Ilustração do cartunista Seri publicada com o
artigo de Nelson Salazar Marques em 20/1/1990
IMAGENS DE UM MUNDO SUBMERSO
Santos, os anos incertos e os anos frenéticos
Nelson Salasar Marques (*)
Colaborador
Um certo dia, quando eu tinha dois anos de idade, na Rua
Cristiano Otoni, no Bairro Chinês, meu avô me chamou e me deu uma rodelinha de ovo cozido. Eu triturei aquela massa perfumada com os poucos dentes
que então deveria ter e nunca mais me esqueci da figura do meu avô. Achei conveniente relatar o episódio acima para justificar a extrema clareza com
que me chegam, do fundo daquele dia de 1937 ou 38, as imagens da primeira visita de Getúlio Vargas a Santos, já na qualidade de ditador. Isto ajuda
a explicar o extraordinário mecanismo da memória e porque muita coisa fica e muita coisa não fica é um mistério perturbador nesse mecanismo de
retenção e descarte de imagens; mas parece evidente que a memória está associada a sensações gustativas e visuais.
Mas voltemos a Getúlio Vargas. Durante todo o dia, as pessoas só falavam de Getúlio e
todos queriam ver Getúlio: parecia uma romaria. Lembro-me que a multidão se esticava ao longo da Avenida Epitácio Pessoa - sei que era esta avenida
porque eu via ao fundo as torres da Igreja do Embaré. Meu pai me suspendeu para que eu visse Getúlio, e naquele mar movediço de cabeças eu vi o
ditador. Todos se descobriram de seus chapéus à sua passagem, mas um dos espectadores, ou porque estivesse emocionado, ou porque quisesse demonstrar
protesto, manteve o seu chapéu sobre a cabeça: foi o bastante para que levasse um violento safanão desferido por um policial. E então eu vi Getúlio
vir vindo num corredor aberto na multidão por soldados que iam à frente. Lembro-me bem que ele estava de terno de linho branco e acenava o chapéu
para o povo. Eu acho que foi a imagem do homem brandindo no ar aquele chapéu branco que fez com que eu nunca me esquecesse daquela cena.
Àquela altura ele ainda era um homem relativamente gordo, o seu rosto também era gordo
e luzidio. Depois ele entrou numa daquelas casas assobradadas com escada exterior que leva ao primeiro pavimento, casas típicas da década de 20.
Seria hoje uma daquelas residências que vão entre o Chão de Estrelas e a Rua Padre Visconti. O povaréu batia palmas educadamente, como se estivesse
num teatro assistindo a uma ópera. Nada daquela euforia ululante e gritos alucinados. A presença de Getúlio, além de respeito, inspirava certo
temor. As pessoas esperaram por muito tempo, julgando, talvez, que ante tantos apelos, ele se dignasse a aparecer no terraço da casa. Mas Getúlio
não apareceu e todos nós fomos embora. O que se passou depois, os comentários de meu pai em casa, minha memória não reteve: foi um filme não
revelado.
Este foi o meu primeiro encontro com Getúlio Vargas, mas a sua presença iria marcar as
nossas vidas. Mas foi na escola que eu senti a sua força, uma força de presença ubíqua, blandiciosa e sorrateira: era o Estado Novo em ação nas
escolas brasileiras, e, evidentemente, as escolas de Santos não escaparam a esse processo modelador de consciências, uma espécie de lavagem cerebral
cabocla.
Na época tudo era tão natural, mas analisado hoje, na perspectiva do tempo, é que se
pode avaliar a força avassaladora daquele mecanismo em ação. Restrinjo-me apenas à realidade do Grupo Escolar Cidade de Santos, ali pelos idos de
1940 e 41. Nós chegávamos de manhã cedo, ali pelas sete horas, vergados ao peso de malas enormes, e íamos para o pátio. Não havia correrias nem
gritos. Então tocava uma sirene e a garotada entrava em fila; eram filas simetricamente organizadas de acordo com os frisos do chão. Alguém batia os
dedos em tábua contra a palma da outra mão e todos nós nos abaixávamos rente ao solo para depositar as malas. Ficávamos nessa posição por um longo
tempo, olhos grudados no cimento avermelhado do piso, esperando pelo sinal de levantar. Então, com as mãos livres, todos nós entoávamos hinos
patrióticos com grande ardor.
