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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - Albergue
Histórias de um Albergue Noturno*

* publicadas pelo editor de Novo Milênio em impresso especial, comemorativo do 80º aniversário dessa entidade, em abril de 1996

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Em 28 de julho de 1914 eclode a Primeira Grande Guerra entre o Império Austro-Húngaro e a Sérvia, logo se alastrando pela Europa e pelo mundo, reunindo na luta, de um lado as potências centrais - em especial a Alemanha, o Império Austro-Húngaro e a Turquia - e, do outro lado, os Aliados - principalmente a Grã-Bretanha, a França, a Rússia, a Itália e depois os Estados Unidos.

O conflito provoca o êxodo do povo europeu para as Américas. Os portos americanos recebem um contingente cada vez maior de imigrantes europeus. As cidades portuárias, principalmente as brasileiras, começam a sentir as dificuldades em atender às famílias que aqui aportavam, geralmente só com a roupa e alguns utensílios.

A cidade de Santos, que já contava com seus mendigos e migrantes perambulando pelas ruas, passou a ter um problema ainda maior, com a necessidade de acomodar os imigrantes europeus que aqui chegavam. Daí surgiu a idéia de fundar uma instituição que atendesse a esses deserdados da sorte. Assim, em 2 de abril de 1916, era publicada no jornal A Tribuna a primeira convocação à sociedade santista para o encontro de fundação dessa entidade.


Notícia em A Tribuna em 1916
Fachada do prédio original

Já antes, no dia 9 de janeiro, havia sido lançada a pedra fundamental do prédio que em 12 de outubro se tornaria a primeira sede da entidade. E, no dia 7 de abril era fundada oficialmente a Sociedade Amiga dos Pobres Albergue Noturno de Santos.

Prossegue a edição especial, rememorando oito décadas de atividades daquela entidade santista:

Notícia da inauguração das instalações, no jornal santista A Tribuna em 14/10/1916

80 anos de histórias...

Em oito décadas de existência, o Albergue Noturno não ficou pobre de histórias para contar. Por exemplo, sobre o piso do salão de festas, que tem 300 proprietários...

"Numa moderna cidade, como é Santos, visitada diariamente por estrangeiros, dava uma impressão das mais tristes ver, à noite, por exemplo, junto do cais, sob os telheiros dos armazéns da Docas, rodeando o edifício da Alfândega e nos bancos do jardim da Praça José Bonifácio, indivíduos dormindo, entregues ao acaso, sem que a polícia, a bem dizer, tivesse a autoridade de proibir-lhes esse repouso, pois não havia onde albergá-los. Hoje, porém, que já temos um Albergue, acabou-se esse triste espetáculo" - página 2 do jornal A Tribuna de 12 de outubro de 1916.

A instituição recebeu os desabrigados pelas duas grandes avalanches em morros santistas ocorridas neste século. A primeira vez foi em 10 de março de 1928. Depois, em 26 de março de 1956, com o deslizamento dos morros, grande contingente de desabrigados permaneceu no Albergue, até agosto daquele ano.

Cerca de quarenta anos atrás, quando da cerimônia religiosa de Lavapés, a Cúria Metropolitana buscava no Albergue doze homens para terem seus pés lavados pelos sacerdotes.

Em toda a sua existência, só uma vez as portas do Albergue Noturno foram fechadas ao público: após a explosão do gasômetro na década de 60, que abalou as estruturas do telhado, pois se situava nas proximidades. Na oportunidade, a instituição foi visitada pelo coronel Porfírio da Paz, vice-governador de São Paulo, acompanhado pelo engenheiro Mário Covas, que então representava a Prefeitura Municipal de Santos.

Em 1984 foi assinado um convênio com a Promoção Social do Estado, passando o Albergue a atender diuturnamente, oferecendo a seus clientes o almoço e a estadia completa para senhoras e crianças.

Algumas personalidades da vida santista merecem destaque: o jornalista Alberto Veiga, membro da Comissão Mista da Câmara de Vereadores de Santos, encarregado da formação do grupo fundador da Sociedade Amiga dos Pobres; Antonio Cabrera Corrêa da Cunha, que presidiu o Albergue por 19 anos; Alberto Gê Tibiriçá Passos, que por quatro anos dirigiu a instituição como presidente da Diretoria e dedicou longos anos de sua vida como administrador da sociedade; Próspero Barleta, por 20 anos consecutivos, atuou como membro efetivo do Conselho Deliberativo.

