Capa da primeira edição de Os Andradas, publicada em 1922 por Alberto Sousa
Prefácio
Por sua Lei nº 621, de 23 de outubro de 1918, resolveu a
Câmara Municipal de Santos contribuir para as festas do Centenário de nossa Independência política, promovendo, além de outras expressivas
comemorações, a publicação de uma obra referente aos Andradas e à história da terra em que nasceram. Devendo essa iniciativa ser confiada, por força
de estipulação expressa da mesma Lei, a um escritor santista, entendeu o Presidente da Municipalidade de então, o saudoso sr. António de Freitas
Guimarães Sobrinho, cujos prestantes e beneméritos serviços ao progresso local, nosso povo relembra com a mais venerante gratidão - que deveria
eleger-me para realizá-la; e a Câmara, em sessão pública, aprovou unanimemente sua escolha.
Se bem que a magnitude e responsabilidade do encargo excedessem de muito os limites
normais de minha comum capacidade, com dilatado tirocínio profissional feito noutros menos árduos misteres da vida literária - aceitei-o, após
hesitação que breve se dissipou, porque a honra imprevista e a generosa espontaneidade da incumbência impunham-me desde logo o dever de aceitá-la
sem a discutir.
Ao encarregar deste trabalho um escritor santista, não desconheceu por certo a digna
Edilidade que, fora e dentro de Santos, nascidos aqui ou não, sobejam publicistas de raro mérito e saber notório, capazes de levar o empreendimento
a cabo com inexcedível competência.
Afigurou-se-lhe, porém, que para tratar da história santista e dos varões santistas
mais assinalados nela, estaria naturalmente indicado um filho do lugar, que a seus destinos estivesse ligado, não só pela condição eventual do
nascimento, como por outros vínculos mais poderosos e mais duradouros, entre os quais avulta a solidariedade, que de longe vem, nas incertezas das
grandes lutas que se ali travaram, desde a abolição e a república, até as recentes e agitadíssimas campanhas em prol da autonomia municipal que, não
há muito tempo ainda, estivera ameaçada de arbitrária restrição, violadora da Lei fundamental e dos princípios doutrinais em que essa Lei repousa,
por parte de elementos politicamente incultos e retrógrados, então dominadores, e ora decaídos dos postos que ocupavam.
Tais lutas, feitas de ansiedades e de entusiasmos, de vacilações e de ousadias -
apuram a alma do verdadeiro combatente, completam a formação de seu caráter público, identificam-no com os ideais que voluntariamente esposou e
dão-lhe ao coração novos e revigorantes impulsos, para melhor amar e mais denodadamente servir as aspirações da terra onde nasceu. Nem foram razões
de outra natureza que determinaram a escolha que de meu nome se fez.
Compenetrado embora da imensa responsabilidade que assumira, encetei com relativa
coragem meu trabalho. Eu não ignorava que tinha de vencer graves dificuldades, mas confesso que as não supunha tantas e de tão grande vulto.
A respeito dos Andradas, além de investigações documentais referentes à sua vida
pessoal e doméstica, e à de seus antepassados mais ilustres, tinha eu que estudar, sob todos os aspectos, os seus complexos talentos e o multíplice
desdobramento de sua portentosa atividade na vida pública do País.
Quanto a Santos, eu precisava de reconstituir sua brilhante história desde os obscuros
inícios de sua remota formação até ao esplendor da época presente. E para uma e outra missão pouco se encontrava armazenado em autores, museus,
arquivos e bibliotecas.
Sobre José Bonifácio, por exemplo, escreveram-se, em verdade, várias, numerosas,
interessantes monografias, todas, porém, insuficientes, falhas, incompletas, omissas e contraditórias, quer do ponto-de-vista meramente biográfico,
quer do ponto-de-vista crítico.
A melhor coisa que se conhece até agora é o Elogio Acadêmico, opúsculo de pouco
mais de setenta páginas, composto há quase meio século por Latino Coelho, nos acanhados moldes peculiares a peças desse gênero, e no qual
sumarissimamente se recapitulam, perante a Academia de Ciências de Lisboa, os méritos e os serviços sociais de um confrade egrégio que a morte
arrebatara de entre seus pares.
A história de Santos, por seu turno, cifra-se ainda hoje quase exclusivamente nas oito
mirradas páginas que Frei Gaspar lhe dedicou nas Memórias para a História da Capitania de S. Vicente e que levantaram dúvidas, impugnações e
suspeitas que até esta data, após tantos e tão apaixonados debates e polêmicas ruidosas, não foram completamente elucidadas e pesam ainda sobre a
reputação do seu ilustre autor.
