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BENEDITO CALIXTO
Calixto e as Capitanias Paulistas - 20


Clique na imagem para ir ao índice da obraAlém de refinado pintor, responsável por importantes telas que compõem a memória iconográfica da Baixada Santista, Benedicto Calixto foi também historiador e produziu várias obras no gênero, como esta, Capitanias Paulistas, impressa em 1927 (segunda edição, revista e melhorada, pouco após o seu falecimento) na capital paulista por Casa Duprat e Casa Mayença (reunidas).

O exemplar, com 310 páginas, foi cedido a Novo Milênio para digitalização pela Biblioteca Pública Alberto Sousa, de Santos, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. A ortografia foi atualizada, nesta transcrição (páginas 233 a 247):

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Capitanias Paulistas

Benedito Calixto

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Imagem: cabeçalho de página da obra (página 233)

O SERTÃO E AS MINAS  NAS DUAS PRIMEIRAS CAPITANIAS PAULISTAS - CAPÍTULO XVI

Chegada da frota de Martim Afonso ao Rio de Janeiro. - Primeira entrada no sertão. - Notícias de metais preciosos. - Prossegue a armada em sua rota ao Rio da Prata, sem tocar em S. Vicente. - segunda entrada no sertão, "dos oitenta homens que partem de Cananéia, em busca de ouro e escravos". - Castelhanos e lusitanos ali encontrados. - Volta da esquadra aos mares do Sul; sua entrada no porto de S. Vicente. - As duas primitivas vilas fundadas pelo futuro donatário: S. Vicente e Piratininga - Pontos de controvérsia que não têm mais razão de subsistirem. - Fascinação dos povoadores pelos tesouros ocultos no sertão. - Delineamento das divisas entre os dois donatários das "terras auríferas". - Explorações no sertão. - Os caminhos de penetração e as grandes artérias fluviais. - As zonas auríferas do litoral. - A permanência de Pero Lopes em S. Vicente e seu regresso a Portugal.

m dos fitos principais de Martim Afonso e Pero Lopes, escolhendo na partilha do vasto território brasileiro, feita por d. João III, em 1534, esta zona austral do continente para nela estabelecerem suas capitanias, era, está bem visto, a exploração, antes de tudo, de minas auríferas, prata e pedras preciosas, cujas notícias de existência eram correntes nessa época.

Ao chegar a armada de povoadores ao Rio de Janeiro - 30 de abril de 1531 - a fim de prover-se do necessário para prosseguir a rota até o Rio da Prata, um dos primeiros cuidados do futuro donatário de S. Vicente foi enviar uma expedição ao sertão com o fim especial de explorar a bacia e vale do Paraíba, até as encostas da Mantiqueira, indagando dos índios as veredas que iriam até os primeiros afluentes do Rio S. Francisco.

"Daqui (do Rio de Janeiro), diz o Diário de Pero Lopes, mandou o capitão irmão quatro homens pela terra a dentro; ali foram e vieram em dois meses, e andaram pela terra em cento e quinze léguas; e as sessenta e cinco delas foram por montanhas mui grandes, e as cinqüenta foram por um campo mui grande; e foram até darem com um grande rei, senhor de todos aqueles campos (talvez Tibiriçá?) que lhes fez muita honra e veio com eles até os entregar ao Capitão irmão. E lhes trouxe muito cristal, e deu novas como no Rio de Paraguai havia muito ouro e prata".

Sobre a região vicentina e seu respectivo sertão cortado pelo Anhembi e outros caudais, afluentes do Paraná, Paraguai e Prata, caminho por onde já se aventuravam os europeus mais destemidos daquela época, não necessitaria, por certo, o capitão Martim Afonso, que os índios lhe dessem notícia, pois ele já bem o sabia, pelas informações de seus companheiros de jornada, o escrivão da armada, Pero Capico, Pero Annes Piloto, e outros que já tinham estado no Brasil, inclusive o seu próprio irmão Pero Lopes de Souza, conforme afirmam hoje alguns historiadores, baseados em documentos.

E foi por isso, por terem de antemão boas notícias dessa famosa região, onde Antonio Rodrigues e João Ramalho possuíam já uma feitoria, a qual era "o fito principal - ou a meta - da expedição dos povoadores de 1531" - foi por isso, como íamos dizendo, que a armada de Martim Afonso, ao sair do Rio de Janeiro, depois de fazer escala pelos Alcatrazes, passou ao largo sem tocar em S. Vicente, dirigindo-se para Cananéia, onde fundeou "no dia de Santa Clara - 12 de agosto de 1531 - "conforme escreve Pero Lopes de Souza em seu Diario" [57].

