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O lado oculto do patriarca
Viviane Pereira [*]
Colaboradora
Seu cabelo estava preso em um rabo de cavalo na nuca. Em plena madrugada, sobre uma mesa, ele dançava o lundu, dança típica do
Brasil colonial.
Quem observava o boêmio, bom de copo e apaixonado por mulheres, talvez não imaginasse estar diante do homem que entraria para a História como Patriarca da Independência, cavalheiro sério que manejava bem a espada e,segundo rumores, tinha matado
quatro em duelo.
José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) era tão multifacetado na vida pessoal como em sua carreira, que reuniu experiências a princípio bastante opostas quanto atuar como estadista e poeta. Ele tinha seu truque para garantir uma imagem de
seriedade à altura de suas responsabilidades: com o rabicho de cabelo oculto sob a gola da jaqueta, o contador de piadas dava lugar ao político excepcional que ajudaria a escrever a história do Brasil.
O homem baixo e magro, com olhos miúdos e brilhantes, de rosto pequeno com um nariz curvo e ar de aristocrata foi pensador, cientista, economista, filósofo, literato, historiador, geólogo, mineralogista, militar, agricultor e advogado.
A história do principal conselheiro do príncipe regente (e depois imperador) D. Pedro I teve início em Santos, há quase dois séculos e meio e 59 anos antes da proclamação da Independência.
Em 13 de junho de 1763, nascia José Bonifácio. Ele foi o segundo filho do coronel Bonifácio José Ribeiro de Andrada e Maria Bárbara da Silva, família próspera de comerciantes que enriqueceu trocando ouro por mercadorias e escravos. O avô José
Ribeiro de Andrada deixou seu comércio em Portugal e atravessou o oceano em direção ao Brasil, na corrida pelo ouro de Minas Gerais.
A prosperidade da família Andrada permitiu enviar quatro dos dez filhos de Bonifácio José para Portugal. Com 20 anos, José Bonifácio foi estudar na Europa, formando-se em Direito, Filosofia e Matemática pela Universidade de Coimbra. Com bolsa para
estudar Química e Mineralogia, passou anos viajando: esteve na França, Alemanha, Bélgica, Itália, Áustria, Hungria, Suécia e Dinamarca.
Além do conhecimento adquirido nas universidades europeias, a experiência conquistada em suas viagens lhe serviu de base para desenvolver carreiras promissoras.
Apesar de tal capacitação, que seria excepcional até para os dias de hoje, José Bonifácio era um homem de gostos modestos. Sua casa, no centro da cidade, era simples e rústica, com mesa de pinho, bancos de pedra e cadeiras com assento e encosto de
palhinha.
"Senhor doutor da roça, vossa mercê me conhece há muito tempo, e sabe que uma amável e virtuosa companheira que tenho, um verdadeiro amigo (animal bem raro em nossos dias) e alguns bons livros são as únicas necessidades da vida que não posso ainda
escusar", dizia.
Na jaqueta surrada, sobressaía a condecoração da Ordem de Cristo, reconhecimento pelos relevantes serviços prestados a Portugal. No bolso, o símbolo da magistratura.
Um modesto agricultor - "Vou deitar-me aos pés de Sua Alteza Real (o príncipe regente D. João) para que me deixe ir acabar o resto dos meus cansados dias nos sertões do Brasil a cultivar o que é meu", descrevia em carta, revelando sua
vontade para o futuro. Esse era o pedido simples de um dos cientistas mais respeitados e admirados da Europa, que nem sequer imaginava que ainda teria muito a contribuir para a História.
Mas, naquele momento, o sonho de Bonifácio era ser um modesto agricultor em Santos, em seu sítio, em Outeirinhos. Pelo menos é o que se sabe oficialmente. Porque havia indicações de que ele tentou, sem sucesso, que o governo o indicasse para
capitão-general e governador.
Em 1819, quando conseguiu autorização do rei para voltar ao Brasil, veio para Santos, sua cidade natal, junto com a esposa, a irlandesa Narcisa Emilia O’Leary de Andrada, e suas filhas. Uma delas era Narcisa Cândida de Andrada, a Narcisinha, que
teve fora do casamento, mas foi criada pela esposa Narcisa. Na bagagem, a biblioteca com 6 mil volumes e sua coleção de minerais.
Seguindo seus conceitos abolicionistas, José Bonifácio não tinha escravos para ajudá-lo na agricultura que desenvolvia em Outeirinhos. O local sediava diversas festas, saraus com música e canto e onde sua esposa, Narcisa, com voz de contralto,
cantava modinhas acompanhada de guitarra. Ele aproveitava para dançar o lundu.