Algumas contribuições fragmentárias que diversos investigadores têm trazido
posteriormente para a solução de importantes problemas do passado - andam esparsas por aí além, sem a precisa unidade e consistente concatenação, em
publicações periódicas de difícil acessibilidade ao público, tais como revistas de associações particulares, cujas limitadas edições geralmente se
destinam a circular entre os associados respectivos. Não poucas dessas contribuições serviram para complicar talvez a solução de casos
originariamente simples.
Cumpria-me, pois, antes de mais nada, reunir, coordenar, estudar e confrontar tudo
quanto se publicara sobre os dois assuntos, quer em volumes alentados como em resumidos opúsculos, quer em revistas como em periódicos, desde os
mais antigos até os mais modernos; e em seguida andar pelos arquivos e bibliotecas, buscando e rebuscando dados de toda a sorte, compulsando
alfarrábios quase apagados pela ação do tempo, examinando, analisando velhos documentos depositados a esmo em mal organizadas repartições, à procura
de uma data, na ânsia de obter um esclarecimento, na esperança de desfazer uma dúvida, no desejo de trazer à luz um novo pormenor acaso esquecido ou
desprezado por outros investigadores.
E no Rio, e em S. Paulo, e em Santos - eis-me de um lado para outro, a coligir
elementos, a colher provisões, a arrecadar informes, antecedentes, vagos indícios. No Arquivo Municipal de Santos - que Frei Gaspar há mais de cem
anos já encontrara devastado - coisa alguma se me deparou em relação às mais remotas antiguidades locais; e assim também no da Santa Casa de
Misericórdia, que devia ter sido um precioso acervo de dados copiosos respeitantes aos primeiros dias de nossa terra, e aos seus mais antigos
povoadores e habitantes.
Em compensação, num e noutro, encontrei papéis de épocas menos afastadas que serviram
para explicar detalhes e sucessos mais antigos, como oportunamente se verá.
Estou certo de que nesta obra clareiam-se algumas obscuridades, suprem-se várias
omissões, dissipam-se diversos enganos e acrescenta-se aos fatos conhecidos qualquer coisa talvez inteiramente nova.
Mas não suponho estultamente que esteja ela isenta de erros mais graves do que os que
noutros aponto e necessariamente retifico, pelo dever em que me acho de restabelecer a verdade e não para ostentar conhecimentos próprios e muito
menos depreciar alheios méritos.
Além de me faltar autoridade para tanto, as dificuldades inúmeras com que lutei para
reunir o material de que necessitava, são de molde a fazer-me compreender o quanto maiores não teriam sido as que assoberbaram aqueles que à tarefa
de estudar nosso passado se dedicaram anteriormente.
Algo existe feito hoje a servir de ponto-de-partida aos escritores atuais; os outros,
porém, tiveram que começar tudo de novo, o que é bastante para justificar os senões em que hajam incorrido em mais de um passo de suas excelentes
obras.
Um fato ocorrido há pouco ilustra bem o nosso pensamento, mostrando o que há de
precário ainda em investigações desta ordem. Machado de Oliveira e Paulo do Valle, aquele, no seu Quadro Histórico da Província de S. Paulo,
e este, no seu opúsculo - O Governo Provisório e a Bernarda de Francisco Ignácio, observaram que a execução capital do Chaguinhas, como chefe
e principal responsável da revolta militar havida em Santos a 28 de junho de 1821, fora um dos elementos que favoreceram a explosão do movimento
revolucionário que se verificou em S. Paulo a 23 de maio do ano seguinte e que tivera como resultado a deposição de Martim Francisco de membro do
Governo e sua conseqüente expulsão do território da Província.
Muitíssimos anos depois, o dr. António de Toledo Piza, com a autoridade que lhe dava
sua profunda e vasta erudição em assuntos concernentes ao nosso passado histórico, acompanhou os traços daqueles seus ilustres colegas e
antecessores, cujas opiniões, emitidas aliás em termos pouco precisos, reforçou com valiosos elementos achados no Arquivo Público do Estado, do qual
era diretor mui competente, e com os que colhera nas vozes da tradição popular.
Para ele era fora de dúvida que o suplício de Chaguinhas, imputado sobretudo à
irredutível dureza do coração de Martim, servira de pretexto para a tremenda coligação conspiratória contra este urdida cavilosamente pelos
adversários da causa brasileira, adeptos da nossa recolonização.
E com o fim de fazer sentir a direta, a imediata
influência que um fato tivera sobre a realização de outro e por não existir "documento oficial algum"
comprobatório de que "Chaguinhas fosse enforcado antes de maio de 1822"
[1], imaginou que a respectiva execução se efetuara entre 12 e
18 do referido mês e ano [2], poucos dias antes de rebentar no pátio de S.
Gonçalo a Bernarda, da qual fora apenas o pretexto.
