Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0184z55.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 01/11/09 15:35:32
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - OS ANDRADAS - BIBLIOTECAClique na imagem para ir à página principal desta série
Produções de José Bonifácio (1)

A história do Patriarca da Independência e sua família

Esta é a transcrição da obra Os Andradas, publicada em 1922 por Alberto Sousa (Typographia Piratininga, São Paulo/SP) - acervo do historiador Waldir Rueda -, volume III, com ortografia atualizada (páginas 305 a 346):
Leva para a página anterior

TERCEIRA PARTE - PRODUÇÕES INTELECTUAIS DE JOSÉ BONIFÁCIO

Na impossibilidade de reproduzir em sua totalidade a não resumida produção mental de José Bonifácio - pois que isso daria a esta obra proporções exageradas - resolvemos reunir neste volume escolhidos excertos dos seus mais importantes trabalhos, quer poéticos e científicos, quer filosóficos e políticos. Deste modo, atendemos, em parte, ao objetivo dos poderes municipais santistas, que queriam ver reimpressas as suas produções esgotadas ou pouco conhecidas de nosso público. Os trabalhos não muito extensos vão reproduzidos na íntegra

Capítulo I - Seleção de poesias


Soneto [1]

Improvisado na partida para Portugal em 1783

 

Adeus, fica-te em paz Alcina amada,

Ah sem mim sê feliz, vive ditosa;

Que  contra os meus pesares invejosa

A fortuna cruel se mostra irada.

 

Tão cedo não verei a delicada,

A linda face de jasmins e rosa,

O branco peito, a boca graciosa

Onde os amores têm gentil morada.

 

Pode, meu Bem, o Fado impiamente,

Pode negar de te gozar a dita,

Pode da tua vista ter-me ausente:

 

Mas apesar da mísera desdita,

De tão cruel partida, eternamente

Na minha alma viverás escrita.


Ode sáfica

 

À Primavera

 

Moço, bebamos; enche o copo, bebe:

Já novas rosas novo aroma espargem.

Eia ligeiros ao jardim desçamos

          De Nise asilo.

 

Outra vez quero renovar amores,

A Filomela acompanhando a lira:

Que gema Nise, como aquela geme

          Entre meus braços.

 

No canto escuso do rosal cheiroso

A Baccho brinde, como aqui eu brindo;

Brinde aos amores, que co'as roas voltam,

          E com elas brincam.

 

A Vida acaba; muda-se a Fortuna,

Que bens e males sem juízo espalha:

Os que hoje vivem, amanhã morreram...

          Amemos hoje.


Ode à poesia

 

Não os que enchendo vão, pomposos nomes,

          Da Adulação a boca;

Nem canto Tigres, nem ensino a Feras

As garras afiar e o agudo dente:

          Minha Musa orgulhosa

Nunca aprendeu a envernizar horrores.

 

Gênio da inculta Pátria, se me inspiras

          Aceso Estro divino,

Os porfidos luzentes não m'o roubam

Nem ferrugentas malhas, que deixaram

          Velhos avós cruentos:

Canto a Virtude, quando as cordas firo.

 

Graças às nove Irmãs! meus livres cantos

          São filhos meus e seus!

A lauta mesa de baixela d'ouro,

Onde fumegam sículos manjares,

          Do vulgo vil negaça,

Mal comprados louvores não me arranca.

 

Divina Poesia, os alvos dias,

          Em que pura reinavas,

Já fugiram de nós. - Opacas nuvens

De fumo os horizontes abafando,

          A luz serena ofuscam,

Que sobre o Velho Mundo derramaras.

 

À sede d'ouro, e à vil cobiça dados

          Os filhos teus (ingratos!)

Nas níveas roupas tuas aljofradas

Mil negras nódoas sem remorso imprimem.

          Mascarada Lisonja,

Fome, Baixeza, os venais hinos ditam.

 

Então que densos bosques e cavernas

          Os homens acoutavam,

Pela Música e Dança acompanhada

Benéfica Poesia a voz alçando,

          Do seio da Mãe Terra

Nascentes muros levantar fazia.

 

Então pulsando o Vate as cordas d'ouro,

          A populosa Tebas

Altiva a frente ergueu, ao som da lira;

E os hórridos costumes abrandando

          A sentir novos gozos

Aprende a feroz gente bruta e cega.

 

Assim Orfeu, se a doce voz soltava,

          Os euros suspendidos,

O Rio quedo, as Rochas atraía:

E os raivosos Leões e os Ursos feros

          Manso e manso chegavam

A escutar de mais perto o som divino.

 

O Selvagem que então paixões pintava

          Com uivos e com roncos,

Pelas gentis Camenas amestrado

Os ouvidos deleita, a língua enrica,

          E com sonoro metro

Duráveis impressões grava na mente.

 

Qual a tenra donzela branca e loira

          Da Páfia Deusa inveja,

Os olhos cor do céu, vermelha a face,

O peito faz sentir, que não sentia:

          Assim Musas divinas,

Corações bronzeados ameigavam.

 

Entre os frios Bretões, e os Celtas duros

          Reinaram as Camenas:

De pó, de sangue, de ignomínia cheios

Mostra os vencidos Ossian à Pátria;

          E a frente coroando,

Canta os triunfos, canta a própria glória.

 

Qual das aves a mágica harmonia,

          Que a primavera canta,

Assim teus feitos, grandes e sublimes,

No dia da vitória hercúleo Fingal,

          Teus Bardos celebravam,

E a testa sobrançuda desfranzias.

 

Soberbos templos teve, teve altares

          Na Grécia a Poesia.

Gênios brilhantes! Sois antigos Vates

Os sociáveis nós, úteis e doces,

          Humanos apertaram:

Simples, e poucas, sábias Leis fizeram.

