TERCEIRA PARTE - PRODUÇÕES INTELECTUAIS DE JOSÉ BONIFÁCIO
Na impossibilidade de reproduzir em sua totalidade a não resumida produção
mental de José Bonifácio - pois que isso daria a esta obra proporções exageradas - resolvemos reunir neste volume escolhidos excertos dos seus mais
importantes trabalhos, quer poéticos e científicos, quer filosóficos e políticos. Deste modo, atendemos, em parte, ao objetivo dos poderes
municipais santistas, que queriam ver reimpressas as suas produções esgotadas ou pouco conhecidas de nosso público. Os trabalhos não muito extensos
vão reproduzidos na íntegra
Capítulo I - Seleção de poesias
Soneto
[1]
Improvisado na partida para Portugal em 1783
Adeus, fica-te em paz Alcina amada,
Ah sem mim sê feliz, vive ditosa;
Que contra os meus pesares
invejosa
A fortuna cruel se mostra irada.
Tão cedo não verei a delicada,
A linda face de jasmins e rosa,
O branco peito, a boca graciosa
Onde os amores têm gentil morada.
Pode, meu Bem, o Fado impiamente,
Pode negar de te gozar a dita,
Pode da tua vista ter-me ausente:
Mas apesar da mísera desdita,
De tão cruel partida, eternamente
Na minha alma viverás escrita.
Ode sáfica
À Primavera
Moço, bebamos; enche o copo, bebe:
Já novas rosas novo aroma espargem.
Eia ligeiros ao jardim desçamos
De
Nise asilo.
Outra vez quero renovar amores,
A Filomela acompanhando a lira:
Que gema Nise, como aquela geme
Entre meus braços.
No canto escuso do rosal cheiroso
A Baccho brinde, como aqui eu brindo;
Brinde aos amores, que co'as roas voltam,
E
com elas brincam.
A Vida acaba; muda-se a Fortuna,
Que bens e males sem juízo espalha:
Os que hoje vivem, amanhã morreram...
Amemos hoje.
Ode à poesia
Não os que enchendo vão, pomposos nomes,
Da
Adulação a boca;
Nem canto Tigres, nem ensino a Feras
As garras afiar e o agudo dente:
Minha Musa orgulhosa
Nunca aprendeu a envernizar horrores.
Gênio da inculta Pátria, se me inspiras
Aceso Estro divino,
Os porfidos luzentes não m'o roubam
Nem ferrugentas malhas, que deixaram
Velhos avós cruentos:
Canto a Virtude, quando as cordas firo.
Graças às nove Irmãs! meus livres cantos
São
filhos meus e seus!
A lauta mesa de baixela d'ouro,
Onde fumegam sículos manjares,
Do
vulgo vil negaça,
Mal comprados louvores não me arranca.
Divina Poesia, os alvos dias,
Em
que pura reinavas,
Já fugiram de nós. - Opacas nuvens
De fumo os horizontes abafando,
A
luz serena ofuscam,
Que sobre o Velho Mundo derramaras.
À sede d'ouro, e à vil cobiça dados
Os
filhos teus (ingratos!)
Nas níveas roupas tuas aljofradas
Mil negras nódoas sem remorso imprimem.
Mascarada Lisonja,
Fome, Baixeza, os venais hinos ditam.
Então que densos bosques e cavernas
Os
homens acoutavam,
Pela Música e Dança acompanhada
Benéfica Poesia a voz alçando,
Do
seio da Mãe Terra
Nascentes muros levantar fazia.
Então pulsando o Vate as cordas d'ouro,
A
populosa Tebas
Altiva a frente ergueu, ao som da lira;
E os hórridos costumes abrandando
A
sentir novos gozos
Aprende a feroz gente bruta e cega.
Assim Orfeu, se a doce voz soltava,
Os
euros suspendidos,
O Rio quedo, as Rochas atraía:
E os raivosos Leões e os Ursos feros
Manso e manso chegavam
A escutar de mais perto o som divino.
O Selvagem que então paixões pintava
Com
uivos e com roncos,
Pelas gentis Camenas amestrado
Os ouvidos deleita, a língua enrica,
E
com sonoro metro
Duráveis impressões grava na mente.
Qual a tenra donzela branca e loira
Da
Páfia Deusa inveja,
Os olhos cor do céu, vermelha a face,
O peito faz sentir, que não sentia:
Assim Musas divinas,
Corações bronzeados ameigavam.
Entre os frios Bretões, e os Celtas duros
Reinaram as Camenas:
De pó, de sangue, de ignomínia cheios
Mostra os vencidos Ossian à Pátria;
E a
frente coroando,
Canta os triunfos, canta a própria glória.
Qual das aves a mágica harmonia,
Que
a primavera canta,
Assim teus feitos, grandes e sublimes,
No dia da vitória hercúleo Fingal,
Teus
Bardos celebravam,
E a testa sobrançuda desfranzias.
Soberbos templos teve, teve altares
Na
Grécia a Poesia.
Gênios brilhantes! Sois antigos Vates
Os sociáveis nós, úteis e doces,
Humanos apertaram:
Simples, e poucas, sábias Leis fizeram.
A frente levantar não se atrevia
O
Fanatismo férreo;
Co'a gotejante espada dos altares
Arrancada, vermelho sangue quente,
Que
lagos mil formara,
Dos próprios filhos não vertia a Terra.
Nem absurda calúnia perseguia
A
razão e a virtude...
Se a Terra via, via heróicos crimes.
Tu Monstro horrendo, horrendo Despotismo,
Ah!
sobre ti caíram
Acesos raios, que na mão trazias!