O primeiro presidente do Albergue, coronel Joaquim Montenegro (então vice-prefeito de Santos), assumiu em 31 de maio de 1916, junto com a primeira diretoria (escolhida por aclamação). Na mesma data, foi informada a primeira lista de sócios, bem como os valores angariados. Doze anos depois, em 13 de maio de 1928, durante assembléia já na sede da Rua Braz Cubas, renunciou ao cargo devido ao precário estado de saúde (faleceria dois anos depois), sendo entretanto aclamado presidente honorário da entidade.

Montenegro foi sucedido na presidência por: Artur Costa Filho, até março de 1933; Aristides Cabrera Corrêa da Cunha (até junho de 1952); Luiz Merlino (até setembro de 1952); Frederico Neiva Figueiredo (até agosto de 1953); André Brando (até 31/12/1959); Francisco Paino (até 31/12/1964); Júlio Paixão Filho (até 31/12/1966); Affonso Gimenez Franco (até janeiro de 1968); novamente Júlio Paixão Filho (até abril de 1968); Alberto Gê Tibiriçá Passos (até 31/12/1972); Ruben Ruiz Affonseca (até 31/12/1973); Alberto Rodrigues Lage (até 31/12/1977); Rubens Covas Levy (até 31/12/1979); Salvador Sanches (até 31/12/1981); Laerte Tito Lívio de Oliveira (até 31/12/1983); Célio Garcia (até 31/12/1985); novamente Laerte Tito Lívio de Oliveira (até 31/12/1989) e Célio Garcia (até 31/12/1991); Vitor Alexandre Perides (até 28/12/1993) e, desde 1/1/1994 pelo atual presidente, Rubens Martins de Castro.

Presidiram o Conselho Deliberativo: Pérsio de Souza Queiroz (1934/59), Athiê Jorge Coury (1960/63), Lucas da Cruz Carvalho (1964/73), Celso da Silva Pontes (1974/76), Ariberto Diegues (1977/83), Jayme Henriques Lopes (1984/86), Antonio Navarro de Andrade (1987/89), Reginaldo José Hayek (1990/92) e Odair Damaso Brasil (desde 1993).

Othomar Mathias Couto é o sócio contribuinte mais antigo: colabora com a sociedade desde 1948.

Na sessão solene de inauguração do prédio da Rua Constituição, presidida pelo vereador Álvaro Guimarães, destacou-se o donativo feito pela Sra. Diva de Lamare Porchat de Assis, nestes termos: "No intuito de gravar ainda mais no coração dos pobres, principalmente das mulheres desamparadas da sorte, a data inaugural desta casa pia - é meu desejo dar a espórtula de mil réis para o sustento de manhã a cada uma das mulheres que forem albergadas hoje, não sendo reconhecidas como alcoólicas habituais".

Durante muitos anos, havia um policial em plantão permanente no Albergue para evitar problemas como desentendimentos entre os albergados. Hoje, esse atendimento policial depende geralmente de chamados telefônicos.

A propósito, A Tribuna de 9 de outubro de 1916 (dias antes da inauguração do prédio da Rua da Constituição, 66) noticiava, na página 2: "(...) No porão, à entrada, há dois compartimentos especiais - um para almoxarifado e outro para corpo de guarda. Que corpo de guarda!. Conforto, higiene, asseio. Que distância desse aposento para a baiúca da cadeia - um desvão em que a guarda se amontoa!". Aliás, a sessão solene de inauguração do prédio ocorreu nesse porão, e na oportunidade Alberto Veiga registrou que apenas 277 dias se passaram, entre o lançamento da pedra fundamental (em 9 de janeiro de 1916) e a inauguração das instalações (em 12 de outubro daquele ano).