 

A frente levantar não se atrevia

          O Fanatismo férreo;

Co'a gotejante espada dos altares

Arrancada, vermelho sangue quente,

          Que lagos mil formara,

Dos próprios filhos não vertia a Terra.

 

Nem absurda calúnia perseguia

          A razão e a virtude...

Se a Terra via, via heróicos crimes.

Tu Monstro horrendo, horrendo Despotismo,

          Ah! sobre ti caíram

Acesos raios, que na mão trazias!

 

Maldição sobre ti, Monstro execrando,

          Que a Humanidade aviltas!

Possam em novos mares, novas terras,

Por Britânicas gentes povoadas,

          Quebrados os prestígios

Os filhos acoitar da Liberdade!

 

Então a fome de ouro, mãe de crimes,

          Negra filha do Inferno!

Não tinha o braço matador armado

Do tirano europeu. A África adusta,

          E a doce Pátria minha,

Seus versos inocentes entoavam.

 

Vós lhe ditáveis, Helicônias Deusas,

          Ternos versos chorosos

Do doce amigo morto à sombra ausente!

Outras vezes as vozes levantando,

          A glória dos Heróis

Em choreas enérgicas cantavam.

 

Então nascendo, altíloqua Epopéia

          Celebra os Semideuses:

Tal da Grécia recente em alvos dias

A trombeta embocando sonorosa,

          Ter fez a luz Homero,

Que depois imitaste, Augusta Roma.

 

Não mil estátuas de fundido bronze,

          Nem mármores de Paros

Vencem as iras de Saturno idoso:

Arrasam-se pirâmides soberbas

          Subterram-se obeliscos,

Resta uma Ilíada, e uma Eneida resta!

 

Qual rouca rã nos charcos, não pretendam

          De mim vendidos cantos.

Se a Cítara divina me emprestarem

As Filhas da Memória, altivo e ledo,

          A virtude cantando,

Entre os Vates também terei assento.

 


Ausência

 

Pode o Fado cruel com mão ferrenha,

Eulina amada, meu encanto e vida,

Abafar este eito e sufocar-me!

Que pretende o Destino? em vão presume

Rasgar do meu o coração de Eulina,

pois fazem sós um coração inteiro!

Imagem bela na minha alma impressa,

Tu desafias, tu te ris do Fado.

Embora contra nós ausência fera

Solitárias campinas estendidas,

Serras alpinas, áridos desertos,

Largos campos da cerula Anfitrite

Dois corpos enlaçados separando,

Conspirem-se - até mesmo os Céus tiranos.

Sim, os Céus! Ah! parece que nem sempre

Neles mora a bondade! Escuro Fado

Os homens bandeando, como o vento.

Os grãos de areia sobre a praça infinda,

dos míseros mortais brinca c'os males!

Se tudo pode, isto não pode o Fado!

Sim, adorada, angelical Eulina,

Eterna viverás a esta alma unida,

Eterna! pois as almas nunca morrem,

Quando os corpos não possam atraídos

Ligarem-se em recíprocos abraços,

(Que prazer, minha amada! O Deus Supremo,

Quando fez com a voz grávido o Nada,

Maior não teve) podem nossas almas,

A despeito dos mil milhões de males,

Da mesma morte. E contra nós que vale?

Do sangrento punhal, que o Fado vibre,

Quebrar a ponta, podem ver os Mundos

Erras sem ordem pelo espaço imenso;

Toda a Matéria reduzir-se em nada,

E podem inda nossas almas juntas,

Em amores nadar de eterno gozo!


Paráfrase

de parte do "Cântico dos Cânticos"

 

O Esposo

 

Ah dá-me, ó cara, os saborosos beijos

Dessa suave purpurina boca!

Quais em torno das rosas orvalhadas

Abelhas diligentes (tais do aceso

Coração pulam férvidos desejos).

Já meus vorazes beijos vão roubando

Balsâmico tesouro sobre os lábios

Em que Amor mora. A língua sitibunda

De néctar divinal todo me inunda.

Mais jucundo que Arábigos perfumes

É o hálito teu, amada esposa!

Qual nova Fênix entre aromas puros

Arde contigo já minha alma amante:

Arde, sim - mas ditosos seus ardores!

Pois para doces júbilos maiores

De novo ressuscita, quando morre.

Tu de pombinha azul tens as pupilas:

Dois pomos crus, que o cru Amor nutrira,

Brincam no meio do expandido seio:

Eles, ó cara, são duas aljavas,

Donde mil corações Amor seteia.

Vaidosas Graças mil cingem-te o corpo

Se passeias, e se ligeira corres,

Pareces viração que os trigos move.

Qual do prado rainha as flores vence

A fresca rosa, assim gentis donzelas

Quando te vêm, de inveja amarelecem.

Cristal o colo, de ébano as madeixas;

Lindos jasmins os cândidos dentinhos;

Nos rubros beiços trazes mel e leite;

Faz deste mundo Céu um seu sorriso.

 

A Esposa

 

Meu doce Bem, ah cessem teus louvores;

Porque tal formosura eu não a tenho:

Sim, eu ardo de amor, mas não sou bela.

Contigo só, contigo, caro esposo,

Derreter-se de amor esta alma ansia.

Feliz serei, se o fogo meu te acende;

E serão paga minha os teus deleites.

Sim, um só coração de dois façamos

Com simpático lume ambas as almas

Amor nos acendeu - tua sou toda:

Eu para ti, tu para mim nasceste.

Desde que os olhos teus para mim voltas,

O coração, qual raio, ah! tu me abrasas.

Eu apenas respiro, perco as cores,

Ardo, esmoreço; fico toda amores.


Ode

 

Vem minha Eulina, vem, corramos presto

As colmadas choupanas, que convidam

          Com retirado asilo.