Maldição sobre ti, Monstro execrando,
Que
a Humanidade aviltas!
Possam em novos mares, novas terras,
Por Britânicas gentes povoadas,
Quebrados os prestígios
Os filhos acoitar da Liberdade!
Então a fome de ouro, mãe de crimes,
Negra filha do Inferno!
Não tinha o braço matador armado
Do tirano europeu. A África adusta,
E a
doce Pátria minha,
Seus versos inocentes entoavam.
Vós lhe ditáveis, Helicônias Deusas,
Ternos versos chorosos
Do doce amigo morto à sombra ausente!
Outras vezes as vozes levantando,
A
glória dos Heróis
Em choreas enérgicas cantavam.
Então nascendo, altíloqua Epopéia
Celebra os Semideuses:
Tal da Grécia recente em alvos dias
A trombeta embocando sonorosa,
Ter
fez a luz Homero,
Que depois imitaste, Augusta Roma.
Não mil estátuas de fundido bronze,
Nem
mármores de Paros
Vencem as iras de Saturno idoso:
Arrasam-se pirâmides soberbas
Subterram-se obeliscos,
Resta uma Ilíada, e uma Eneida resta!
Qual rouca rã nos charcos, não pretendam
De
mim vendidos cantos.
Se a Cítara divina me emprestarem
As Filhas da Memória, altivo e ledo,
A
virtude cantando,
Entre os Vates também terei assento.
Ausência
Pode o Fado cruel com mão ferrenha,
Eulina amada, meu encanto e vida,
Abafar este eito e sufocar-me!
Que pretende o Destino? em vão presume
Rasgar do meu o coração de Eulina,
pois fazem sós um coração inteiro!
Imagem bela na minha alma impressa,
Tu desafias, tu te ris do Fado.
Embora contra nós ausência fera
Solitárias campinas estendidas,
Serras alpinas, áridos desertos,
Largos campos da cerula Anfitrite
Dois corpos enlaçados separando,
Conspirem-se - até mesmo os Céus tiranos.
Sim, os Céus! Ah! parece que nem sempre
Neles mora a bondade! Escuro Fado
Os homens bandeando, como o vento.
Os grãos de areia sobre a praça infinda,
dos míseros mortais brinca c'os males!
Se tudo pode, isto não pode o Fado!
Sim, adorada, angelical Eulina,
Eterna viverás a esta alma unida,
Eterna! pois as almas nunca morrem,
Quando os corpos não possam atraídos
Ligarem-se em recíprocos abraços,
(Que prazer, minha amada! O Deus Supremo,
Quando fez com a voz grávido o Nada,
Maior não teve) podem nossas almas,
A despeito dos mil milhões de males,
Da mesma morte. E contra nós que vale?
Do sangrento punhal, que o Fado vibre,
Quebrar a ponta, podem ver os Mundos
Erras sem ordem pelo espaço imenso;
Toda a Matéria reduzir-se em nada,
E podem inda nossas almas juntas,
Em amores nadar de eterno gozo!
Paráfrase
de parte do "Cântico dos Cânticos"
O Esposo
Ah dá-me, ó cara, os saborosos beijos
Dessa suave purpurina boca!
Quais em torno das rosas orvalhadas
Abelhas diligentes (tais do aceso
Coração pulam férvidos desejos).
Já meus vorazes beijos vão roubando
Balsâmico tesouro sobre os lábios
Em que Amor mora. A língua sitibunda
De néctar divinal todo me inunda.
Mais jucundo que Arábigos perfumes
É o hálito teu, amada esposa!
Qual nova Fênix entre aromas puros
Arde contigo já minha alma amante:
Arde, sim - mas ditosos seus ardores!
Pois para doces júbilos maiores
De novo ressuscita, quando morre.
Tu de pombinha azul tens as pupilas:
Dois pomos crus, que o cru Amor nutrira,
Brincam no meio do expandido seio:
Eles, ó cara, são duas aljavas,
Donde mil corações Amor seteia.
Vaidosas Graças mil cingem-te o corpo
Se passeias, e se ligeira corres,
Pareces viração que os trigos move.
Qual do prado rainha as flores vence
A fresca rosa, assim gentis donzelas
Quando te vêm, de inveja amarelecem.
Cristal o colo, de ébano as madeixas;
Lindos jasmins os cândidos dentinhos;
Nos rubros beiços trazes mel e leite;
Faz deste mundo Céu um seu sorriso.
A Esposa
Meu doce Bem, ah cessem teus louvores;
Porque tal formosura eu não a tenho:
Sim, eu ardo de amor, mas não sou bela.
Contigo só, contigo, caro esposo,
Derreter-se de amor esta alma ansia.
Feliz serei, se o fogo meu te acende;
E serão paga minha os teus deleites.
Sim, um só coração de dois façamos
Com simpático lume ambas as almas
Amor nos acendeu - tua sou toda:
Eu para ti, tu para mim nasceste.
Desde que os olhos teus para mim voltas,
O coração, qual raio, ah! tu me abrasas.
Eu apenas respiro, perco as cores,
Ardo, esmoreço; fico toda amores.
Ode
Vem minha Eulina, vem, corramos presto
As colmadas choupanas, que convidam
Com
retirado asilo.
Ali te esquecerão da fútil Corte
Os bulhosos prazeres que esvoaçam
Os
pávidos amores:
Ali solta a ternura, e os meigos beijos,
No seio da singela Natureza
Quantas trás delícias!
Que pode embelezar-te a vã Lisboa?
Definha a mocidade, se acanhados
Os
nascentes afetos.