Depois, outro estalar de mãos e a garotada se abaixava e prontamente, segurando a alça
de couro da mala, esperava pelo sinal de reerguer. O sinal vinha e todos se aprumavam, corpos eretos, vontades disciplinadas. Cada fila das
extremidades punha-se em movimento, em passo cadenciado, um passo militar, e entrava pela porta de sua sala: a entrada para as aulas do Cidade de
Santos ali por 1940 se assemelhava muito a um movimento militar de tropas-mirins. A saída tinha um ritual mais ameno, mas o passo militar e
cadenciado era o mesmo até os alunos alcançarem as saídas das ruas Torres Homem e Nabuco de Araújo.
Na sala de aula, a todo o momento, referências aos esforços do Estado Novo, e tudo era
pretexto para a professora exaltar a nova ordem do País. Gravuras das Edições Melhoramentos, expostas em classe para uma descrição, traziam sempre
figuras da vida urbana, visões de cidades modernas, e, então, toda aquela parafernália era associada às conquistas trazidas por Getúlio ao País. O
próprio material didático parecia elaborado em função da exaltação ao Estado Novo. Eu devo ter escrito muita besteira sobre aquilo tudo (eu já então
adorava escrever), e é pena que nada tenha ficado daquele tempo perenizado no papel.
Mas era na Semana do Estado Novo que o Cidade de Santos se ascendia e agitava: havia
concursos de descrição e de desenhos sobre o regime "que havia salvado o País". Lembro-me de um desses desenhos e do nome de seu autor: Ayrton.
Ayrton queria ser aviador e num pedaço de cartolina jogou os seus sonhos dentro de um avião cruzando os céus com os dizeres: "Eu quero ser aviador
para destruir os inimigos de meu País".
A professora soltou um grito, emocionada, e foi chamar o diretor. Ambos leram os
dizeres em voz alta para toda a classe. Vai senão quando um japonês de nome Aracati levanta a voz num impulso natural e pergunta: "Que inimigos?" O
pobre japonês ficou de castigo até o fim da aula. Pelos corredores era normal ver-se aluno chorando de dor por castigos recebidos, e eu próprio, por
um triz, escapei de um deles. Reclamação, nenhuma: pai de aluno tinha medo de transpor os umbrais daquela escola.
Coisa interessante e pouco dita: até ali por fins de 1941, quase todo o Brasil era
nazista e a favor de Hitler, e eu cheguei a testemunhar, em São Paulo, no Sanatório Esperança, ali no Morro dos Ingleses, uma equipe inteira de
médicos celebrar com euforia e gritos o afundamento do porta-avião inglês Ark Royal pelos submarinos alemães. E Getúlio nunca escondeu a sua
simpatia pela causa dos alemães. A partir de 1942 e 43, com o enfraquecimento do ímpeto alemão e a adesão forçada do Brasil à causa dos Aliados, o
Estado Novo arrefeceu e a sua influência nas escolas praticamente desapareceu.
Ó Brasil dos extremos, Brasil da escola militarizada do início da década de 40 e da
escola baderneira da década de 80. Ó Brasil, porque não aprende a conviver com o meio termo saudável e estabilizador, com a escola racional,
disciplinada e responsável? Ainda há gente que acha que modernidade é bagunça, idéia muito aceita por países do Terceiro Mundo.
Bondes (com reboque) na Praça Mauá, em 1929: um local de intensa agitação apenas de
dia
Imagem cedida a Novo Milênio pelo pesquisador Allen Morrison, de New
York/EUA
Fenômeno interessante ocorreu em Santos e que começou a se evidenciar a partir de fins
da década de 30 até meados da de 50, mas como a sua evolução foi lenta e sorrateira, dele poucos têm noção nítida: foi a fixação e prevalência dos
centros de lazer de uns sobre outros e o seu poder de mobilidade muitas vezes ocasionado por fatores extemporâneos. Esses centros de lazer eram as
praças públicas a que aqui eu chamarei de "as três irmãs": a Praça Mauá, a dos Andradas e a Ruy Barbosa.
Ainda peguei o tempo em que a Praça dos Andradas impunha-se sobre as demais com a sua
força de atração noturna. Ali ainda cheguei a ver pessoas andando em fileiras nas noites quentes de verão, quando ficar em casa e dormir cedo era um
tormento. Aquilo se assemelhava muito ao que ainda se vê hoje em pracinhas do Interior. Os rapazes metiam-se em ternos de linho branco,
impecavelmente vestidos, e os cabelos lustrosos de brilhantina, todos glostorados, cabelos que chegavam a rebrilhar ao impacto da luz: pareciam
cantores de tango.