Ali te esquecerão da fútil Corte

Os bulhosos prazeres que esvoaçam

          Os pávidos amores:

Ali solta a ternura, e os meigos beijos,

No seio da singela Natureza

          Quantas trás delícias!

Que pode embelezar-te a vã Lisboa?

Definha a mocidade, se acanhados

          Os nascentes afetos.

Então a comitiva dos Pesares

Virá despir teus dias de alegria

          Dias longos, sem gosto.

Nutre-se Amor com mil prazeres livres,

Com livres expressões de peitos ternos

          Que lhe alentam os vôos.

Mas onde acharás tu lugar mais próprio

Que o campo escuso, habitação tranqüila

          Da amiga liberdade?

Ali somente o coração ensina

Dos olhos a linguagem maviosa,

          Os puros sentimentos!

Nada há que prenda os férvidos desejos:

Nada se opõe ao simples Pegureiro,

          Que o peito seu descobre.

Ouvindo-lhe carícias a Pastora

Entre séria e risonha lhe responde

          Co'a face nacarada.

Amar entre Pastores não é crime:

Todos sentem os mesmos movimentos

          Que sentimos, Eulina!

Nem precisam de juras nossos peitos,

Presos estão em doces nós eternos,

          Que o tempo não desata.

Orgulhosa ambição, cuja cobiça

Não envenenam assisados dias

          Do camponês ditoso:

Goza de amores francos e singelos

Pastos ao gado ervosos, gradas ceifas

          Afortunam seus dias.

Não sofre a sanha do insolente Grande;

Nem vão Ricaço lhe deslumbra os olhos

          Co'a cruz regateada:

Se não habita Paços majestosos,

Onde marmóreos alisares brilham.

          Co'a Natureza mora.

Ah! basta-nos somente que a choupana

Nos acoite das chuvas invernosas,

          Das calmas queimadoras!

Quando as músicas Aves alvorada

Derem à rubra destrançada AUrora,

          Te espertarei com beijos.

Iremos conduzir as ovelhinhas,

Dos amigos rafeiros vigiadas,

          Às úmidas ervagens.

Das quentes sestas o calor não temas:

Escolhida por mim mimosa relva

          Convidará teu sono.

À sombra dos copados arvoredos

Nosso amor gozaremos, abrigados

          Dos olhos invejosos!

Não trajada de púrpura ou de seda,

Mas de singela natural beleza.

          Dominarás meu peito.

Milhões de beijos cobrirão teu seio:

Em vão contá-los ousará cioso

          O Zoilo malfazejo!

Assim, Eulina, correrão teus dias:

Assim nos colherá velhice tarda

          Entre amores constantes.

Sim, minha Eulina, vem: corramos presto

Às colmadas choupanas, que convidam

          Com retirado asilo.


Ode

À morte de um Poeta Bucólico, amigo do Autor

(A cena é sobre o Rio da Bertioga em Santos, no Brasil)

 

Ali repousa o divinal poeta

No túmulo! ali donde mansamente

A descansada vaga temerosa

          Se arreda com respeito

Vós singelas belezas da natura

          Ah! vinde, levantai-vos,

E ornai do vosso Vate a sepultura.

 

Ali naquele fundo verde leito

De juncos murmurantes enterrada

A frauta está, que anosos troncos duros

          Atraía ligeiros

Ah! quem tiver o coração aflito,

          Em tristeza ensopado,

Visite uma e mais vezes seu sepulcro!

 

Aqui tenros mancebos e donzelas

Mil lágrimas darão às cinzas frias;

E enquanto seus sons tristes o contorno

          Encherem de amargura,

A Compaixão co'os olhos desvelados

          Crerá que ainda escuta

Suas meigas palavras derradeiras.

 

Melancólica saudade, quantas vezes

Lá pela margem vagará pensando,

Enquanto a fronte adorna o pátrio Rio

          De venais grinaldas!

E quantas vezes golpeante o remo,

          Nos ares suspendido,

Tranqüilos deixará seus gentis manes!

 

Quando o Prazer e a festival Saúde,

Fugindo das cidades se retiram

Aos prados geniais, onde lascivos

          Os Zefirinhos folgam,

Triste amigo a cabana descobrindo

          Entre a vária paisagem,

A face regará com pranto justo.

 

Mas tu, Vate Gentil, que friamente

O campesino úmido leito habitas,

De que te hão de servir lúgubres cantos

          Que a aflição entoa?

De que te hão de servir lá rimas tristes

          Que amorosa Saudade

Chora debaixo da ligeira vela?

 

E inda haverá mortal desassisado,

Que sem temor os olhos seus demore

Sobre o pálido túmulo sagrado,

          Que lá reluz ao longe?

À vista dele, doce Vate, morre

          Toda a alegria minha

Morre o prazer da amena primavera...

 

E tu paterno Rio desprezado,

Cujas margens tristonhas desamparam

Os verdejantes tortuosos mangues

Ou geie, ou chova, ou vente

Absorto em teus pesares nada sente!

          Do Tejo encapelado

Nas pardas praias onde as conchas luzem,

(Quais lá sobre cabeços verdes brilham

As vivas cores do listrado Iris)

          Ondas mil rouquejam.

C'os beiços titubeantes, enfiado,

Tinto da cor da morte o triste rosto,

Por entre o horror da noite, e as ondas feras

          O batel mal governa

          O pávido barqueiro!

Os ventos berram, ferve o Tejo inteiro!

Eu só, meu Bem, em ti somente absorto,

Na Lapa cavernosa reclinado,

          Não temo os elementos

Na memória teu gesto repintando,

Debalde carrancudo Inverno brame,

E mar, e ventos, e borrascas duras:

Debalde enlutada a Natureza

Meu peito quer tingir de cores pretas;

          Mas pode em ti pensando,

Cara Eulina, deixar de derreter-se

          Em prazeres minha alma,

A quem teu nome só sossega e calma?

