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Um visionário construindo a nação
Viviane Pereira [*]
Colaboradora
A casa é grande, cercada de varandas. Na área da frente, em uma cadeira, o senhor está sentado enquanto um homem negro o
abana. Uma negra traz algo para ele beber. De cabeça baixa, ela entrega o copo e se retira.
Cena comum em meados do século 19, um "cancro moral" denunciado e combatido antes e depois da Independência pelo homem que queria construir uma nação forte e unida.
"É tempo pois, e mais que tempo, que acabemos com um tráfico tão bárbaro e carniceiro; é tempo também que vamos acabando gradualmente até os últimos vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar, em poucas gerações, uma Nação
homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres e felizes".
Com declarações firmes como esta, José Bonifácio de Andrada e Silva repudiava a escravidão mais de 60 anos antes da assinatura da Lei Áurea, ato que se deu em 13 de maio de 1888, há exatos 125 anos.
Numa época em que o Brasil era assentado em uma política escravagista, falar em fazer dos escravos homens livres surpreendia, assustava, incomodava. Coisas de um visionário sabedor de que uma nação só teria um futuro construindo bem sua identidade,
com a constituição de um povo brasileiro, a base de sua sociedade.
Após a Independência, a necessidade do fim da escravidão ficava ainda mais evidente para o Patriarca, pois agora seguir com essa política não era mais responsabilidade de Portugal, mas do Governo brasileiro.
Suas ideias tinham raízes profundas, essenciais para a formação da Nação Brasileira. Incluíam a civilização gradual do indígena, uma reforma agrária que substituísse o latifúndio improdutivo pela pequena propriedade familiar, a luta contra o
analfabetismo, a educação primária gratuita para todos e a criação de uma universidade para o ensino de Medicina, Ciências Naturais, Direito e Economia. Temas ainda hoje, quase dois séculos depois, tão atuais.
Entre as propostas surpreendentes para a época, ele sugeria a transferência da capital do Rio de Janeiro para o Interior. "Parece-nos também muito útil que se levante uma cidade central no interior do Brasil para assento da Corte ou da Regência,
que poderá ser na latitude, pouco mais ou menos de 15 graus, em sítio sadio, ameno, fértil e regado por algum rio navegável".
Pelo social e pelo país - Bonifácio baseava a necessidade de acabar com o trabalho escravo em diversos pilares. Um deles era o da justiça social – algo que soa ainda tão moderno, mas já constava de seus apontamentos em 1820, quando libertou
os escravos do seu sítio de Outeirinhos, em Santos. Com essa ideia, mostrou sua face jurista e introduziu a questão social na justiça brasileira.
Em carta daquele ano, escreveu a Tomás Antônio, de Vila Nova Portugal: "Já estou feito lavrador de quatro costados e já cultivo, ut prisca gens mortalium (como a antiga raça dos mortais), com as próprias mãos a minha horta (...) trabalho de
dia e de noite e tudo isso com gente livre e alugada, sem precisar de escravatura que detesto e querendo dar a esta gente o exemplo do que devem fazer".
Outra razão para a libertação dos escravos era manter a integridade nacional, o que considerava impossível em um país onde o homem é inimigo do homem.
"Como poderá haver uma constituição liberal e duradoura num país continuamente habitado por uma multidão imensa de escravos brutos e inimigos?", questionava nas instruções enviadas aos deputados paulistas em Lisboa. "Se a lei defender a
propriedade, muito mais deve defender a liberdade pessoal dos homens, que não podem ser propriedade de ninguém".
Querendo construir uma nação com homens livres, pede, em 1822, que trabalhadores rurais venham de Londres se estabelecer no Brasil. Sua intenção era mostrar a vantagem do trabalho livre sobre o escravo – e aí entra o terceiro ponto de sustentação
de sua tese: provar aos senhores que era mais vantajoso e economicamente mais produtivo. "Causa raiva ou riso ver vinte escravos ocupados em transportar vinte sacos de açúcar que podiam conduzir uma ou duas carretas bem construídas com dois bois ou
duas bestas muares".
Bonifácio sabia que a evolução do País passava também pelo fim da escravidão, que deixava os donos de escravos acomodados sem perceber a necessidade de aprimorar sua indústria e lavoura. "O luxo e a corrupção nasceram entre nós antes da civilização
e da indústria; e qual será a causa principal de um fenômeno tão espantoso? A escravidão, Senhores, porque o homem que conta com os jornais de seus escravos vive na indolência, e a indolência traz todos os vícios após si" (jornais eram uma espécie
de rendimento que senhores obtinham alugando seus escravos para outros ofícios e vivendo dessa renda).
Como havia 300 anos que o tráfico de escravos era o motor da economia, Bonifácio enfrentou todo tipo de resistência, já que essa era também a base das relações sociais.