Mas esse predomínio da Praça dos Andradas era explicável. Ela era uma praça arborizada
e bem cuidada e a sua copa fechada e sussurrante, à semelhança de um grande dome, retinha os raios do sol durante o dia, preservando aquele
frescor noturno que me chapava o rosto de criança, uma brisa que varou as décadas e me chega agora até onde estou. Não esquecer que essa praça abria
a sua boca para o Bairro Chinês, o temido Bairro Chinês, que se arremessava nela com frenesi e volúpia. O Bairro Chinês era a sua força
catalisadora. E o bonde 1, indo e vindo como lançadeira incansável no tear da geografia da Cidade de Santos, ia despejando na praça vicentinos
deslumbrados.
Mas era sem dúvida a presença física do Cine Teatro Guarany - ó, prefeita Telma de
Souza, salve o Guarany! - que impregnava a Praça dos Andradas daquele toque que hoje, à distância, sinto quase místico, porque ele dava àquelas
tardes dominicais da praça um ar de vaudeville alegre e barulhento. Nenhum cinema de Santos concorreu com o Cine Guarany em popularidade.
Íamos em bandos pelas ruas Visconde do Embaré e São Leopoldo ver os filmes de Tex Ritter, do Charles Starret e do Tom Mix. O Teatro Guarany era uma
casa singular e o que eu vou contar aqui irá deixar muita gente em dúvida quanto à sua veracidade, mas talvez alguma boa alma daquele tempo venha a
público corroborar a minha versão.
Por detrás da tela havia uma salinha e para lá eram conduzidos os retardatários quando
a sala principal estava cheia; e então o telão era molhado por trás de tal maneira até se tornar translúcido e permear as imagens cinematográficas
para a salinha onde estávamos. Naturalmente que, vistas de trás, pelo avesso, as imagens também vinham pelo avesso; quando um cavalo galopava para o
lado direito, lá no outro lado ele passava a galopar para o lado esquerdo; o pior, entretanto, eram as letras que chegavam do outro lado invertidas.
Os adultos protestavam, esperneavam e não podiam conceber aquele fenômeno tão simples. Para nós, os garotos, dava tudo no mesmo, porque ali ninguém
sabia ler.
Então acontecia uma coisa interessante e pitoresca que ainda hoje me faz rir. Com o
passar do tempo, a luz forte que ia projetando as imagens ia secando o telão por partes e do outro lado as imagens, sem poderem atravessar o tecido
da tela, começavam a se fragmentar: quando o cavalo e o mocinho penetravam na parte seca da tela eles desapareciam, às vezes completamente e às
vezes parcialmente, e não era raro ver-se um cavalo correndo sobre duas pernas ou um braço que segurava um revólver desaparecer deixando a arma
suspensa no ar. Então nós gritávamos em protesto e um homem apressado entrava na sala com um balde de água e molhava a tela; mas, ou porque o
impetuoso homem fizesse a sua função com mais zelo do que o necessário, ou porque a tela de pano devesse ter alguns buracos, o fato é que as pessoas
do outro lado gritavam que estava chovendo dentro do cinema e mandavam fechar as janelas.
Mas a década de 40 trouxe o declínio da Praça dos Andradas como atração noturna: surge
então o predomínio incontestável da Praça Ruy Barbosa, um predomínio que iria durar até o início da década de 50, quando a Via Anchieta, já
consolidada como a grande via de lazer, iria despejar em Santos os paulistanos, transferindo, definitivamente, para a orla da praia, a vida noturna
da Cidade.
Mas, a que se deveu essa ascensão da Praça Ruy Barbosa? A um conjunto de fatores que,
isoladamente, pouco teriam influído, mas no conjunto criaram no novo Centro um pólo de atração dentro da noite santista. O Rádio-bar, lançando
música na praça, o Café Caravelas, o Bilhar Aristocrata, o Termômetro Esportivo do Paisano, e, em função disso, o cine Paramount desbancando o Cine
Guarany.
O Santos Futebol Clube começava a emergir do esquecimento a que fora relegado após o
título de 35 e as suas vitórias iam trazendo grupos de torcedores que se postavam à noite diante do Termômetro Esportivo... nomes como os de
Pinhegas, Odair, Artigas eram ouvidos com freqüência. E ser boêmio, naquela época, era chegar em casa de madrugada e dizer aos amigos na escola e no
trabalho que havia passado a noite jogando esnúquer no Aristocrata depois de ter assistido a um filme no Cine Paramount: isto dava muito status
ao jovem. Quantas vezes, dentro da noite silenciosa, ao passarmos no bonde 19 rumo à casa depois das aulas, nós ouvíamos aquele estalido seco das
bolas de marfim que ressoava por toda a praça; e o sonho maior de um adolescente era um dia subir aquela escadinha mágica, pegar um taco e socar as
bolas umas contra as outras naquelas mesas canadenses que vinham de New Brunswick.