Ali, segundo reza esse documento irrefutável, o futuro donatário confabulou com castelhanos e lusitanos residentes no local, procurando ainda ter notícias do sertão e das sonhadas minas de ouro e, principalmente, dos caminhos e veredas que ligavam ou se ligariam, mais tarde, com o Paraguai e mesmo com o Peru, cujos tesouros já estavam em evidência.

Ao tratar da estadia da frota em Cananéia, diz o Diarista de Bordo: "Por este rio arriba (mar-pequeno, ou lagamar que vai a Ararapira e a Ribeira de Iguape), mandou o capitão irmão um bergantim e a Pedro Annes Piloto que era língua da terra (N.E.: língua = tradutor de idiomas) que fosse haver fala com os índios. QUinta-feira dezessete dias do mês de agosto, veio Francisco de Chaves, e o bacharel (mestre Cosme) e cinco ou seis castelhanos. Este bacharel havia trinta anos que estava degredado nesta terra, e o Francisco Chaves era mui grande língua desta terra. pela informação que dela deu ao capitão irmão, mandou a Pero Lobo com oitenta homens, que fossem descobrir pela terra dentro; porque o dito Francisco de Chaves se obrigava - que em dez meses tornaria ao dito porto de Cananéia, com quatrocentos escravos carregados de prata e ouro.

"Partiram desta ilha (para não mais voltarem) ao primeiro dia de setembro de mil quinhentos e trinta e um, os quarenta besteiros e os quarenta espingardeiros...".

Todos sabem o desastroso fim que teve esta infeliz bandeira por Martim Afonso expedida às terras fatídicas dos Tapés e Carijós.

Ao voltar a frota dos mares procelosos do Sul, em demanda do seu almejado fim - S. Vicente -, em cujo porto fundeou no dia 22 de janeiro de 1532, e não em Bertioga, como erradamente se supõe, o capitão Martim Afonso deu início, imediatamente, à vila que vai ser de então em diante a sede de sua colônia e da futura Capitania.

Uma vez estabelecidas as bases fundamentais da vila e da respectiva governança da colônia, casa de conselho, Igreja, Pelourinho etc., o futuro donatário tratou de galgar a serra, em companhia de Ramalho e do chefe Tibiriçá, e parte do seu séqüito, a fim de visitar a aldeia da Borda do Campo e - principalmente - "a paradisíaca Piratininga", situada na ridente colina, próxima ao Tietê (Anhembi), em cujo local estava estabelecida a aldeia do grande Morubixaba.

Foi ali, na aldeia de Tibiriçá, o ponto escolhido por Martim Afonso para localizar a "segunda vila", como afirma Pero Lopes e as Cartas Jesuíticas dessa primeira época o confirmam, conforme temos demonstrado pela Revista do Instituto Histórico de São Paulo.

Esta nossa opinião, embora apoiada em documentos irrefutáveis, não mereceu fé e foi mesmo contestada, em 1913, por membros do Instituto Histórico Paulista.

Hoje, graças à publicação e difusão dos anais da Câmara de São Paulo e outros documentos, mandados publicar pelo digno historiador dr. Washington Luís, ex-presidente do nosso Estado, os autores de mais nomeada, tratando de esclarecer assuntos tão importantes de nossa história paulista, como esse, vêm exumando, dos velhos arquivos, ora publicados, os tópicos referentes à tradicional colina de Piratininga, comprovando assim as nossas ulteriores afirmações: "que a vila de Piratininga, fundada pelo primeiro donatário, não foi, nem podia ser, a vila de João Ramalho, na Borda do Campo".

Afonso de E. Taunay, em seu livro São Paulo nos Primeiros Annos, e Affonso de Freitas, presidente do Instituto Histórico de S. Pulo, no seu trabalho Piratininga Exhumada, apoiados nos ditos documentos da Câmara de São Paulo, vêm confirmando agora nossas asserções, esclarecendo e firmando, de uma vez, esse e outros pontos controvertidos e mal interpretados.

Não fecharemos este parêntesis sem que fique igualmente esclarecido, neste capítulo final das Donatarias de Martim Afonso e Pero Lopes, um outro ponto essencial, do qual já nos ocupamos, com mais largueza, na memória ainda inédita, As Villas de São Vicente e Itanhaen.