Por entre as bastas nuvens, que adelgaça

          O vento furioso,

Levanta-te ó Lua. - Sobre o Tejo,

Espalha os frouxos amarelos raios,

          E deslizando as vagas,

Que o nauta cobrem de suor e frio,

Mostra um pouco sereno o irado Rio.

Sim, vejamos ao menos se por entre

Os bruscos ares que alumia a Lua,

          A habitação vislumbro!

Ei-lo lá está da minha Deusa o templo,

          Se os olhos não me enganam!

Mas ah! que não escuto as falas meigas

Com que tigres amansa encarniçados,

Com que peitos amolga bronzeados!

Talvez, meu Bem, no leito desleixada

Entregues a Morfeu ternas lembranças

Quem pudera de um tiro abalançar-se

          À divinal alcova!

Ali contemplaria arrebatado

Mil tesouros de pródiga Natura

          O níveo lindo peito

Veria palpitar suavemente

Que meigo sabe amar, que meigo sente!

Gentil Eulina! sim, os lindos pomos,

Ricos cofres de amor e de ventura,

São mais brancos, que a espuma prateada

Que o Tejo lança agora, quando os ventos

Ferem as ondas contra a rocha dura,

          Que seu furor atura.

Mas ai de mim, que faço! a Fantasia

De onda em onda, de fictícios gozos

Era mesquinha! Basta já de sonhos!

E na lapa musgosas reclinemos

          O fatigado corpo:

Inda talvez que brilhe um alvo dia

Dia cheio de amor, e de alegria!


Cantata Iª

 

Vós me nutris os ternos pensamentos,

Quando à sombra das árvores copadas,

          Sombrios vales frescos,

A rédea inteira solto à fantasia!

De beleza em beleza divagando

Sôfrega a mente se me vai nos olhos!

          Depois meiga saudade

Manso e manso do peito se apodera...

Tudo o que vejo então me pinta Eulina.

 

Eis aquela violeta, que goteja

          Das folhas frio orvalho,

Os olhinhos de Eulina maviosos

Cheios de mil amores, mil feitiços

          Me pinta lacrimosos,

Quando ela dos meus brincos se agastava.

Os recentes jasmins vivos debuxam

os dentinhos de Eulina que sorria

          Aos humildes meus rogos.

Então as níveas faces delicadas,

Se com os beiços meus os seus tocava,

          Sorrindo pudibunda

Ah! que eram duas rosas orvalhadas!

 

E há quem possa, ó minha Eulina ver-te,

          Inda que seja um mármore,

Sem palpitar-lhe o coração no peito?

          Por mim o digam, cara,

Se te vejo, as entranhas se me embebem

          De insólito alvoroço;

O sangue ferve em borbotões nas veias!

Sou todo lume, fico todo amores!

          E ainda se enfada a crua

          Se lhe digo a verdade?

Veja-se aquela fonte. Solte o riso,

          Que me rouba a mim mesmo,

Verá sorrir com ela a Natureza!

Insofrido esquadrão de alados beijos,

Em torno de teus beiços revoando,

Deles, Eulina, vida estão tirando.

          Lábios da minha Eulina,

Lábios, favos de mel, mas venenosos!

De vós depende dos mortais a dita,

Se meigos vos abris... ah! nunca irosos!

 

Desentrançadas as madeixas de ouro,

Que ondeiam sobre o colo cristalino,

Meneando com graça o corpo airoso,

Inda mais bela que as Nápeas belas,

Quando as arestas do ondejante trigo,

          No folguedo noturno,

Em rápida carreira apenas tocam!

C'os olhos cor do Céu, branda e serena,

Aqui de manhã vinha, aqui folgava

Conversar às singelas co'a Natura!...

          Parece que a estou vendo.

          Qual Zefirinho meigo

Que as espigas açoita levemente;

Assim lhe vai tremendo o ebúrneo colo,

Assim os lácteos pomos buliçosos,

          Brincos dos Cupidinhos,

          Docemente vacilam.

Quando entre as flores, nova flor passeia!

          Eulina, Eulina minha!

Ah! não vendas tão cara a formosura,

Se a natureza a deu, deu para dar-se.

O peito às Leis do amor não encrueças:

          Quem dura lhe resiste

Vai contra o Céu, a Natureza ofende.

Sim, crê-me, ó cara Eulina

Tudo o que sente, tudo o que respira,

Tudo o que do almo sol calor recebe,

Reconhece de amor supremo mando.

 

Ária

 

Se a Natureza

Te fez tão bela,

Porque és cruel?

Aprende dela;

Sê-lhe fiel.

Eulina amada,

Se tens um peito,

Endhe-o de ardor

Verás que efeito

Produz Amor!


Cantata IIª

 

Que alegre madrugada! os pasasrinhos

          Do sono despertando

          A Aurora estão saudando.

Salve, ó bela manhã! Feliz quem pode

Respirar o teu ar, que o sangue esperta;

E longe do tumulto da cidade

          Contemplar a Natura!

Que cena encantadora a formosura

Destes vales amenos me apresenta!

Salve outra vez, ó bela Natureza,

          Que os homens desconhecem!

Mas não: Nise gentil, a minha Nise,

Da ingênua Natureza os dons prezando,

          Não engrossa o cardume

Dessas almas vulgares. Quantas vezes

   Apenas a manhã raiar começa,

          Solitária baixando,

Aqui está a Natureza contemplando!

          E que cheiro suave

A matutina viração me envia!

Talvez, ó Nise, o hálito divino,

Recostada na relva ao fresco espalhes.

          Eu não me engano, ó cara:

          Se as árvores meneia

Buliçoso Favônio manda aos ares

O cheiro de mil pomos, de mil flores:

Azul regato, que os jardins retalha,

          Embebe róseo aroma:

Assim, ó Nise, quando a choça me honras

O hálito, que espiras, coalha os ares

          De angélica ambrosia.