Então a comitiva dos Pesares
Virá despir teus dias de alegria
Dias
longos, sem gosto.
Nutre-se Amor com mil prazeres livres,
Com livres expressões de peitos ternos
Que
lhe alentam os vôos.
Mas onde acharás tu lugar mais próprio
Que o campo escuso, habitação tranqüila
Da
amiga liberdade?
Ali somente o coração ensina
Dos olhos a linguagem maviosa,
Os
puros sentimentos!
Nada há que prenda os férvidos desejos:
Nada se opõe ao simples Pegureiro,
Que
o peito seu descobre.
Ouvindo-lhe carícias a Pastora
Entre séria e risonha lhe responde
Co'a
face nacarada.
Amar entre Pastores não é crime:
Todos sentem os mesmos movimentos
Que
sentimos, Eulina!
Nem precisam de juras nossos peitos,
Presos estão em doces nós eternos,
Que
o tempo não desata.
Orgulhosa ambição, cuja cobiça
Não envenenam assisados dias
Do
camponês ditoso:
Goza de amores francos e singelos
Pastos ao gado ervosos, gradas ceifas
Afortunam seus dias.
Não sofre a sanha do insolente Grande;
Nem vão Ricaço lhe deslumbra os olhos
Co'a
cruz regateada:
Se não habita Paços majestosos,
Onde marmóreos alisares brilham.
Co'a
Natureza mora.
Ah! basta-nos somente que a choupana
Nos acoite das chuvas invernosas,
Das
calmas queimadoras!
Quando as músicas Aves alvorada
Derem à rubra destrançada AUrora,
Te
espertarei com beijos.
Iremos conduzir as ovelhinhas,
Dos amigos rafeiros vigiadas,
Às
úmidas ervagens.
Das quentes sestas o calor não temas:
Escolhida por mim mimosa relva
Convidará teu sono.
À sombra dos copados arvoredos
Nosso amor gozaremos, abrigados
Dos
olhos invejosos!
Não trajada de púrpura ou de seda,
Mas de singela natural beleza.
Dominarás meu peito.
Milhões de beijos cobrirão teu seio:
Em vão contá-los ousará cioso
O
Zoilo malfazejo!
Assim, Eulina, correrão teus dias:
Assim nos colherá velhice tarda
Entre amores constantes.
Sim, minha Eulina, vem: corramos presto
Às colmadas choupanas, que convidam
Com
retirado asilo.
Ode
À morte de um Poeta Bucólico, amigo do
Autor
(A cena é sobre o Rio da Bertioga em
Santos, no Brasil)
Ali repousa o divinal poeta
No túmulo! ali donde mansamente
A descansada vaga temerosa
Se
arreda com respeito
Vós singelas belezas da natura
Ah!
vinde, levantai-vos,
E ornai do vosso Vate a sepultura.
Ali naquele fundo verde leito
De juncos murmurantes enterrada
A frauta está, que anosos troncos duros
Atraía ligeiros
Ah! quem tiver o coração aflito,
Em
tristeza ensopado,
Visite uma e mais vezes seu sepulcro!
Aqui tenros mancebos e donzelas
Mil lágrimas darão às cinzas frias;
E enquanto seus sons tristes o contorno
Encherem de amargura,
A Compaixão co'os olhos desvelados
Crerá que ainda escuta
Suas meigas palavras derradeiras.
Melancólica saudade, quantas vezes
Lá pela margem vagará pensando,
Enquanto a fronte adorna o pátrio Rio
De
venais grinaldas!
E quantas vezes golpeante o remo,
Nos
ares suspendido,
Tranqüilos deixará seus gentis manes!
Quando o Prazer e a festival Saúde,
Fugindo das cidades se retiram
Aos prados geniais, onde lascivos
Os
Zefirinhos folgam,
Triste amigo a cabana descobrindo
Entre a vária paisagem,
A face regará com pranto justo.
Mas tu, Vate Gentil, que friamente
O campesino úmido leito habitas,
De que te hão de servir lúgubres cantos
Que
a aflição entoa?
De que te hão de servir lá rimas tristes
Que
amorosa Saudade
Chora debaixo da ligeira vela?
E inda haverá mortal desassisado,
Que sem temor os olhos seus demore
Sobre o pálido túmulo sagrado,
Que
lá reluz ao longe?
À vista dele, doce Vate, morre
Toda
a alegria minha
Morre o prazer da amena primavera...
E tu paterno Rio desprezado,
Cujas margens tristonhas desamparam
Os verdejantes tortuosos mangues
Ou geie, ou chova, ou vente
Absorto em teus pesares nada sente!
Do
Tejo encapelado
Nas pardas praias onde as conchas luzem,
(Quais lá sobre cabeços verdes brilham
As vivas cores do listrado Iris)
Ondas mil rouquejam.
C'os beiços titubeantes, enfiado,
Tinto da cor da morte o triste rosto,
Por entre o horror da noite, e as ondas feras
O
batel mal governa
O
pávido barqueiro!
Os ventos berram, ferve o Tejo inteiro!
Eu só, meu Bem, em ti somente absorto,
Na Lapa cavernosa reclinado,
Não
temo os elementos
Na memória teu gesto repintando,
Debalde carrancudo Inverno brame,
E mar, e ventos, e borrascas duras:
Debalde enlutada a Natureza
Meu peito quer tingir de cores pretas;
Mas
pode em ti pensando,
Cara Eulina, deixar de derreter-se
Em
prazeres minha alma,
A quem teu nome só sossega e calma?