Há 190 anos, em 1823, preparou um documento para entregar à Assembleia Constituinte: sua Representação sobre a Escravatura, que previa uma integração gradual dos negros na sociedade. "A necessidade de abolir o comércio de escravatura, e de
emancipar gradualmente os atuais cativos é tão imperiosa que julgamos não haver coração brasileiro tão perverso, ou tão ignorante que a negue, ou desconheça. (...) Qualquer que seja a sorte futura do Brasil, ele não pode progredir e civilizar-se
sem cortar, o quanto antes, pela raiz, este cancro moral, que lhe rói e consome as últimas potências de vida, e que acabará por lhe dar morte desastrosa".
Previa o fim do tráfico em uns cinco anos, recompensando senhores que concedessem alforria, obrigação de sustento aos escravos velhos e doentes incuráveis e, ainda, uma espécie de licença-maternidade em pleno século 19: após o parto, as escravas
teriam um mês para a convalescença e durante um ano não poderiam trabalhar longe dos filhos.
Pela integração dos nativos - "O outro objeto que me tem merecido muita meditação e desvelo são os pobres índios, assim gentios como domésticos; para que a raça desgraçada desta mísera gente não desapareça de todo, é mais que tempo que o
Governo pense seriamente nisto", escreveu, ainda em Portugal, em carta ao Conde de Funchal (dom Domingos António de Sousa Coutinho), em 30 de julho de 1813.
O tema também foi objeto de um documento para apresentar à Assembleia Constituinte, onde Bonifácio sugeria aprimorar os métodos jesuíticos de aproximação, fazendo amizade. "O Governo do Brasil tem a sagrada obrigação de instruir, emancipar, e fazer
dos Índios e Brasileiros uma nação homogênea e igualmente feliz...".
Ele acreditava que as atitudes violentas dos índios se justificavam pela forma como eles foram tratados pelos colonizadores, com "o desprezo com que geralmente os tratamos, o roubo contínuo de suas melhores terras, os serviços a que os sujeitamos,
pagando-lhes pequenos ou nenhum jornais, alimentando-os mal, enganando-os nos contratos de compra e venda que com eles fazemos, e tirando-os anos e anos de suas famílias e roças para os serviços de Estado e dos particulares; e por fim
enxertando-lhes todos os nossos vícios e moléstias, sem lhes comunicarmos nossas virtudes e talentos".
Como virtude, Bonifácio entendia que era preciso mostrar aos índios as coisas boas da civilização, como os benefícios da eletricidade e do gás inflamável.
O político demonstrava conhecer os costumes dos nativos, pois ressaltava que os trabalhos agrícolas não lhes eram a melhor indicação, considerando sua cultura de liberdade e nomadismo, sendo mais propício empregá-los como tropeiros e guardadores de
gado.
Mas nem todos concordavam com a capacidade de civilização dos índios – para os colonos, o melhor era a exterminação.
Bonifácio defendia a miscigenação, sugerindo prêmio a "todo cidadão brasileiro ou branco, ou de cor, que se casar com índia-gentia".
As representações de Bonifácio não chegaram a ser apresentadas à Assembleia Constituinte, que foi dissolvida em novembro de 1823. Mas suas ideias permaneceram e o futuro mostrou que elas indicavam o caminho certo para a criação do Estado
Brasileiro.
Ilustração: cartunista DaCosta, publicada com a matéria
O que ele disse
"É tempo, e mais que tempo, que acabemos com um tráfico tão bárbaro e carniceiro"
"Os negros são homens como nós"
"O mulato deve ser a raça mais ativa e empreendedora, pois reúne a vivacidade impetuosa e a robustez do negro com a mobilidade e a sensibilidade do europeu"
"... cumpre fazê-los primeiramente dignos da liberdade: cumpre que sejamos forçados pela razão e pela lei a convertê-los gradualmente de vis escravos em homens livres e ativos. Então os moradores deste Império, de cruéis que são em grande parte
neste ponto, se tornarão cristãos e justos e ganharão muito pelo andar do tempo, pondo em livre circulação cabedais mortos, que absorve(m) o uso da escravatura; livrando as suas famílias de exemplos domésticos de corrupção e tirania; de inimigos
seus e do Estado; que hoje não têm pátria, e que podem vir a ser nossos irmãos e compatriotas"
Sobre os índios: "O homem primitivo não é bom, nem mau naturalmente, é um mero autômato, cujas molas podem ser postas em atuação pelo exemplo, educação e benefícios"
Bibliografia >> José Bonifácio, História dos Fundadores do Império do Brasil, Octávio Tarquínio de Sousa
>> Projetos para o Brasil, José Bonifácio de Andrada e Silva – Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro, organização Miriam Dolhnikoff
>> Construção da Nação e Escravidão no Pensamento de José Bonifácio, Ana Rosa Cloclet da Silva
>> José Bonifácio e a Unidade Nacional, Therezinha de Castro
>> José Bonifácio, Primeiro Chanceler do Brasil, João Alfredo dos Anjos
>> Grandes Personagens da Nossa História, editora Abril |
[*] Viviane Pereira é
jornalista e escritora
Imagem: reprodução da página com a matéria original
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