O prédio da Rua da Constituição, nos dias que precederam sua inauguração, já se apresentava todo caiado, pintado e mobiliado, sendo assim descrito pela imprensa da época: "O edifício é fartamente iluminado a luz elétrica, dispõe de água em abundância, banheiros, lava-pés, aquecedores instantâneos; os gabinetes sanitários são extremamente asseados e providos de maneira a evitar pretextos a imundícies e infecções. Toda a obra é de cimento armado, o chão impermeabilizado, os tetos de estuque. A ventilação e a claridade irrompem por todos os lados, sobretudo pelas áreas descobertas que existem, no pavimento superior, entre as salas de dormitório. Estas foram dotadas de diferentes designações e prestam homenagem à imprensa (sala para vendedores de jornais) e aos fundadores do Instituto de Proteção à Infância, do Instituto Dona Escolástica Rosa, da Santa Casa, do Asilo do Órfãos e do Asilo de Inválidos, respectivamente Dr. Lobo Vianna, João Octávio, Braz Cubas, Dr. Carvalho de Mendonça e Dr. Antenor de Campos Moura". Na época, os vendedores de jornais eram indigentes, que assim ganhavam algum dinheiro...

Prossegue a descrição do primeiro prédio: "Vimos, preparada já, a sala da imprensa: camas de ferro, de varões maciços, com colchões, lençóis, colchas e cobertores; tudo de uma limpeza irrepreensível. Junto aos leitos, cabides de madeira para a roupa dos albergados e escarradeiras de madeira, cheias a meio de areia. Aqui e ali, pequenas placas recomendativas: Não cuspa no chão - É proibido fumar - É proibido falar em voz alta; e a cada sala, a cada compartimento corresponde a placa competente. O edifício é também provido de instalação telefônica e dispõe de sineta para as exigências do serviço. Tudo simples, absolutamente sem o menor luxo; mas de um grande rigor higiênico e de uma limpeza sadia e confortante. Em casas daquela natureza estas condições são essenciais".

Sobre o porão do prédio da Rua da Constituição: "O porão, que pelo projeto primitivo devia ser baixo, foi levantado a 2,5 metro de altura e é, por assim dizer, no caso de necessidade, um outro pavimento para numerosos dormitórios. O aspecto desse pavimento térreo é magnífico: há ali grande espaço para o serviço de refeições matinais (café e pão), com os melhores e mais apropriados utensílios - mesas, bancos, canecas de ágata, grandes cafeteiras de metal, balcão e serviço de copa, fogões a gás etc. Sabemos que o digno gerente da City tem obsequiado com diferentes pertences a Sociedade Amiga dos Pobres, e fará concessões vantajosas quanto à água e à luz". Esse gerente era Bernard Browne.

Nos primeiros anos de sua existência, o Albergue Noturno publicava diariamente no jornal A Tribuna uma estatística de atendimentos, informando quantas pessoas estavam albergadas, quantas eram recém-chegadas, distribuição por idade e por nacionalidade. Na primeira noite de funcionamento, por exemplo, foram albergados dez homens e três meninos, sendo que apenas três deles eram brasileiros.

Consta nesse jornal, dia 18/10/1916: "Foi o seguinte o movimento do Albergue Noturno, em 16 do corrente: Homens, 76: maiores 57, menores 19; nacionais 38, italianos 3, espanhóis 9, portugueses 13, alemães 5, venezuelano 1, argentinos 2, holandeses 2, inglês 1, suíço 1, polaco-russo 1; solteiros 65, casados 8, viúvos 3; sabendo ler e escrever 55, analfabetos 21, brancos 61, de cor 15; procedente da capital 1, em trânsito 5, de Santos 70".

Ao lado dessa nota, matéria sobre pronunciamento aos brasileiros feito pelo imperador D.Pedro II... em uma sessão espírita! Trechos: "(...) Os imperadores foram definitivamente varridos da América. As idéias de um falso liberalismo não os toleram com a sua suprema autoridade única. Que não se amedrontem os republicanos, cuja política, de processos pouco escrupulosos, vos corrompe. (...) Congregai-vos para a sua salvação, que já não é fácil".

O neto e o bisneto do tesoureiro que participou da primeira diretoria, respectivamente Antonio Alberto Aulicino e Luís Fernando de Oliveira Aulicino, estão entre os poucos parentes conhecidos dos primeiros dirigentes do Albergue. Luís Fernando é agora membro do Rotary Club de Santos-Porto.

Na 13ª Assembléia Geral Ordinária da entidade, em 20/01/1930, o presidente Arthur Costa Filho lançou as bases de um programa de profilaxia da tuberculose entre as crianças pobres.

Até 1945, funcionou nas dependências do Albergue Noturno o curso primário da escola Alberto Veiga. Ainda hoje está em seus arquivos uma caderneta de classe, com notas e faltas dos alunos. Aliás, num dos arcos que liga as duas alas das salas-dormitórios, no prédio inaugurado em 1916, lia-se uma frase daquele jornalista: "A dor irmana os homens e a desventura os solidariza".