Por entre as bastas nuvens, que adelgaça
O
vento furioso,
Levanta-te ó Lua. - Sobre o Tejo,
Espalha os frouxos amarelos raios,
E
deslizando as vagas,
Que o nauta cobrem de suor e frio,
Mostra um pouco sereno o irado Rio.
Sim, vejamos ao menos se por entre
Os bruscos ares que alumia a Lua,
A
habitação vislumbro!
Ei-lo lá está da minha Deusa o templo,
Se
os olhos não me enganam!
Mas ah! que não escuto as falas meigas
Com que tigres amansa encarniçados,
Com que peitos amolga bronzeados!
Talvez, meu Bem, no leito desleixada
Entregues a Morfeu ternas lembranças
Quem pudera de um tiro abalançar-se
À
divinal alcova!
Ali contemplaria arrebatado
Mil tesouros de pródiga Natura
O
níveo lindo peito
Veria palpitar suavemente
Que meigo sabe amar, que meigo sente!
Gentil Eulina! sim, os lindos pomos,
Ricos cofres de amor e de ventura,
São mais brancos, que a espuma prateada
Que o Tejo lança agora, quando os ventos
Ferem as ondas contra a rocha dura,
Que
seu furor atura.
Mas ai de mim, que faço! a Fantasia
De onda em onda, de fictícios gozos
Era mesquinha! Basta já de sonhos!
E na lapa musgosas reclinemos
O
fatigado corpo:
Inda talvez que brilhe um alvo dia
Dia cheio de amor, e de alegria!
Cantata Iª
Vós me nutris os ternos pensamentos,
Quando à sombra das árvores copadas,
Sombrios vales frescos,
A rédea inteira solto à fantasia!
De beleza em beleza divagando
Sôfrega a mente se me vai nos olhos!
Depois meiga saudade
Manso e manso do peito se apodera...
Tudo o que vejo então me pinta Eulina.
Eis aquela violeta, que goteja
Das
folhas frio orvalho,
Os olhinhos de Eulina maviosos
Cheios de mil amores, mil feitiços
Me
pinta lacrimosos,
Quando ela dos meus brincos se agastava.
Os recentes jasmins vivos debuxam
os dentinhos de Eulina que sorria
Aos
humildes meus rogos.
Então as níveas faces delicadas,
Se com os beiços meus os seus tocava,
Sorrindo pudibunda
Ah! que eram duas rosas orvalhadas!
E há quem possa, ó minha Eulina ver-te,
Inda
que seja um mármore,
Sem palpitar-lhe o coração no peito?
Por
mim o digam, cara,
Se te vejo, as entranhas se me embebem
De
insólito alvoroço;
O sangue ferve em borbotões nas veias!
Sou todo lume, fico todo amores!
E
ainda se enfada a crua
Se
lhe digo a verdade?
Veja-se aquela fonte. Solte o riso,
Que
me rouba a mim mesmo,
Verá sorrir com ela a Natureza!
Insofrido esquadrão de alados beijos,
Em torno de teus beiços revoando,
Deles, Eulina, vida estão tirando.
Lábios da minha Eulina,
Lábios, favos de mel, mas venenosos!
De vós depende dos mortais a dita,
Se meigos vos abris... ah! nunca irosos!
Desentrançadas as madeixas de ouro,
Que ondeiam sobre o colo cristalino,
Meneando com graça o corpo airoso,
Inda mais bela que as Nápeas belas,
Quando as arestas do ondejante trigo,
No
folguedo noturno,
Em rápida carreira apenas tocam!
C'os olhos cor do Céu, branda e serena,
Aqui de manhã vinha, aqui folgava
Conversar às singelas co'a Natura!...
Parece que a estou vendo.
Qual
Zefirinho meigo
Que as espigas açoita levemente;
Assim lhe vai tremendo o ebúrneo colo,
Assim os lácteos pomos buliçosos,
Brincos dos Cupidinhos,
Docemente vacilam.
Quando entre as flores, nova flor passeia!
Eulina, Eulina minha!
Ah! não vendas tão cara a formosura,
Se a natureza a deu, deu para dar-se.
O peito às Leis do amor não encrueças:
Quem
dura lhe resiste
Vai contra o Céu, a Natureza ofende.
Sim, crê-me, ó cara Eulina
Tudo o que sente, tudo o que respira,
Tudo o que do almo sol calor recebe,
Reconhece de amor supremo mando.
Ária
Se a Natureza
Te fez tão bela,
Porque és cruel?
Aprende dela;
Sê-lhe fiel.
Eulina amada,
Se tens um peito,
Endhe-o de ardor
Verás que efeito
Produz Amor!
Cantata IIª
Que alegre madrugada! os pasasrinhos
Do
sono despertando
A
Aurora estão saudando.
Salve, ó bela manhã! Feliz quem pode
Respirar o teu ar, que o sangue esperta;
E longe do tumulto da cidade
Contemplar a Natura!
Que cena encantadora a formosura
Destes vales amenos me apresenta!
Salve outra vez, ó bela Natureza,
Que
os homens desconhecem!
Mas não: Nise gentil, a minha Nise,
Da ingênua Natureza os dons prezando,
Não
engrossa o cardume
Dessas almas vulgares. Quantas vezes
Apenas a manhã raiar começa,
Solitária baixando,
Aqui está a Natureza contemplando!
E
que cheiro suave
A matutina viração me envia!
Talvez, ó Nise, o hálito divino,
Recostada na relva ao fresco espalhes.
Eu
não me engano, ó cara:
Se
as árvores meneia
Buliçoso Favônio manda aos ares
O cheiro de mil pomos, de mil flores:
Azul regato, que os jardins retalha,
Embebe róseo aroma:
Assim, ó Nise, quando a choça me honras
O hálito, que espiras, coalha os ares
De
angélica ambrosia.
