana; e durante este prazo, de todo escravo varão, que for importado, se pagará o dobro dos
direitos existentes; das escravas porém só metade, para se favorecerem os casamentos.
Artigo II - Todo escravo, que for
vendido depois da publicação desta lei, quer seja vindo d'África, quer dos já existentes no Brasil, será registrado em um livro público de notas, no
qual se declarará o preço por que foi vendido. Para que este artigo se execute à risca fica autorizado qualquer cidadão a acusar a sua infração e,
provado o fato, receberá metade do valor do escravo - dos contratantes que o subnegaram
(N.E.: sonegaram) ao registro.
Artigo III - Nas alforrias dos
escravos, cujo preço de venda não constar do registro, se procederá a uma avaliação legal por jurados, um dos quais será nomeado pelo senhor, e
outro pela autoridade pública a quem competir.
Artigo IV - Nestas avaliações se
atenderá aos anos de cativeiro e serviço do escravo, ao estado de saúde, e à idade do mesmo. Por exemplo: as crianças de um ano só pagarão o 12º do
valor do homem feito; as de 1 até 5 só o 6º; as de 5 até 15 dois terços; as de 15 até 20 três quartos; de 20 até 40 o preço total; e daí para cima
irá diminuindo o valor à proporção.
Artigo V - Todo escravo, ou alguém por
ele, que oferecer ao senhor o valor por que foi vendido, ou por que foi avaliado, será imediatamente forro.
Artigo VI - Mas se o escravo, ou alguém
por ele, não puder pagar todo preço por inteiro, logo que apresentar a sexta parte dele, será o senhor obrigado a recebê-la, e lhe dará um dia livre
da semana, e assim à proporção mais dias, quando for recebendo as outras sextas partes até o valor total.
Artigo VII - O senhor que forrar
escravos gratuitamente, em prêmio da sua beneficência poderá reter o forro em seu serviço por cinco anos, sem lhe pagar jornal, mas só o sustento,
curativo e vestuário; mas se um estranho o forrar na forma dos artigos 5º e 6º, poderá contratar com o forro o modo da sua indenização em certos
dias de trabalho, cujo contrato será revisto e aprovado pelo juiz policial curador dos escravos.
Artigo VIII - Todo senhor que forrar
escravo velho ou doente incurável será obrigado a sustentá-lo, vesti-lo e tratá-lo durante sua vida, se o forro não tiver outro modo de existência;
e no caso de o não fazer, será o forro recolhido ao hospital, ou casa de trabalho, à custa do senhor.
Artigo IX - Nenhum senhor poderá vender
escravo casado com escrava, sem vender ao mesmo tempo, e ao mesmo comprador, a mulher e os filhos menores de 12 anos. A mesma disposição tem lugar a
respeito da escrava não casada e seus filhos dessa idade.
Artigo X - Todos os homens de cor
forros, que não tiverem ofício, ou modo certo de vida, receberão do Estado uma pequena sesmaria de terra para cultivarem, e receberão outrossim dele
os socorros necessários para se estabelecerem, cujo valor irão pagando com o andar do tempo.
Artigo XI - Todo senhor que andar
amigado com escrava, ou tiver tido dela um ou mais filhos, será forçado pela lei a dar a liberdade à mãe e aos filhos, e a cuidar na educação destes
até a idade de quinze anos.
Artigo XII - O escravo é senhor legal
do seu pecúlio e poderá por herança ou doação deixá-lo a quem quiser, no caso de não ter herdeiros forçados; e se morrer ab-intestado, e sem
herdeiros, herdará a Caixa de Piedade.
Artigo XIII - O senhor não poderá
castigar o escravo com surras, ou castigos cruéis, senão no pelourinho público da cidade, vila ou arraial, obtida a licença do juiz policial, que
determinará o castigo à vista do delito; e qualquer que for contra esta determinação será punido com pena pecuniária arbitrária, a bem da "Caixa de
Piedade", dado porém recurso ao Conselho Conservador da Província.
Artigo XIV - Todo escravo que mostrar
perante o juiz policial, ou Conselho Provincial Conservador, que tem sido cruelmente maltratado por seu senhor, tem direito de ir buscar novo
senhor; mas se for estropiado, ou mutilado barbaramente, será imediatamente forro pela lei.
Artigo XV - Os escravos podem
testemunhar em juízo, não contra os próprios senhores, mas contra os alheios.
Artigo XVI - Antes da idade de 12 anos
não deverão os escravos ser empregados em trabalhos insalubres e demasiados; e o Conselho vigiará sobre a execução deste artigo para bem do Estado e
dos mesmos senhores.
Artigo XVII - Igualmente os Conselhos
Conservadores determinarão em cada província, segundo a natureza dos trabalhos, as horas de trabalho, e o sustento e vestuário dos escravos.
Artigo XVIII - A escrava durante a
prenhez, e passado o terceiro mês, não será obrigada a serviços violentos e aturados; no oitavo mês só será ocupada em casa; depois do parto terá um
mês de convalescença; e passado este, durante um ano não trabalhará longe da cria.