Por essa altura, o Gonzaga não tinha grande apelo em termos de footing e
convívio demorado: a Praça da Independência era lugar de passagem, uma praça escura e sem atrativos. A fonte luminosa, com as suas luzes, chamava
mais as crianças; nessa orla da praia, os cassinos imperavam mas eles formavam um círculo restrito e fechado. Havia algum interesse nos grandes
figurões que chegavam de São Paulo em limusines... havia os grandes nomes... Francisco Alves, Orlando Silva, Tito Schipa, da Itália...
À porta, havia uma fiscalização singular: todos tinham de provar à entrada em que ramo
de atividade trabalhavam, e se fossem bancários ou contadores não tinham acesso àquele reino de jogatina. E, coisa extraordinária para alguém de
nossos dias; não consta que houvesse suborno; as pessoas aceitavam a determinação como algo normal pertencente à ordem vigente estabelecida e à qual
tinham de se enquadrar. Aquilo era admirável e foi essa perda da honra pessoal e do self-respect [N.E.:
auto-respeito] que iria degradar a sociedade brasileira através da incorporação da corrupção à escala de valores do
dia-a-dia.
Muito mais tarde, em minhas andanças pela França, eu iria me defrontar com sociedades
mais saudáveis que ainda mantinham essa noção de honra pessoal como valor inalienável. Foi numa noite de 1954, na Gare de Austerlitz, ao pedir ao
funcionário do guichê que me desse uma passagem no Expresso Paris-Lisboa na mesma cabine do romancista inglês Sommerset Maugham. Ele me atendeu o
pedido e então eu coloquei uns dois ou três dólares sobre o balcão, ao que ele disse muito cortesmente: Pas necessaire (não há necessidade
disso). Eu fiquei embaraçado e por alguns instantes senti vergonha de ser a extensão de uma sociedade corrompida que acha que tudo pode ser
comprado.
Mas, nesse quadro extremamente movediço de esplendor e decadência, a Praça Mauá sempre
teve posição singular: o seu esplendor sempre brilhou com a luz do sol e sempre morreu com a chegada da noite. Nunca foi praça de notívagos e os
seus caminhantes noturnos eram apressados e de passagem: os seus objetivos nunca residiam ali. Mas a luz da manhã trazia a sua força - como ainda
hoje traz - retemperada de uma noite bem dormida. Através das grades do pátio do Colégio do Carmo, dos padres carmelitas, ali na Rua Augusto Severo,
nós tínhamos da Praça Mauá um descortino completo: ela regurgitava muito mais do que hoje e fervia nas pessoas que se cruzavam. O tráfego pesado
entrava na Rua Augusto Severo porque aos bondes de reboque não era permitido contornar uma praça nobre como a Praça Mauá.
Por essa época, as pessoas vestiam-se bem, um gosto individualizado; havia, é certo,
muitos modismos de Hollywood e era bem comum a gente encontrar numa das balconistas das Lojas Slopper aquele ar lânguido de Claudete Colbert. As
mulheres andavam de salto alto, sempre de saia e vestido, e não tinham essa cor encardida que muitas têm hoje, em virtude da pele ressequida e da
maceração da seiva cutânea pela longa exposição aos raios solares; tinham uma pele fresca e de aparência saudável de penugem de pêssego e isso
acrescentava à beleza visual.
Os jeans ainda estavam no porão da história futura e sequer ameaçavam com a sua
standardização [N.E.: padronização] do mau-gosto coletivo. Quando ainda hoje vejo
uma garota apertada igual a uma lingüiça dentro de uma calça jeans, os movimentos tolhidos, mal podendo se abaixar, não atino com a razão
daquele sacrifício; e quando penso no ideal greco-romano de túnicas e roupas soltas, cuja função única era liberar o corpo para os seus movimentos,
então torna-se muito difícil associar a nossa época com a visão de modernidade.