Mas, contra a hábil hipótese, idealizada com grande luxo de pormenores inéditos pela
ardente fantasia do velho cronista paulistano, levantava-se o depoimento do padre Diogo António Feijó que, da tribuna da Câmara dos Deputados
Gerais, na sessão de 22 de maio de 1832, declarou ter testemunhado pessoalmente o suplício do desafortunado Chaguinhas, acrescentando que este caíra
da forca ainda semi-vivo e fora acabado de assassinar em terra.
Importando a declaração peremptória do futuro Regente do Império em grave acusação a
Martim Francisco, impugnou António Piza a sua veridicidade, alegando que não podia ter testemunhado uma execução na Capital de S. Paulo, em maio,
quem se encontrava desde fevereiro em Lisboa, na qualidade de deputado às Cortes Constituintes de Portugal.
E atribuiu-a a um grande fundo de despeito e de ódio que o tempo não conseguira
remover do coração daquele que tanto e tão tenazmente combatera a vigorosa política andradina.
Volvidos, porém, cerca de três lustros, eis que o documento oficial sobre o
trágico sucesso aparece no próprio Arquivo de que era então diretor o mesmo Piza. Lá foi que o descobriu o inteligente esforço de um pesquisador
incansável - o dr. Djalma Forjaz, que o publicou em fevereiro do corrente ano, restabelecendo a verdade e revalidando perante o público a palavra do
Padre Feijó [3]. Chaguinhas fora efetivamente executado antes da partida dos
deputados por S. Paulo para Lisboa, a 21 de setembro de 1821. A sua execução, verificada portanto oito meses antes da Bernarda de Francisco
Ignácio, não poderia ter sido pretexto, remoto sequer, a um fato que se passaria oito meses depois.
Este caso - de que trato circunstanciadamente no
segundo volume - é aqui invocado neste momento apenas como a evidente prova do quanto nos achamos ainda num hesitante período de apalpadelas
timoratas e de ensaios tímidos a respeito de certos episódios e de certos vultos, sobre os quais parece-me que se não devem pronunciar
decretoriamente arestos definitivos, que a surpresa de arquivos inexplorados pode anular inesperadamente.
***
No presente volume, além de uma introdução geral
sobre a situação do Ocidente e a do povo português na transposição do século dezoito para o décimo nono século, encontra-se um desenvolvido capítulo
sobre a evolução histórica de Santos, sob o ponto-de-vista demográfico, econômico, político e social, fenômenos rigorosamente estudados à luz da
documentação que conseguimos colher; outro sobre a família Andrada e mais três respectivamente consagrados, o primeiro a José Bonifácio, o segundo a
António Carlos e o terceiro a Martim Francisco.
Os sucessos aqui narrados, as apreciações aqui emitidas, quer quanto à
vida privada, como doméstica e pública dos três gloriosos irmãos, nossos conterrâneos imortais, vão somente até ao regresso de José Bonifácio a
Santos, salvo num ou noutro ponto em que, para melhor compreensão da matéria, preciso me foi citar algumas datas posteriores. No segundo volume,
dedicado especialmente à ação política da trindade ilustre, trato, embora acessoriamente, de todos os fatos concernentes aos demais aspectos de sua
atividade pessoal e social, ocorridos até a morte de cada um deles. O terceiro é a documentação da obra.
***
À generosa Municipalidade de minha terra natal que confiou a execução
desta iniciativa ao escritor santista menormente capaz de executá-la; à indulgente apreciação de meus conterrâneos em geral, cuja benévola e
carinhosa simpatia, demonstrada no decurso de trinta anos de contínua operosidade jornalística e literária no Estado de S. Paulo, tem-me sido com
certeza o mais poderoso e reconfortador estímulo nas horas de desalento; à sensata opinião dos homens habilitados a medir as dificuldades que me
embaraçaram e os esforços que precisei fazer sobre mim mesmo para não esmorecer e desanimar de todo em meio da tarefa - entrego o resultado de
minhas penosas e cansativas elucubrações.
O que lhe falta em pompa de talento, em formosura de estilo, em exatidão de detalhes e em
opulência de conhecimentos, sobra-lhe em sentimentos de afetividade que se traduzem no amor que em cada frase palpita por minha terra, por sua
história e pelos seus heróis.
S. Paulo, janeiro de 1922.
Alberto Sousa.
Frontispício do primeiro volume de Os Andradas, publicado em 1922 por Alberto Sousa
NOTAS:
[1] Dr. ANTÓNIO DE TOLEDO
PIZA - Martim Francisco e a Bernarda, pág. 68.
[2] Idem, ibidem, pág. 57.
[3] Jornal do Commércio,
edição de S. Paulo, Ano VI, nº 111, pág. 3. |