Agora que o horizonte avermelhado
Vê
fugir com a noite
Opacas nuvens de vapores frios;
E os férvidos Etontes sacudindo
As
crinas refulgentes
Querem passar as metas do Oriente,
Oh que quadro gentil alma Natura
Os
olhos apresenta!
Ao longe alcantilada penedia,
Aqui
e ali orlada
De arbustos verdenegros, vário musgo
A
cena fecha! ó Nise,
Vem qual dantes, meu Bem, ah vem comigo
Contemplar um chuveiro de belezas
À face do Universo remoçado
Eterno amor juremos.
Abre a boca de nácar, um sorriso
Dela
a medo escapando,
De novas graças a Natura enfeita.
Sim, teus beiços deleites mil gotejam,
Nise,
minha divina!
Vestidos de rubim, quando eles se abrem
Em
meigo santo riso,
Os ares alvoroçam, aviventam:
Eles
de amor se acendem
Aqui, no vale, que os outeiros fende,
Onde as límpidas águas ajuntando-se
Formam de prata arroios,
Quando passeias entre alegre e triste,
Qual
a manhã serena;
Eis o lascivo tremedor arrulho
Das leves avezinhas namoradas
Te pressentem, ó Nise; enternecidas
De raminho em raminho andam saltando,
E parece te dizem gorgeando:
Ária
Nise Tirana
Tem dó de Armido;
Torna inconstante
Torna ao querido
A consolar.
Ele te jura
Por esses olhos,
Onde os amores
Fervem a molhos
Sempre te amar.
A criação
Lá sobre um alto do nascente mundo,
Donde as águas tremendo recuaram,
Quando ouviram a voz do Deus do raio,
Poderosa Energia discorrendo
Por entre a denegrida úmida terra,
Que do abismo a cabeça levantava,
Organizados, novéis Entes cria,
Viçosas plantas, de que o Globo pasma!
Pelos ventos aromas mil espalham
Os verdejantes ramos seus difusos,
Que do ar expansivo a vida tiram:
Os Zéfiros brincões dependurados
Alegres batem as lascivas asas:
Já dentre o firme verde labirinto
Voam, cortando o ar, canoras aves:
Entoando canções em seus gorgeios
Ledas saúdam a menina Aurora.
Então amor de prole em laço estreito
As une todas. Laços que Natura
Forjou para os viventes, meigos laços
Que em vão intenta férreo Fanatismo
Quebrar dentre os humanos, Deus piedoso!
Eis pelo novo campo vem saltando
Animais de cem formas, cem figuras!
Lá da noite do Nada em que jaziam,
Deus lhe faz ver a luz; a luz que tinha
Do estéril caos fecundado o seio.
Ah! de prazeres mil gozam contentes,
Que Natureza liberal derrama;
Nem austera Razão, - injusta e fraca!
Os atormenta com seus vãos remorsos.
Porque teu braço aqui não suspendeste,
Ó sábia, compassiva Divindade?
A criadora Mão parar devera.
Pobres humanos, ah! porque os geraste?
Leves momentos em prazer gastados,
Que os crimes avenenam, sepultados
Jazer deviam no vazio Nada!
Nos campos geniais do Éden formoso,
Gentil morada, que nos destinaras,
Ligeiro sono apenas encetaram
Nossos primeiros pais, a quem o Fado -
Invejoso! segou em flor os gozos.
Então o negro Averno, ímpio e tirano,
Das sujas fauces vomitou sanhudo
Cerrados esquadrões de horrendos males.
Mil sanguinosos malfazejos crimes.
O filho infame, bravejando de ira,
No sangue maternal ensopa os braços;
E pensa, ó meu bom Deus, que assim lh'o manda!
Eis lá da costa d'Aulide saudosa
C'o vivo sangue de Efigênia bela
As sacras aras da triforme Deusa
Manchou deslumbrada a Grega frota
Ao vento dadas as madeixas d'ouro,
Cingida a fronte de sagrada faixa
Ao altar se avizinha. O sacerdote,
Em alto alçando o bárbaro cutelo,
O golpe lhe prepara. Ternas gotas
A Dor espreme dos vizinhos olhos.
Cruel, suspende o golpe: e de que serve
Para ventos domar sangue inocente:
Triste Efigênia, mísera donzela!
Em vez dos laços de Himeneu suaves,
Que amor compadecido lhe tecia,
De surdos Deuses vítima cruenta
Cega superstição a sacrifica!
Lá de Haiti nas praias assustadas
De ver cavados lenhos, que orgulhosos
Cerram em largo bojo espanto e morte,
Desembarcam ousados homens-monstros;
E após o estandarte correm, voam,
Que Fanatismo, que cobiça alçaram,
Imbeles povos, Índios inocentes!
Do armado Espanhol provam as iras.
Que Deus fizera um Mundo crêem os Tigres
Para ser presa sua. Em toda parte
Americano sangue, inda fumando,
A terra ensopa, e amolenta as patas
Dos soberbos ginetes Andaluzes
Deus do Universo! A Natureza freme,
E de horror na garganta a voz se prende!
Tiranos Europeus e tanto pode
Esse louro metal divinizado!
E tu, que os crimes dos mortais conheces
Deus piedoso, Deus que nos criaste,
Porque cruentas mãos livres lhes deixas?
Devias antes seus nefandos feitos
Manso atalhar, do que punir irado!
DE se para o castigo é que os consentes,
Sendo punidos, deixam de estar feitos?
Se a máquina imperfeita não regula,
O Artista é só culpado, que não ela.