Mas revenons à nos moutons, retomo o assunto: a Praça Mauá era a grande
passarela da beleza feminina - durante o dia a Praça Ruy Barbosa era um reduto masculino, e sob certos aspectos ainda o é hoje. Do ventre das
grandes lojas e magazines saíam, ali pelas 11 horas e mais tarde às 5, semelhantes a pássaros chilreadores, bandos de caixeirinhas que, já livres de
seus uniformes, eram absorvidas pela praça; e também elas se vestiam bem. Esse espetáculo de graça e beleza podia ser observado também em São Paulo,
no Viaduto do Chá e na Rua Barão de Itapetininga.
Bonde 3 na praça Rui Barbosa, em 1939: área começava a se transformar em reduto boêmio
Naquele tempo, vestir-se bem para qualquer mulher era ponto de honra; mulher podia
privar-se de tudo, racionar alimento, procurar escola barata, mas vestir-se bem era essencial. E não era raro num bonde operário da linha 19 ou 37 a
gente sentir no ar aroma de perfumes exóticos, até mesmo franceses, vindo provavelmente de uma caixeirinha que houvesse se privado de uma parte de
seu salário para adquiri-los, perfumes que nos mergulhavam em convolações repetidas e nos transportavam a mundos paradisíacos e sensuais de deus
Eros.
Exemplo do que digo e que bem representa a mentalidade daquela época era a velha Gina.
A velha Gina morava num porão úmido e infecto num canto do Macuco, mas as suas três filhas saíam à rua vestidas como rainhas e fariam boa figura em
qualquer ambiente, desde que ficassem com as suas bocas fechadas, é claro. Ainda as vejo agora, belas figuras de mulher, de volta à casa, trazendo
nas mãos os sapatos de salto alto e pulando valas fétidas com muito cuidado e arte para não sujar naquele lamaçal a barra do vestido que usariam no
baile do dia seguinte.
Mas era evidente que este querer vestir bem as filhas tinha uma finalidade e a
finalidade maior era caçar maridos. A realidade de Santos era ainda uma realidade portuguesa impregnada de rezas, terços, trezenas a Santo Antônio,
ladainhas e missas. A missa diária era ainda um hábito para muitos, e casar filha a ambição maior. Casar uma filha era não vê-la "falada". Ter filha
"falada" era pior do que morrer de tuberculose ou câncer. E o que era ser "falada"? Era ser vista, sozinha, junto de homem, falando com homem.
Entrar ou sair desacompanhada de carro que tivesse homem, a qualquer hora do dia ou da noite, era estigma mortal, pior do que doença contagiosa...
Meu Deus! Aquilo pegava.
Moça "direita" não procuraria a sua companhia e à "casa de família" dificilmente teria
acesso. Eram marginalizadas e sobreviviam socialmente agregando-se umas às outras e formando pequenas células estanques, o chamado grupo das
"faladas". Esse grupo fazia o encanto das vizinhas e das velhas faladeiras e tornava-lhes a vida excitante e leve. E não era raro ver-se homens
considerados sérios exercitando-se nessa arte pouco nobre.
Mas então aconteceu algo que veio quebrar o remanso, assim uma como que dispersão de
casa de marimbondos: foram as novelas radiofônicas. E, em Santos, a PRG-5 deu a esses relatos romanescos um alto padrão, que ainda hoje espanta a
quem pare para considerar o fenômeno. A mulherada grudava os ouvidos nas caixas de madeira dos rádios receptores com frenesi e êxtase, e homem que
se prezasse não deveria ouvi-las, mas muitos se esgueiravam, como quem não quer nada, e se postavam pelas proximidades: novela era coisa de mulher.
Elas eram bem mais excitantes, sob determinado aspecto, do que as novelas televisivas de hoje, porque na falta de uma visualização que esgota a cena
e empobrece o tecido dramático, aquelas novelas sugeriam um mundo de possibilidades trabalhadas por imaginações férteis e ardentes. Ouvir é
infinitamente mais rico do que ver.
Mas essas novelas traziam em seu bojo algo de inusitado: situações sentimentais
perturbadoras envolvendo amantes e triângulos amorosos. E eu imagino como devia ser terrível para aquelas famílias santistas da década de 40,
transplantadas de suas aldeias portuguesas para aqui com todos os seus tabus e princípios religiosos ainda intactos, serem expostas àquelas
situações embaraçosas. A década de 50 traria a televisão e desintegraria em alguns anos todo um sistema ético-moral consolidado ao longo de séculos.
E nessa esteira de ebulição e reavaliação de valores cristalizados surge a Faculdade de Filosofia com os seus cursos superiores que dariam a Santos
uma nova dimensão no campo da cultura.