Artigo XIX - Tendo a escrava o primeiro
filho vingado, se pejar de novo, terá, além do que acima fica determinado, uma hora de descanso mais fora das horas estabelecidas, e assim à
proporção dos filhos vingados que for tendo; ficará forra logo que tiver cinco filhos, porém sujeita a obedecer e morar com o marido, se for casada.
Artigo XX - O senhor não poderá impedir
o casamento de seus escravos com mulheres livres, ou com escravas suas, uma vez que aquelas se obriguem a morar com seus maridos, ou estas queiram
casar com livre vontade.
Artigo XXI - O governo fica autorizado
a tomar as medidas necessárias para que os senhores de engenhos e grandes plantações de cultura tenham pelo menos dois terços de seus escravos
casados.
Artigo XXII - Dará igualmente todas as
providências para que os escravos sejam instruídos na religião e moral, no que ganha muito, além da felicidade eterna, a subordinação e fidelidade
devida aos senhores.
Artigo XXIII - O governo procurará
convencer os párocos e outros eclesiásticos, que tiverem meios de subsistência, que a religião os obriga a dar liberdade a seus escravos, e a não
fazer novos infelizes.
Artigo XXIV - Para que não faltem os
braços necessários à agricultura e indústria, porá o governo em execução ativa as leis policiais contra os vadios e mendigos, mormente sendo estes
homens de cor.
Artigo XXV - Nas manumissões, que se
fizerem pela Caixa de Piedade, serão preferidos os mulatos aos escravos, e os crioulos aos da Costa.
Artigo XXVI - O dia dessas manumissões
será um dia de festa solene com assistência das autoridades civis e eclesiásticas.
Artigo XXVII - Para recompensar a
beneficência e sentimentos de religião e justiça, todo senhor que der alforria a mais de oito famílias de escravos, e lhes distribuir terras e
utensílios necessários, será contemplado pelo Governo como benemérito da Pátria, e terá direito a requerer mercês e condecorações públicas.
Artigo XXVIII - Para excitar o amor do
trabalho entre os escravos e a sua maior felicidade doméstica, estabelecerá o governo em todas as províncias caixas de economia, como as de França e
Inglaterra, onde os escravos possam por a render os produtos pecuniários dos seus trabalhos e indústrias.
Artigo XXIX - Na "Caixa de Piedade"
acima mencionada, além das penas pecuniárias já estabelecidas, entrarão: 1º A metade mais das quantias que custarem as dispensas eclesiásticas de
missa em casa, batizar e casar fora da matriz etc.; 2º As duas terças partes dos legados pios, que pelo alvará de 5 de setembro de 1786 foram
aplicados para o Hospital Real e casa de expostos de Lisboa; 3º Os bens vacantes sem herdeiros e senhores certos, que de tempo imemorial foram
doados aos cativos, e tudo mais que lhes é aplicado na lei de 4 de setembro de 1775; 4º O dízimo do rendimento das irmandades e confrarias, o qual
será cuidadosamente arrecadado e entregue pelos magistrados, que estão encarregados de lhes tomar contas; 5º Um por cento da renda de todas as
propriedades rústicas e urbanas dos conventos e mosteiros; 6º Uma jóia, determinada pelo Regimento Gral, que se deverá fazer, a qual deverão dar
todos os que obtiverem mercês de hábitos de Cristo, ou de honras e foros passados pela Mordomia-Mor do Império; 7º Enfim, mais um meio por cento que
deverão pagar os que arrematarem contratos e rendas nacionais.
Artigo XXX - Fica outrossim autorizada
esta Caixa a receber e administrar todos os legados e doações que lhe hajam de fazer, como é de esperar, todas as almas pias e generosas.
Artigo XXXI - Para vigiar na estrita
execução de lei, e para se promover por todos os modos possíveis o bom tratamento, morigeração e emancipação sucessiva dos escravos, haverá na
capital de cada Província um Conselho Superior Conservador dos Escravos, que será composto do presidente da Província, do bispo, ou em falta deste,
da maior autoridade eclesiástica, do magistrado civil da maior graduação e de dois membros mais, escolhidos pelo Governo dentre os conselheiros
provinciais. Presidirão por turno e mensalmente o presidente e o bispo.
Artigo XXXII
- Além deste Conselho, haverá nas vilas e arraiais uma mesa composta do pároco, capitão-mor e juiz de vara branca ou ordinário, ou em sua falta de
um homem bom e dos mais honrados e virtuosos do povo, escolhido pelo Conselho. Esta mesa decidirá sumariamente dos negócios e causas que lhe
pertencerem, e dará apelação e agravo para o Conselho, que também decidirá afinal sumariamente.
São procuradores e fiscais natos os juízes e
andadores das irmandades e confrarias dos homens de cor, que existirem na capital, ou nas vilas e arraiais das províncias.