Agora que o horizonte avermelhado

          Vê fugir com a noite

Opacas nuvens de vapores frios;

E os férvidos Etontes sacudindo

          As crinas refulgentes

Querem passar as metas do Oriente,

Oh que quadro gentil alma Natura

          Os olhos apresenta!

Ao longe alcantilada penedia,

          Aqui e ali orlada

De arbustos verdenegros, vário musgo

          A cena fecha! ó Nise,

Vem qual dantes, meu Bem, ah vem comigo

Contemplar um chuveiro de belezas

À face do Universo remoçado

          Eterno amor juremos.

Abre a boca de nácar, um sorriso

          Dela a medo escapando,

De novas graças a Natura enfeita.

Sim, teus beiços deleites mil gotejam,

          Nise, minha divina!

Vestidos de rubim, quando eles se abrem

          Em meigo santo riso,

Os ares alvoroçam, aviventam:

          Eles de amor se acendem

Aqui, no vale, que os outeiros fende,

Onde as límpidas águas ajuntando-se

          Formam de prata arroios,

Quando passeias entre alegre e triste,

          Qual a manhã serena;

Eis o lascivo tremedor arrulho

Das leves avezinhas namoradas

Te pressentem, ó Nise; enternecidas

De raminho em raminho andam saltando,

E parece te dizem gorgeando:

 

Ária

 

Nise Tirana

Tem dó de Armido;

Torna inconstante

Torna ao querido

A consolar.

 

Ele te jura

Por esses olhos,

Onde os amores

Fervem a molhos

Sempre te amar.


A criação

 

Lá sobre um alto do nascente mundo,

Donde as águas tremendo recuaram,

Quando ouviram a voz do Deus do raio,

Poderosa Energia discorrendo

Por entre a denegrida úmida terra,

Que do abismo a cabeça levantava,

Organizados, novéis Entes cria,

Viçosas plantas, de que o Globo pasma!

Pelos ventos aromas mil espalham

Os verdejantes ramos seus difusos,

Que do ar expansivo a vida tiram:

Os Zéfiros brincões dependurados

Alegres batem as lascivas asas:

Já dentre o firme verde labirinto

Voam, cortando o ar, canoras aves:

Entoando canções em seus gorgeios

Ledas saúdam a menina Aurora.

Então amor de prole em laço estreito

As une todas. Laços que Natura

Forjou para os viventes, meigos laços

Que em vão intenta férreo Fanatismo

Quebrar dentre os humanos, Deus piedoso!

Eis pelo novo campo vem saltando

Animais de cem formas, cem figuras!

Lá da noite do Nada em que jaziam,

Deus lhe faz ver a luz; a luz que tinha

Do estéril caos fecundado o seio.

Ah! de prazeres mil gozam contentes,

Que Natureza liberal derrama;

Nem austera Razão, - injusta e fraca!

Os atormenta com seus vãos remorsos.

Porque teu braço aqui não suspendeste,

Ó sábia, compassiva Divindade?

A criadora Mão parar devera.

Pobres humanos, ah! porque os geraste?

Leves momentos em prazer gastados,

Que os crimes avenenam, sepultados

Jazer deviam no vazio Nada!

Nos campos geniais do Éden formoso,

Gentil morada, que nos destinaras,

Ligeiro sono apenas encetaram

Nossos primeiros pais, a quem o Fado -

Invejoso! segou em flor os gozos.

Então o negro Averno, ímpio e tirano,

Das sujas fauces vomitou sanhudo

Cerrados esquadrões de horrendos males.

Mil sanguinosos malfazejos crimes.

O filho infame, bravejando de ira,

No sangue maternal ensopa os braços;

E pensa, ó meu bom Deus, que assim lh'o manda!

Eis lá da costa d'Aulide saudosa

C'o vivo sangue de Efigênia bela

As sacras aras da triforme Deusa

Manchou deslumbrada a Grega frota

Ao vento dadas as madeixas d'ouro,

Cingida a fronte de sagrada faixa

Ao altar se avizinha. O sacerdote,

Em alto alçando o bárbaro cutelo,

O golpe lhe prepara. Ternas gotas

A Dor espreme dos vizinhos olhos.

Cruel, suspende o golpe: e de que serve

Para ventos domar sangue inocente:

Triste Efigênia, mísera donzela!

Em vez dos laços de Himeneu suaves,

Que amor compadecido lhe tecia,

De surdos Deuses vítima cruenta

Cega superstição a sacrifica!

Lá de Haiti nas praias assustadas

De ver cavados lenhos, que orgulhosos

Cerram em largo bojo espanto e morte,

Desembarcam ousados homens-monstros;

E após o estandarte correm, voam,

Que Fanatismo, que cobiça alçaram,

Imbeles povos, Índios inocentes!

Do armado Espanhol provam as iras.

Que Deus fizera um Mundo crêem os Tigres

Para ser presa sua. Em toda parte

Americano sangue, inda fumando,

A terra ensopa, e amolenta as patas

Dos soberbos ginetes Andaluzes

Deus do Universo! A Natureza freme,

E de horror na garganta a voz se prende!

Tiranos Europeus e tanto pode

Esse louro metal divinizado!

E tu, que os crimes dos mortais conheces

Deus piedoso, Deus que nos criaste,

Porque cruentas mãos livres lhes deixas?

Devias antes seus nefandos feitos

Manso atalhar, do que punir irado!

DE se para o castigo é que os consentes,

Sendo punidos, deixam de estar feitos?

Se a máquina imperfeita não regula,

O Artista é só culpado, que não ela.

Ah! se a obra de tuas mãos benignas

Rebelde havia ser a teus preceitos,

Antes, ó Deus, antes a não formasses:

Criar folgaste eternos infelizes?