Então Santos começou subitamente a "ferver" em bloco e foi erguendo o palco por onde
passaram a desfilar para uma platéia embevecida jornalistas do porte de Geraldo Ferraz e Rubens Ulhoa Cintra, políticos como Sílvio Fortunato e João
Carlos de Azevedo, um intelectual da envergadura de Álvaro Augusto Lopes, historiadores como Costa e Silva Sobrinho e Francisco de Marchi... No
teatro, Oscar von Pfhul, Sofredini, Plínio Marcos, Neide Veneziano e... Cacilda Becker! E, coisa extraordinária, com as artes reergueram-se todos os
esportes, surge o novo Santos Football Club, a Era Pelé e De Vaney, o maior cronista esportivo que já teve o Brasil.
Mas eu quero falar aqui da Faculdade de Direito e do Centro dos Estudantes. A essas
casas deveu Santos a efervescência no campo das idéias e debates. Era comum, por essa época, passarem pelo auditório da Faculdade de Direito as
maiores figuras do País, membros da Academia Brasileira de Letras, como Pedro Calmom, Peregrino Júnior, o terrível Agrippino Grieco; em economia,
homens da escola monetarista como Aliomar Baleeiro, Alberto Deodato, Eugênio Gudin, economistas do Iseb... Em 1960 eu era estudante e estava lá; nós
conversávamos com essa gente toda. Conversei com Le Corbusier em pleno auditório da Faculdade de Direito.
Naquela época, era comum a um estudante de Direito conhecer Filosofia, saber falar de
Descartes, de Bergson e Karl Marx. Muitos liam Foustel de Coulanges, Montesquieu, Thomas Morus, Beccaria e Maquiavel; outros liam Faulkner, Thomas
Mann e Joyce. O Direito Romano imperava, absoluto, e muitos liam As Leis das Doze Tábuas no original francês de Foignet. Depois das aulas,
íamos para o Bar Coimbra, ao lado da faculdade, e muitos professores nos acompanhavam e muitas aulas continuavam naquelas mesinhas regadas por um
bom chope. Estudante de Direito tinha cultura: conversar ainda era um prazer, e debater, uma necessidade premente.
Mas não seria correto terminar este trabalho sem falar do Centro dos Estudantes, ali
na Avenida Ana Costa. Fui lá diversas vezes movido por curiosidade. A gente ia chegando, sentava-se, ouvia, falava. Muitos só ouviam. Ali as
discussões eram muito mais profundas do que as da Faculdade, porque elas tinham linha direcionada, e conteúdo filosófico mais denso.
Mas eu quero tirar daquela casa um labéu que lhe foi imputado injustamente: o de que o
Centro dos Estudantes era um núcleo de perigosos comunistas. Era uma casa de debate de teorias econômicas, políticas e filosóficas. Duas ou três
vezes lá fui e guardo dessas visitas lembranças memoráveis. Lá encontrei católicos, ateus, humanistas, socialistas e comunistas. Os comunistas eram
muito mais brilhantes do que nós e se distinguiam porque estudavam mais e eram mais sérios: ingênuos, queriam reformar o mundo, mas o que era bonito
é que eles realmente pareciam acreditar na coisa toda.
Cuba estava em moda... as teorias do sociólogo brasileiro sobre a fome no mundo faziam
furor nos Estados Unidos e na Europa: o livro era Geografia da Fome e seu autor, Josué de Castro.
Mas erra quem pensa que ali só se debatia Karl Marx, São Tomás de Aquino, Teillard de
Chardin, o evolucionismo de Spencer, Darwin e A Origem das Espécies. Bertrand Russel estava em moda por seus livros Tem Futuro o Homem?
e Porque não sou Cristão? Alguns tentavam penetrar o intricado mundo do existencialismo de Heiddeger e se embrulhavam todos, muitos
queriam só aparecer e se embananavam também. Mas o Centro dos Estudantes foi o grande fórum de debates daquela geração rebelde que desejava reformar
o mundo.
Depois veio 64 e a Revolução e os anos frenéticos chegavam ao fim.
(*) Nelson Salasar Marques é escritor, professor
de línguas estrangeiras e membro da Academia Santista de Letras. A série de artigos
Imagens de um Mundo Submerso deu origem a vários livros de sua autoria.
Praça Rui Barbosa em 1909, quando era chamada de Largo do Rosário, tendo ao centro a
Rua Frei Gaspar e ao fundo o Monte Serrate. O local seria nos anos seguintes um reduto masculino
Foto: cartão postal da época
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