Ah! se a obra de tuas mãos benignas
Rebelde havia ser a teus preceitos,
Antes, ó Deus, antes a não formasses:
Criar folgaste eternos infelizes?
Que perspectiva horrenda! Densas nuvens
O horizonte da Razão me embruscam!
Imenso abismo me rodeia todo!
Fraca Razão humana, caos vasto
De orgulho e de cegueira, ah! não presumas
Mistérios penetrar a ti vedados:
Ama os homens, e a Deus: isto te basta.
Uma tarde
No sítio de Santo Amaro perto da Vila de
Santos, Província de S. Paulo.
Como esta mata escura está medonha!
Não é tão feia a habitação dos Manes!
Este ribeiro triste como soa
Por entre o pardo emaranhado bosque;
E como corre vagaroso e pobre!
O sol, que já se esconde no horizonte,
O quadro afeia mais. - O vento surdo
De quando em quando só as folhas move!
À rouca voz pararão temerosos
Os equívocos Jacús [2]
nos bastos galhos
Cheios de Caraguatais
[3].,
das Upimbas [4].
Das asas vai lançando a fusca Noite
Terror gelado; o grito agudo e triste
Nos velhos Sapesais [5] dos verdes grilos
Somente soa; e o ar cheio de trevas,
Que as árvores aumentam, vem cortando
Do agoureiro morcego as tênues asas.
É este da tristeza o negro albergue!
Tudo é medonho e triste! só minha alma
Não farta o triste peito de tristeza!
Em
Paris, no ano de 1790.
Ode aos gregos
Ó Musa do Brasil, tempera a lira
Dirige o canto meu, vem inspirar-me:
Acende-me na mente estro divino
De heróico assunto digno!
Se comigo choraste os negros males,
Que a saudosa cara pátria oprimem,
Da Grécia renascida altas façanhas
As lágrimas te sequem.
Se ao curvo alfange, se ao pelouro ardente,
Política malvada a Grécia vende;
As bandeiras da cruz, da liberdade,
Farpadas inda ondeiam.
As baionetas que os servis amestram,
Carnagem, fogo não assustem peitos
Que amam a liberdade, amam a pátria
E de Helenos se prezam.
Como as gotas de chuva o sangue ensopa
Árido pó de campos devastados;
Como do funeral lúgubre sino
Gemidos mil retumbam.
Criancinhas, matronas, virgens puras,
Que à apostasia, que à desonra vota
O feroz Moslemim, filho do inferno,
Como mártires morrem.
E consentis, ó Deus! que os tristes filhos
Da Redentora cruz, Árabes, Turcos
Exterminem do solo antigo e santo
Da abandonada Grécia?
Contra algozes os míseros combatem;
Contra bárbaros, cruz, honra e justiça:
A Europa geme, - só tiranos frios
Com tais horrores folgam.
Rivalidades, ambição, temores,
Sujo interesse a inerte espada prendem,
E o sangue de Cristãos, que lagos forma,
Um ai lhes não arranca!
Perecerás, ó Grécia, mas contigo
Murcharão de Albion honra e renome;
O sórdido egoísmo que a devora
É já do mundo espanto!
Não desmaies, porém: a Divindade
Roborará teu braço; e na memória
Gravará para exemplo os altos feitos
Dos ilustres passados.
Eis os mirrados ossos já se animam
De Milcíades; já da campa fria
Ergue a cabeça, e grito dá tremendo
Para acordar os netos.
"Helenos, brada, ó vós, prole divina,
Basta de escravidão - Não mais opróbios!
É tempo de quebrar grilhão pesado,
E de vingar infâmias.
"Se arrasastes de Tróia os altos muros
Para o crime punir que amor causara,
Então porque sofreis há largos anos
Estupros e adultérios?
"Foram assento e berço às doutas musas
O sagrado Hélicon, Parnaso e Pindo:
Moral, sabedoria, humanidade
Fez vicejar a lira.
"Ante helênicas proas se acamava
Euxino, Egeu, e mil colônias vão
Levar artes e leis às rudes plagas,
E da Líbia e da Europa.
"Um punhado de heróis então podia
Tingir de sangue persa o vasto Ponto:
Montões de corpos inda palpitantes
Estrumavam os campos.
"Ah! porque não sereis o que já fostes?
Mudou-se o vosso céu e o vosso solo?
E não são inda os mesmos estes montes,
Estes mares e portos?
"Se Esparta ambiciosa, Atenas, Tebas,
O fratricida braço não tivessem
Em seu sangue banhado, nunca a Grécia
Curvara o colo a Roma.
"E se de Constantino a infame prole
Do fanatismo cego não houvera
Aguçado o punhal, ah! nunca as luas
Tremularam ufanas.
"Depois que foste, ó Grécia, miseranda,
De déspotas brutais brutal escrava,
Em a esquerda o Korão, na destra a espada,
Barbária prega o Turco.
"Assaz sorveste já milhões de insultos,
Já longa escravidão pagou teus crimes:
O Céu tem perdoado. - Eia, já cumpre
Ser Helenos, ser homens.
"Eia, Gregos, jurai, mostrai ao mundo
Que sois dignos de ser quais fostes dantes;
Eia, morrei de todo, ou sede livres!"
Assim falou, - calou-se.
E qual ligeira névoa sacudida
Pelo tufão do Norte, a sombra augusta
Desaparece. A Grécia inteira brada:
"Ou liberdade ou morte".