Ilustração: cartunista DaCosta, publicada com a matéria
Pai de família - Órfã de pai e mãe, Narcisa Emilia O’Leary de Andrada foi criada por uma tia, Isabel O’Leary. Com ela foi para Portugal, onde conheceu, em 1788, José Bonifácio.
Casaram-se em 31 de janeiro de 1790.
Naquele mesmo ano, ele começou uma viagem pela Europa que duraria dez anos. Grávida, Narcisa ficou em Portugal, conseguindo ir ao encontro do marido em 1797. O casal retornou a Portugal em 1800, onde ficou até 1819, quanto voltou ao Brasil.
Viveram juntos por 39 anos, até 1829, quando ela morreu voltando de navio da França, onde ele estava exilado.
Além de Narcisinha, José Bonifácio teve ainda outra filha fora do casamento e, reza a lenda, inúmeras amantes. Inclusive muitas amantes negras e mulatas, o que despertava espanto em um País escravocrata. "As mulheres têm sido a peste da minha vida
– amo-as, mas não as estimo muito", escreveu.
Sua paixão pelo feminino era registrada em seus escritos, como quando comenta sobre as mulheres de Sorocaba (SP): "Verdadeiros tipos de beleza que fazem o sexo paulista citado em todo Brasil, por sua figura esbelta e cor de jasmim, e sobretudo pela
amabilidade e bondade de seu coração e caráter".
Também demonstrava seu interesse pelo sexo oposto nas cartas enviadas ao amigo e confidente que morava na França, Antônio Menezes de Vasconcellos Drummond. "Há raparigas que com seus olhos maviosos, belo corpo e longos cabelos negros são muito
interessantes".
De uma das amantes, a francesa Fanchette, diz quando sabe que ela está pobre e viúva e precisa de ajuda. "Farei todos os esforços para a apertar ainda uma vez nos meus braços".
O conceituado político era um homem bastante sedutor, que encantava as mulheres. Era também querido por jovens e crianças, como descreve uma de suas admiradoras, a inglesa Maria Graham, que se viu seduzida por Bonifácio e dizia que ele era popular
entre a gente pequena. Apesar das aventuras, revelava em poesias seu amor pela esposa.
"Cristal o colo, de ébano
as madeixas;
Lindos jasmins os
cândidos dentinhos;
Nos rubros beiços
trazes mel e leite;
Faz deste mundo Céu
em seu sorriso"
Fachada da casa 109 da Rua 15 de Novembro, no Centro de Santos, onde José Bonifácio nasceu e morou. O imóvel era do coronel Bonifácio José, pai do Patriarca, e foi adquirido pelo genro Francisco
Xavier da Costa Aguiar, após a morte do proprietário. A fachada recebeu placa e busto em homenagem a José Bonifácio (N.E.: a placa está no imóvel que substituiu a casa original, marcando o local
em que ela existiu)
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Suas frases
"Um sabichão, quando declama, um imperador quando responde, uma rapariga quando namora em pé, têm todos uma certa linha de posição do corpo, que lhes é própria, e direi mais muito necessária ao seu fim"
"Os que não têm medo comandam os que têm"
"O meu código tem poucas leis: razão, sentimento, imaginação, variedade e melodias; isto bem meditado, junto com a lição dos ótimos poetas, vale mais que uma longa enfiada de preceitos inúteis"
"O calor entre os homens sobe à cabeça, entre as mulheres segue caminho oposto"
Outeirinhos, onde ficava o sítio de Bonifácio, era afastado da vila e localizado no cais, onde hoje está a imagem de Nossa Senhora de Fátima. O cartão-postal, do acervo de Laire Giraud, é de 1920 e
reproduz o quadro de Benedicto Calixto.
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Bibliografia >>1822, de Laurentino Gomes
>>Projetos para o Brasil, José Bonifácio de Andrada e Silva – Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro
>>Construção da Nação e Escravidão no Pensamento de José Bonifácio, de Ana Rosa Cloclet da Silva
>>José Bonifácio e a Unidade Nacional, de Therezinha de Castro
>>José Bonifácio, Primeiro Chanceler do Brasil, de João Alfredo dos Anjos
>>Site obrabonifacio.com.br, de Jorge Caldeira
>>Narcisa Emília, uma Irlandesa na Vida de José Bonifácio, texto de Wilma Therezinha Fernandes de Andrade na Revista Leopoldianum, da Universidade Católica de Santos, de 2004. |
[*] Viviane Pereira é
jornalista e escritora
Imagem: reprodução da página com a matéria original
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