Que perspectiva horrenda! Densas nuvens

O horizonte da Razão me embruscam!

Imenso abismo me rodeia todo!

Fraca Razão humana, caos vasto

De orgulho e de cegueira, ah! não presumas

Mistérios penetrar a ti vedados:

Ama os homens, e a Deus: isto te basta.


Uma tarde

No sítio de Santo Amaro perto da Vila de Santos, Província de S. Paulo.

 

Como esta mata escura está medonha!

Não é tão feia a habitação dos Manes!

Este ribeiro triste como soa

Por entre o pardo emaranhado bosque;

E como corre vagaroso e pobre!

O sol, que já se esconde no horizonte,

O quadro afeia mais. - O vento surdo

De quando em quando só as folhas move!

À rouca voz pararão temerosos

Os equívocos Jacús [2] nos bastos galhos

Cheios de Caraguatais [3]., das Upimbas [4].

Das asas vai lançando a fusca Noite

Terror gelado; o grito agudo e triste

Nos velhos Sapesais [5] dos verdes grilos

Somente soa; e o ar cheio de trevas,

Que as árvores aumentam, vem cortando

Do agoureiro morcego as tênues asas.

É este da tristeza o negro albergue!

Tudo é medonho e triste! só minha alma

Não farta o triste peito de tristeza!

Em Paris, no ano de 1790.


Ode aos gregos

 

Ó Musa do Brasil, tempera a lira

Dirige o canto meu, vem inspirar-me:

Acende-me na mente estro divino

          De heróico assunto digno!

 

Se comigo choraste os negros males,

Que a saudosa cara pátria oprimem,

Da Grécia renascida altas façanhas

          As lágrimas te sequem.

 

Se ao curvo alfange, se ao pelouro ardente,

Política malvada a Grécia vende;

As bandeiras da cruz, da liberdade,

          Farpadas inda ondeiam.

 

As baionetas que os servis amestram,

Carnagem, fogo não assustem peitos

Que amam a liberdade, amam a pátria

          E de Helenos se prezam.

 

Como as gotas de chuva o sangue ensopa

Árido pó de campos devastados;

Como do funeral lúgubre sino

          Gemidos mil retumbam.

 

Criancinhas, matronas, virgens puras,

Que à apostasia, que à desonra vota

O feroz Moslemim, filho do inferno,

          Como mártires morrem.

 

E consentis, ó Deus! que os tristes filhos

Da Redentora cruz, Árabes, Turcos

Exterminem do solo antigo e santo

          Da abandonada Grécia?

 

Contra algozes os míseros combatem;

Contra bárbaros, cruz, honra e justiça:

A Europa geme, - só tiranos frios

          Com tais horrores folgam.

 

Rivalidades, ambição, temores,

Sujo interesse a inerte espada prendem,

E o sangue de Cristãos, que lagos forma,

          Um ai lhes não arranca!

 

Perecerás, ó Grécia, mas contigo

Murcharão de Albion honra e renome;

O sórdido egoísmo que a devora

          É já do mundo espanto!

 

Não desmaies, porém: a Divindade

Roborará teu braço; e na memória

Gravará para exemplo os altos feitos

          Dos ilustres passados.

 

Eis os mirrados ossos já se animam

De Milcíades; já da campa fria

Ergue a cabeça, e grito dá tremendo

          Para acordar os netos.

 

"Helenos, brada, ó vós, prole divina,

Basta de escravidão - Não mais opróbios!

É tempo de quebrar grilhão pesado,

          E de vingar infâmias.

 

"Se arrasastes de Tróia os altos muros

Para o crime punir que amor causara,

Então porque sofreis há largos anos

          Estupros e adultérios?

 

"Foram assento e berço às doutas musas

O sagrado Hélicon, Parnaso e Pindo:

Moral, sabedoria, humanidade

          Fez vicejar a lira.

 

"Ante helênicas proas se acamava

Euxino, Egeu, e mil colônias vão

Levar artes e leis às rudes plagas,

          E da Líbia e da Europa.

 

"Um punhado de heróis então podia

Tingir de sangue persa o vasto Ponto:

Montões de corpos inda palpitantes

          Estrumavam os campos.

 

"Ah! porque não sereis o que já fostes?

Mudou-se o vosso céu e o vosso solo?

E não são inda os mesmos estes montes,

          Estes mares e portos?

 

"Se Esparta ambiciosa, Atenas, Tebas,

O fratricida braço não tivessem

Em seu sangue banhado, nunca a Grécia

          Curvara o colo a Roma.

 

"E se de Constantino a infame prole

Do fanatismo cego não houvera

Aguçado o punhal, ah! nunca as luas

          Tremularam ufanas.

 

"Depois que foste, ó Grécia, miseranda,

De déspotas brutais brutal escrava,

Em a esquerda o Korão, na destra a espada,

          Barbária prega o Turco.

 

"Assaz sorveste já milhões de insultos,

Já longa escravidão pagou teus crimes:

O Céu tem perdoado. - Eia, já cumpre

          Ser Helenos, ser homens.

 

"Eia, Gregos, jurai, mostrai ao mundo

Que sois dignos de ser quais fostes dantes;

Eia, morrei de todo, ou sede livres!"

          Assim falou, - calou-se.

 

E qual ligeira névoa sacudida

Pelo tufão do Norte, a sombra augusta

Desaparece. A Grécia inteira brada:

          "Ou liberdade ou morte".


Ode aos baianos

Na liberdade está a felicidade

e no valor a liberdade

TUCÍDIDES

 

Altiva Musa, ó tu que nunca incenso

Queimaste em nobre altar ao despotismo;

Nem insanos encômios proferiste

          De cruéis demagogos;

 

Ambição de poder, orgulho e fausto

QUe os servis amam tanto, nunca, ó Musa,

Acenderam teu estro - a só virtude

          Soube inspirar louvores.