Ode aos baianos
Na
liberdade está a felicidade
e no
valor a liberdade
TUCÍDIDES
Altiva Musa, ó tu que nunca incenso
Queimaste em nobre altar ao despotismo;
Nem insanos encômios proferiste
De cruéis demagogos;
Ambição de poder, orgulho e fausto
QUe os servis amam tanto, nunca, ó Musa,
Acenderam teu estro - a só virtude
Soube inspirar louvores.
Na abóbada do templo da Memória
Nunca comprados cantos retumbaram:
Ah! vem, ó Musa, vem: na lira d'ouro
Não cantarei horrores.
Arbitrária fortuna! Desprezível
Mais qu'essas almas vis, que a ti se humilham
Prosterne-se a teus pés, o Brasil todo;
Eu, nem curvo o joelho.
Beijem o pé que esmaga, a mão que açoita
Escravos nados, sem saber, sem brio;
Que o bárbaro Tapuia, deslumbrado
O Deus do mal adora.
Não - reduzir-me a pó, roubar-me tudo,
Porém nunca aviltar-me, pode o fado;
Quem a morte não teme, nada teme -
Eu nisto só confio.
Inchado do poder, de orgulho e sanha,
Treme o vizir, se o grão-senhor carrega,
Porque mal digeriu, sobrolho iroso,
Ou mal dormiu a sesta.
Embora nos degraus do excelso trono
Rasteje a lesma, para ver se abate
A virtude que odeia - a mim me alenta
Do que valho a certeza.
E vós também, Baianos, desprezastes
Ameaças, carinhos - desfizestes
As cabalas, que pérfidos urdiram
Inda no meu desterro.
Duas vezes, Baianos, me escolhestes
Para a voz levantar a pró da pátria
Na assembléia geral; mas duas vezes
Foram baldados votos.
Porém enquanto me animar o peito
Este sopro de vida, que inda dura,
O nome de Bahia agradecido
Repetirei com júbilo.
Amei a liberdade, e a independência
Da doce cara pátria, a quem o Luxo
Oprimia sem dó, com riso e mofa -
Eis o meu crime todo.
Cingida a fronte de sangrentos louros
Horror jamais inspirará meu nome;
Nunca aspirei a flagelar humanos -
Nem seu pai a criança.
Nunca aspirei a flagelar humanos -
Meu nome acabe, para sempre acabe
Se para o libertar do eterno olvido
Forem precisos crimes.
Morrerei no desterro em terra estranha,
Que no Brasil só vis escravos medram -
Para mim o Brasil não é mais pátria,
Pois faltou a justiça.
Vales e serras, altas matas, rios
Nunca mais vos verei - sonhei outrora
Poderia entre vós morrer contente:
Mas não - monstros o vedam.
Não verei mais a viração suave
Parar o aéreo vôo, e de mil flores
Roubar aromas, e brincar travessa
C'o trêmulo raminho.
Oh! país sem igual, país mimoso!
Se habitassem em ti sabedoria,
Justiça, altivo brio, que enobrecem
Dos homens a existência;
De estranha emulação aceso o peito,
Lá me ia formando a fantasia
Projetos mil para vencer vil ócio,
Para criar prodígios!
Jardins, vergéis, umbrosas alamedas,
Frescas grutas então, piscosos lagos,
E pingues campos, sempre verdes prados
Um novo Éden fariam.
Doces visões! fugi - ferinas almas
Querem que em França um Desterrado morra:
Já vejo o gênio da certeira morte
Ir afiando a foice.
Galiciana donzela, lacrimosa,
Trajando roupas lutuosas longas,
Do meu pobre sepulcro a tosca lousa
Só cobrirá de flores.
Que o Brasil inclemente (ingrato ou fraco)
Às minhas cinzas um buraco nega:
Talvez tempo virá que ainda pranteie
Por mim com dor pungente.
Exulta, velha Europa: o novo Império,
Obra prima do Céu! por fado ímpio
Não será mais o teu rival ativo
Em comércio e marinha.
Aquele, que gigante inda no berço
Se mostrava às nações, no berço mesmo
É já cadáver de cruéis harpias
De malfazejas fúrias.
Como, ó Deus! que portento! a Urania Vênus
Ante mim se apresenta? Riso meigo
Banha-lhe a linda boca, que escurece
Fino coral nas cores.
"Eu consultei os fados, que não mentem
(Assim me fala a piedosa deusa):
"Das trevas surgirá sereno dia
"Para ti, para a pátria.
"O constante varão, que ama a virtude,
"C'os berros da borrasca não se assusta;
"Nem como folha de álamo fremente
Treme à face dos males.
"Escapaste a cachopos mil ocultos,
"Em que há de naufragar, como até agora
"Tanto áulico perverso - em França, amigo
"Foi teu desterro um porto.
"Os teus Baianos, nobres e briosos,
"Gratos serão a quem lhes deu socorro
"Contra o bárbaro Luso, e a liberdade
Meteu no solo escravo.
"Há de enfim essa gente generosa
"As trevas dissipar, salvar o Império;
"Por eles liberdade, paz, justiça
"Serão nervos do Estado.
"Qual a palmeira que domina ufana
"Os altos topos da floresta espessa:
"Tal bem presto há de ser no mundo novo
"O Brasil bem fadado.
"Em vão de paixões vis cruzados ramos
"Tentarão impedir do sol os raios -
"A luz vai penetrando a copa opaca
"O chão brotará flores."
Calou-se então - voou. E as soltas tranças
Em torno espalham mil sabéus perfumes
E os Zéfiros as asas adejando
Vazam dos ares rosas.
O poeta desterrado
Ó lira brasileira, que inspiravas
Com teus hinos, no peito amor de glórias;
Tu que o pranto da esposa suspendias,
Quando ausente o guerreiro;
Ora do triste vate no desterro
Já não acendes de Mavorte o fogo.