Por muitos anos, funcionou no Albergue um Departamento Feminino, que, com seu trabalho, arrecadava fundos para a manutenção da Sociedade.

Em 1984, prestes a terminar as obras de construção do salão de festas da sociedade, mas faltando verbas para a conclusão do piso, foi feito um mapa dividindo o salão em 300 lotes. Estes foram vendidos aos amigos e sócios contribuintes da sociedade, permitindo assim a conclusão do trabalho.

Está registrado em A Tribuna de 17/10/1916, página 2, entre outras doações: "das meninas Deonéa e Dhelia de Campos Salles Costa, consumo de pão durante dois dias: de Oswaldo e Helena de Albuquerque Lima, fornecimento de pão para dois dias (...)".

"A Europa Conflagrada" foi a manchete constante de A Tribuna durante o ano de 1916, em que o Albergue foi inaugurado. O mundo estava exatamente no meio da Primeira Guerra Mundial, iniciada em 1914 e que só terminaria em 1918. E o Albergue teve importante papel no acolhimento de marinheiros e emigrantes das áreas européias em conflito.

A questão da mendicidade, 80 anos atrás, era muito semelhante à de hoje, registrando-se muitas mulheres com crianças de aluguel: "A polícia, usando de energia para pôr termo a essa pedincharia exploradora e ignóbil, tem arrebanhado nas ruas e praças os falsos e verdadeiros pedigonhos, prendendo aqueles e depois libertando-os, não sem ríspida advertência e ameaça de mais duro castigo, e enviando estes para o Asilo de Inválidos. Mas a espécie prolifera como os cogumelos, e outros mendigos sucedem aos primeiros..."

Assim, ao ser inaugurado, o Albergue Noturno já seguia um padrão adotado por instituições congêneres, conforme notícia da época: "(...) ele receberá os que, por qualquer circunstância, se vejam privados de agasalho às noites. O Albergue poderá ser franqueado ao mesmo indivíduo até certo número de dias, cremos que nunca mais de quinze, segundo os regulamentos de instituições análogas em S.Paulo e Campinas; e isto é racional, porque, de outro modo, um mesmo indivíduo faria do Albergue a moradia habitual, o abrigo constante, a sua casa, como se lhe fosse lícito viver parasitariamente, toda a vida, no meio de uma sociedade generosa, mas de trabalho. O Albergue, como é evidente, não se fez para vagabundos confessos e professos, para exploradores da compaixão pública, para viciados incorrigíveis e para malandrões de diferentes estofos: a sua utilidade é para os que, por circunstâncias ocasionais, ou acidentes infelizes, se vêem sem recursos e sem abrigo (...)"

Inaugurado em 1916, o prédio da Rua da Constituição foi usado pelo Albergue Noturno até 1928, quando foi inaugurado o prédio atual na R. Braz Cubas, 289, ainda na presidência do coronel Joaquim Montenegro.  As instalações atuais compreendem 60 leitos, refeitório, cozinha semi-industrial, lavanderia, secretaria, salão para promoções, estacionamento e  bazar de pechinchas.

Também gatos (muitos) e cães (alguns) que aparecem no Albergue Noturno têm encontrado abrigo e alimento, graças aos esforços da equipe assistencial...

Vários casamentos já ocorreram nas dependências do Albergue, que em 6 de maio de 1988 homenageou, entre outros, o então prefeito Oswaldo Justo, pelo apoio dado na reconstrução do telhado...

Vale repetir o lembrete publicado no mesmo jornal, 80 anos atrás, por sua atualidade: "Lembramos à população de Santos que todas as dádivas ao Albergue são úteis, sobretudo roupas brancas, para hábito interno e de dormir, bem como para hábito externo, ainda mesmo usadas. Acreditamos que o nosso comércio de fazendas e de roupas não se escusará a contribuir espontaneamente para esse fim, visto que é contribuir para os que coisa alguma possuem"...


Ornamentação do porão para inaugurar o Albergue Noturno, 
na foto do jornal A Tribuna de 14/10/1916


O refeitório, logo depois da inauguração da entidade, pela manhã


Sala das sessões, na sede da Rua Braz Cubas, em foto da década de 1980

Veja as partes [2] e [3] desta matéria

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