 

Na abóbada do templo da Memória

Nunca comprados cantos retumbaram:

Ah! vem, ó Musa, vem: na lira d'ouro

          Não cantarei horrores.

 

Arbitrária fortuna! Desprezível

Mais qu'essas almas vis, que a ti se humilham

Prosterne-se a teus pés, o Brasil todo;

          Eu, nem curvo o joelho.

 

Beijem o pé que esmaga, a mão que açoita

Escravos nados, sem saber, sem brio;

Que o bárbaro Tapuia, deslumbrado

          O Deus do  mal adora.

 

Não - reduzir-me a pó, roubar-me tudo,

Porém nunca aviltar-me, pode o fado;

Quem a morte não teme, nada teme -

          Eu nisto só confio.

 

Inchado do poder, de orgulho e sanha,

Treme o vizir, se o grão-senhor carrega,

Porque mal digeriu, sobrolho iroso,

          Ou mal dormiu a sesta.

 

Embora nos degraus do excelso trono

Rasteje a lesma, para ver se abate

A virtude que odeia - a mim me alenta

          Do que valho a certeza.

 

E vós também, Baianos, desprezastes

Ameaças, carinhos - desfizestes

As cabalas, que pérfidos urdiram

          Inda no meu desterro.

 

Duas vezes, Baianos, me escolhestes

Para a voz levantar a pró da pátria

Na assembléia geral; mas duas vezes

          Foram baldados votos.

 

Porém enquanto me animar o peito

Este sopro de vida, que inda dura,

O nome de Bahia agradecido

          Repetirei com júbilo.

 

Amei a liberdade, e a independência

Da doce cara pátria, a quem o Luxo

Oprimia sem dó, com riso e mofa -

          Eis o meu crime todo.

 

Cingida a fronte de sangrentos louros

Horror jamais inspirará meu nome;

Nunca aspirei a flagelar humanos -

          Nem seu pai a criança.

 

Nunca aspirei a flagelar humanos -

Meu nome acabe, para sempre acabe

Se para o libertar do eterno olvido

          Forem precisos crimes.

 

Morrerei no desterro em terra estranha,

Que no Brasil só vis escravos medram -

Para mim o Brasil não é mais pátria,

          Pois faltou a justiça.

 

Vales e serras, altas matas, rios

Nunca mais vos verei - sonhei outrora

Poderia entre vós morrer contente:

          Mas não - monstros o vedam.

 

Não verei mais a viração suave

Parar o aéreo vôo, e de mil flores

Roubar aromas, e brincar travessa

          C'o trêmulo raminho.

 

Oh! país sem igual, país mimoso!

Se habitassem em ti sabedoria,

Justiça, altivo brio, que enobrecem

          Dos homens a existência;

 

De estranha emulação aceso o peito,

Lá me ia formando a fantasia

Projetos mil para vencer vil ócio,

          Para criar prodígios!

 

Jardins, vergéis, umbrosas alamedas,

Frescas grutas então, piscosos lagos,

E pingues campos, sempre verdes prados

          Um novo Éden fariam.

 

Doces visões! fugi - ferinas almas

Querem que em França um Desterrado morra:

Já vejo o gênio da certeira morte

          Ir afiando a foice.

 

Galiciana donzela, lacrimosa,

Trajando roupas lutuosas longas,

Do meu pobre sepulcro a tosca lousa

          Só cobrirá de flores.

 

Que o Brasil inclemente (ingrato ou fraco)

Às minhas cinzas um buraco nega:

Talvez tempo virá que ainda pranteie

          Por mim com dor pungente.

 

Exulta, velha Europa: o novo Império,

Obra prima do Céu! por fado ímpio

Não será mais o teu rival ativo

          Em comércio e marinha.

 

Aquele, que gigante inda no berço

Se mostrava às nações, no berço mesmo

É já cadáver de cruéis harpias

          De malfazejas fúrias.

 

Como, ó Deus! que portento! a Urania Vênus

Ante mim se apresenta? Riso meigo

Banha-lhe a linda boca, que escurece

          Fino coral nas cores.

 

"Eu consultei os fados, que não mentem

(Assim me fala a piedosa deusa):

"Das trevas surgirá sereno dia

          "Para ti, para a pátria.

 

"O constante varão, que ama a virtude,

"C'os berros da borrasca não se assusta;

"Nem como folha de álamo fremente

          Treme à face dos males.

 

"Escapaste a cachopos mil ocultos,

"Em que há de naufragar, como até agora

"Tanto áulico perverso - em França, amigo

          "Foi teu desterro um porto.

 

"Os teus Baianos, nobres e briosos,

"Gratos serão a quem lhes deu socorro

"Contra o bárbaro Luso, e a liberdade

          Meteu no solo escravo.

 

"Há de enfim essa gente generosa

"As trevas dissipar, salvar o Império;

"Por eles liberdade, paz, justiça

          "Serão nervos do Estado.

 

"Qual a palmeira que domina ufana

"Os altos topos da floresta espessa:

"Tal bem presto há de ser no mundo novo

          "O Brasil bem fadado.

 

"Em vão de paixões vis cruzados ramos

"Tentarão impedir do sol os raios -

"A luz vai penetrando a copa opaca

          "O chão brotará flores."

 

Calou-se então - voou. E as soltas tranças

Em torno espalham mil sabéus perfumes

E os Zéfiros as asas adejando

          Vazam dos ares rosas.


O poeta desterrado

 

Ó lira brasileira, que inspiravas

Com teus hinos, no peito amor de glórias;

Tu que o pranto da esposa suspendias,

          Quando ausente o guerreiro;

 

Ora do triste vate no desterro

Já não acendes de Mavorte o fogo.