Nem cantas os troféus da pátria amada
Com mágica harmonia.
Fica pois, lira inútil, pendurada
De seco ramo; ou temperada agora
Em tom mais brando, vai soar tristonha
Em acanhado estilo
Ah! não digas, ó zoilo, mal do vate,
Se procurando lenitivo à mágoa,
Sob a copada rama solitário,
Enseja amor na lira.
Um mavioso coração aflito
Que abandonado em terra estranha geme,
A qual recorrerá propício nume
Senão a Vênus meiga?
Mas a causa, que a alma ora lhe agita,
É também de Narcinda a santa causa:
Da terna lira os sons enchem-lhe o peito
De dor e de saudade.
Os suspiros que a lira aos ares manda,
Ela com suspiros acompanha:
São sorrisos da lua que embelece
Da negra noite o manto.
Não do regato o plácido sussurro,
Nem o travesso zéfiro, que esperta
do letargo da sombra a flor cheirosa,
Ao pastor é mais grato!
Fresca e gentil, qual matutina rosa
Pela gotas de Maio rociada;
Assim do teu dileto olhos e peito
Arrebatas sorrindo.
Ah! não digas, ó zoilo, mal do vate,
Se ainda se acolhe de Narcinda ao seio;
Pois no meio do sonho dos amores,
Também co'a pátria sonha.
Para a moleza não nasceu o vate!
Em ditosos dias chamejava
Sua alma ardente, do heroísmo cheia,
Quando uma pátria tinha!
A corda que cicia docemente
Sobre a dourada lira malfadada,
Outrora ousou curvar arco guerreiro,
Vibrar rápida seta.
Os lábios, que ora movem moles versos,
Já levantar souberam da vingança
Grito tremendo, a despertar a pátria
Do sono amadornado.
Mas de todo acabou da pátria a glória!
Da liberdade o brado, que troava
Pelo inteiro Brasil, hoje emudece
Entre grilhões e mortes!
Sob suas ruínas gemem, choram,
Longe da pátria os filhos foragidos:
Acusa-os de traição, porque a amaram,
Servil, infame bando.
Ah! não digas, ó zoilo, mal do vate,
Se aos lares seus não volta: acicalado,
Súbito ferro aforaria o grito,
Que pela pátria erguesse.
Ali da santa liberdade os filhos,
Esses poucos que restam, foragidos
Vivem inglórios; pois as honras dão-se
A perjuros escravos.
Almas fracas e vis! e vós não vedes
Que o facho horrível, que alumia a senda
Das falsas honras, ascendeis no fogo
Que abrasa o Brasil todo?
Quando mortes fulmina a tirania,
E cala aos pés o mérito e a virtude,
Uma lágrima sequer não vos arranca
A terra em que nascestes?
Maldição sobre vós, almas danadas!
A taça do prazer a vós vos saiba
Como o mel venenoso das abelhas
Da Cisplatina plaga.
Suspirai pelo Céu, morrei no inferno
- Contentes, paz e glória de vós fujam
Como as águas de Tântalo fugiam
No Tártaro dos Gregos.
Ah! não digas, ó zoilo, mal do vate,
Se à pátria deusa algum consolo pede;
Se a aguda dor, que pela pátria sente,
Sonha abrandar um pouco!
Que um raio de esperança o fado acenda,
Que um relâmpago só penetre as trevas,
Que o seu Brasil envolvem, nesse instante
Em pé se alçará forte!
Então seu coração no altar sagrado
Da liberdade deporá ligeiro
A branda lira - então com nova murta
Coroará a espada.
Oh! quanto é forte um vate, se nutrido
Entre perigos foi! se denodado
da morte os brados retumbar ouvira
Com não mudado rosto!
Que um Trasíbulo novo se levante
C'um punhado de heróis a tirania,
No ensangüentado trono já lutante
Cairá aos pés exangue.
Mas enquanto o Brasil adormecido
Brilhantes dias renovar não sabe,
Repita ao menos o seu nome amado
A lira dos amores.
Da dor profunda, que o seu vate oprime,
Estranhos se condoam; e os suspiros
Da lira, que através dos mares voam,
Façam chorar a pátria.
Adeus, ó lira; basta; já se embruscam
Cada vez mais os ares: - sombra espessa
Envolve em torno a plácida ramada,
Em que teu vate geme.
Fica pois suspendida d'alto cachopo:
Nem mais aflita mão as cordas fira;
Ao murmúrio da fonte só responde
Os Zéfiros te movam.
Aos apartados ecos da colina
Muda teus sons; e do pastor a gaita
Frêmito doce em ti somente excite,
Ou zunidora abelha.
Adeus enfim, adeus, lira piedosa!
Ah! quantas vezes o teu pobre vate
Ameigava contigo a dor profunda
Em desveladas noites!
Se tantos males suportou constante,
A ti o deve, ó lira - já não podes
Ora mais consolar dobradas mágoas
Adeus, em paz descansa!
[...]
NOTAS:
[1] Diz o dr. Afrânio Peixoto, no seu volume sobre José Bonifácio, que o poeta contava então 18 anos. É engano. Tinha
20 anos, pois nasceu em 1763, como o próprio autor consigna no seu estudo biográfico, página 11 do citado volume.
[2] Os Jacús são espécies do gênero Penelope de Linneu.
[3] Pertencem ao gênero Bromélia.
[4] São árvores das matas virgens, cuja espécie presentemente não posso determinar.
[5] É uma das gramíneas que se apodera dos terrenos estéreis, por cansados. |