Eis aqui tentes, senhores, o que me sugerira por ora o amor da
Pátria, e o zelo da justiça e da piedade cristã. A vós compete corrigir, aumentar e aperfeiçoar o meu magro e desalinhado trabalho; e a mim me
bastará a consolação de haver excitado mais esta vez a vossa atenção sobre um assunto tão ponderoso quanto necessário.
O vastíssimo Brasil, situado no clima o mais ameno e temperado do Universo, dotado da
maior fertilidade natural, rico de numerosas produções, próprias suas, e capaz de mil outras que facilmente se podem nele climatizar, sem os gelos
da Europa, e sem os ardores da África e da Índia, pode e deve ser civilizado e cultivado sem as fadigas demasiadas de uma vida inquieta e
trabalhada, e sem os esforços alambicados das artes e comércio exclusivos da velha Europa.
Dai-lhe que goze da liberdade civil, que já tem adquirido; dai-lhe maior instrução e
moralidade, desvelai-vos em aperfeiçoar a sua agricultura, em desempeçar (N.E.: desemaranhar,
desenredar) e fomentar a sua indústria artística, em aumentar e melhorar suas estradas e a
navegação de seus rios; empenhai-vos em acrescentar a sua povoação livre, destruindo de um golpe o peçonhento cancro que o rói, e que enfraquece a
sua força militar, força tão necessária nas atuais circunstâncias, que não pode tirar de um milhão de escravos, e mais, que desgraçadamente fazem
hoje em dia um terço pelo menos da sua mesclada população; então ele será feliz e poderoso.
A natureza fez tudo a nosso favor, nós porém pouco ou nada temos feito a favor da
natureza. Nossas terras estão ermas, e as poucas que temos roteado são mal cultivadas, porque o são por braços indolentes e forçados; nossas
numerosas minas, por falta de trabalhadores ativos e instruídos, estão desconhecidas, ou mal aproveitadas; nossas preciosas matas vão desaparecendo,
vítimas do fogo e do machado destruidor da ignorância e do egoísmo; nossos montes e encostas vão-se escalvando diariamente, e com o andar do tempo
faltarão as chuvas fecundantes, que favoreçam a vegetação, e alimentem nossas fontes e rios, sem o que o nosso belo Brasil em menos de dois séculos
ficará reduzido aos páramos e desertos áridos da Líbia. Virá então esse dia (dia terrível e fatal), em que a ultrajada natureza se ache vingada de
tantos erros e crimes cometidos.
Eia, pois, legisladores do vasto Império do Brasil, basta de dormir; é tempo de
acordar do sono amortecido, em que há séculos jazemos. Vós sabeis, senhores, que não pode haver indústria segura e verdadeira, nem agricultura
florescente e grande com braços de escravos viciosos e boçais. Mostra a experiência e a razão que a riqueza só reina onde impera a liberdade e a
justiça, e não onde mora o cativeiro e a corrupção.
Se o mal está feito, não o aumentemos, senhores, multiplicando cada vez mais o número
de nossos inimigos domésticos, desses vis escravos, que nada têm que perder, antes tudo que esperar de alguma revolução como a de São Domingos.
Ouvi, pois, torno a dizer, os gemidos da cara Pátria, que implora socorro e
patrocínio; pelejemos denodadamente a favor da razão e da humanidade, e a favor de nossos próprios interesses. Embora contra nós uive e ronque o
egoísmo e a vil cobiça, sua perversa indignação, e seus desentoados gritos sejam para nós novos estímulos de triunfo, seguindo a estrada limpa da
verdadeira política, que é filha da Razão e da Moral.
E vós, traficantes de carne humana, vós senhores injustos e cruéis, ouvi com rubor e
arrependimento, se não tendes pátria, a voz imperiosa da consciência, e os altos brados da impaciente humanidade; aliás, mais cedo talvez do que
pensais, tereis que sofrer terrivelmente da vossa voluntária cegueira e ambição; pois o castigo da Divindade, se é tardio às vezes, decerto nunca
falta. E qual de vós quererá ser tão obstinado e ignorante, que não sinta que o cativeiro perpétuo é não somente contrário à religião e à sã
política, mas também contrário aos vossos futuros interesses, e à vossa segurança e tranqüilidade pessoal?
Generosos cidadãos do Brasil, que amais a
vossa Pátria, sabei que sem a abolição total do infame tráfico da escravatura africana, e sem a emancipação sucessiva dos atuais cativos, nunca o
Brasil firmará a sua independência nacional, e segurará e defenderá a sua liberal Constituição; nunca aperfeiçoará as raças existentes, e nunca
formará, como imperiosamente o deve, um exército brioso, e uma marinha florescente. Sem liberdade individual não pode haver civilização nem sólida
riqueza; não pode haver moralidade, e justiça, e sem estas filhas do Céu, não há nem pode haver brio, força e poder entre as nações.
[...]
NOTA:
[1]
Por ex.: 20 escravos de trabalho necessitam de 20 enxadas, que todas se pouparão com um só arado. |