Nem cantas os troféus da pátria amada

          Com mágica harmonia.

 

Fica pois, lira inútil, pendurada

De seco ramo; ou temperada agora

Em tom mais brando, vai soar tristonha

          Em acanhado estilo

 

Ah! não digas, ó zoilo, mal do vate,

Se procurando lenitivo à mágoa,

Sob a copada rama solitário,

          Enseja amor na lira.

 

Um mavioso coração aflito

Que abandonado em terra estranha geme,

A qual recorrerá propício nume

          Senão a Vênus meiga?

 

Mas a causa, que a alma ora lhe agita,

É também de Narcinda a santa causa:

Da terna lira os sons enchem-lhe o peito

          De dor e de saudade.

 

Os suspiros que a lira aos ares manda,

Ela com suspiros acompanha:

São sorrisos da lua que embelece

          Da negra noite o manto.

 

Não do regato o plácido sussurro,

Nem o travesso zéfiro, que esperta

do letargo da sombra a flor cheirosa,

          Ao pastor é mais grato!

 

Fresca e gentil, qual matutina rosa

Pela gotas de Maio rociada;

Assim do teu dileto olhos e peito

          Arrebatas sorrindo.

 

Ah! não digas, ó zoilo, mal do vate,

Se ainda se acolhe de Narcinda ao seio;

Pois no meio do sonho dos amores,

          Também co'a pátria sonha.

 

Para a moleza não nasceu o vate!

Em ditosos dias chamejava

Sua alma ardente, do heroísmo cheia,

          Quando uma pátria tinha!

 

A corda que cicia docemente

Sobre a dourada lira malfadada,

Outrora ousou curvar arco guerreiro,

          Vibrar rápida seta.

 

Os lábios, que ora movem moles versos,

Já levantar souberam da vingança

Grito tremendo, a despertar a pátria

          Do sono amadornado.

 

Mas de todo acabou da pátria a glória!

Da liberdade o brado, que troava

Pelo inteiro Brasil, hoje emudece

          Entre grilhões e mortes!

 

Sob suas ruínas gemem, choram,

Longe da pátria os filhos foragidos:

Acusa-os de traição, porque a amaram,

          Servil, infame bando.

 

Ah! não digas, ó zoilo, mal do vate,

Se aos lares seus não volta: acicalado,

Súbito ferro aforaria o grito,

          Que pela pátria erguesse.

 

Ali da santa liberdade os filhos,

Esses poucos que restam, foragidos

Vivem inglórios; pois as honras dão-se

          A perjuros escravos.

 

Almas fracas e vis! e vós não vedes

Que o facho horrível, que alumia a senda

Das falsas honras, ascendeis no fogo

          Que abrasa o Brasil todo?

 

Quando mortes fulmina a tirania,

E cala aos pés o mérito e a virtude,

Uma lágrima sequer não vos arranca

          A terra em que nascestes?

 

Maldição sobre vós, almas danadas!

A taça do prazer a vós vos saiba

Como o mel venenoso das abelhas

          Da Cisplatina plaga.

 

Suspirai pelo Céu, morrei no inferno

- Contentes, paz e glória de vós fujam

Como as águas de Tântalo fugiam

          No Tártaro dos Gregos.

 

Ah! não digas, ó zoilo, mal do vate,

Se à pátria deusa algum consolo pede;

Se a aguda dor, que pela pátria sente,

          Sonha abrandar um pouco!

 

Que um raio de esperança o fado acenda,

Que um relâmpago só penetre as trevas,

Que o seu Brasil envolvem, nesse instante

          Em pé se alçará forte!

 

Então seu coração no altar sagrado

Da liberdade deporá ligeiro

A branda lira - então com nova murta

          Coroará a espada.

 

Oh! quanto é forte um vate, se nutrido

Entre perigos foi! se denodado

da morte os brados retumbar ouvira

          Com não mudado rosto!

 

Que um Trasíbulo novo se levante

C'um punhado de heróis a tirania,

No ensangüentado trono já lutante

          Cairá aos pés exangue.

 

Mas enquanto o Brasil adormecido

Brilhantes dias renovar não sabe,

Repita ao menos o seu nome amado

          A lira dos amores.

 

Da dor profunda, que o seu vate oprime,

Estranhos se condoam; e os suspiros

Da lira, que através dos mares voam,

          Façam chorar a pátria.

 

Adeus, ó lira; basta; já se embruscam

Cada vez mais os ares: - sombra espessa

Envolve em torno a plácida ramada,

          Em que teu vate geme.

 

Fica pois suspendida d'alto cachopo:

Nem mais aflita mão as cordas fira;

Ao murmúrio da fonte só responde

          Os Zéfiros te movam.

 

Aos apartados ecos da colina

Muda teus sons; e do pastor a gaita

Frêmito doce em ti somente excite,

          Ou zunidora abelha.

 

Adeus enfim, adeus, lira piedosa!

Ah! quantas vezes o teu pobre vate

Ameigava contigo a dor profunda

          Em desveladas noites!

 

Se tantos males suportou constante,

A ti o deve, ó lira - já não podes

Ora mais consolar dobradas mágoas

          Adeus, em paz descansa!

[...]


NOTAS:

[1] Diz o dr. Afrânio Peixoto, no seu volume sobre José Bonifácio, que o poeta contava então 18 anos. É engano. Tinha 20 anos, pois nasceu em 1763, como o próprio autor consigna no seu estudo biográfico, página 11 do citado volume.

[2] Os Jacús são espécies do gênero Penelope de Linneu.

[3] Pertencem ao gênero Bromélia.

[4] São árvores das matas virgens, cuja espécie presentemente não posso determinar.

[5] É uma das gramíneas que se apodera dos terrenos estéreis, por cansados.

Leva para a página seguinte da série