Opinam ainda alguns historiadores, em opúsculos e livros ultimamente publicados, baseando-se nas Memorias de fr. Gaspar e nas opiniões do dr. João Mendes e outros, que a frota de Martim Afonso aportou e fez o desembarque na Bertioga, em 22 de janeiro de 1531, e não "na Barra de São Vicente, em 22 de janeiro de 1532", conforme relata o Diario de Pero Lopes. Afirmam ainda, esses autores, sem base aliás, que o futuro donatário de São Vicente só foi ao Rio da Prata após a fundação da respectiva vila etc., fazendo, assim, uma série de conjeturas não só sobre o tal "desembarque em Bertioga" como sobre outros pontos relatados e esclarecidos por Pero Lopes e outros historiadores; isto com o fim de destruir as referências do Diario de bordo, o qual o dr. João Mendes julgou e condenou como apócrifo!

Dizem os ilustres autores, firmando-se no historiador e notável jurisconsulto maranhense, que Pero Lopes, na curta demora de catorze dias que permaneceu em São Vicente, isto é, "de 22 de janeiro a 5 de fevereiro de 1532", não podia ter assistido aos "atos de fundação" de seu irmão Martim Afonso de Souza, conforme relata o "Diário a ele atribuído" quando diz: "Aqui neste porto de São Vicente varamos uma nau em terra. A todos nos pareceu bem esta terra, que o Capitão I (irmão) determinou de a povoar e deu a todos os homens terras para fazerem fazendas; e fez uma vil na ilha de São Vicente e outra nove léguas dentro, pelo sertão, a borda de um rio, que se chama Piratininga, e repartiu a gente nestas duas vilas e fez nelas oficiais; e pôs tudo em boa obra de justiça, de que a gente toda tomou muita consolação, como verem povoar vilas e ter leis e sacrifícios, e celebrar matrimônios e viver em comunicação das artes; e ser cada um senhor do seu; e vestir as injúrias particulares e ter todos os outros bens da vida segura e conservável".

- Quantas inverdades em tão poucas palavras! - exclamam os nossos historiadores, parodiando ou repetindo as palavras do dr. João Mendes!...

Diremos, em primeiro lugar, que Pero Lopes não regressou a Portugal em 5 de fevereiro de 1532.

Nesta data - 5 de fevereiro - conforme narra o mesmo diarista, foi o dia em que "entrou neste porto de São Vicente a caravela Santa Maria do Cabo, que o capitão I tinha mandado ao Porto dos Patos, buscar a gente de um bergantim que ali se perdera, etc. etc. ..."

Pero Lopes só voltou a Portugal a 22 de maio desse mesmo ano - 1532 - e, sem sofisma, se pode afirmar que a sua demora em São Vicente não foi de 14 dias, mas sim de 4 meses, tendo, portanto, tempo suficiente para assistir a todos os principais atos "das fundações da Colônia", e mesmo de acompanhar seu irmão na notável excursão aos sertões de Piratininga e à fundação da "segunda vila".

O tópico do Diario, citado por João Mendes, foi, sem dúvida, extraído da parte reproduzida na edição das Memorias para a historia da Cap. de São Vicente, de fr. Gaspar, mandadas publicar em São Paulo, pelo presidente da Assembléia Provincial, Raphael Tobias de Aguiar, em 1874, por indicação do brigadeiro Machado de Oliveira.

A parte do Diario de Pero Lopes, aí transcrita pelo mesmo Machado de Oliveira, não está completa, nem obedeceu às recomendações, tão judiciosas e oportunas, feitas pelo historiador Varnhagen (Porto Seguro) nos opúsculos que publicou, avulsos, e nas transcrições do dito Diario, que se fizeram na Revista do Instituto Historico do Brasil - 1839-1847. Recomendava o notável historiador Varnhagen, nessas diversas publicações do Diario, que continuava a fazer suas pesquisas nos velhos códices que tratavam desses documentos de Pero Lopes, parte das quais já tinha sido publicada pela Real Academia de Ciências de Lisboa e reproduzida nas Memorias Historicas de Pernmbuco - 1844.

Pedia ainda aos publicistas e historiadores que não fizessem novas reproduções desse importante documento, sem prévia consulta, visto que já se achava ele aparelhado para fornecer novas matérias, resultantes de suas últimas pesquisas.  nada, entretanto, se atendeu. Foi por isso que o Diario de Pero Lopes, transcrito por Machado de Oliveira, nas Memorias de fr. Gaspar, saiu truncado e incompleto.

Isto obrigou o sr. T. A. Varnhagen, em 1861, a escrever a Carta á Redacção da Revista trimensal do Instituto Histórico e Geografico do Brasil, acerca da reimpressão do Diario de Pero Lopes, que lhe servirá de Prologo.

Nessa carta, queixa-se o historiador - sempre tão solícito e incansável nas suas escavações - da falta de deferência e mesmo de violações de que estava sendo vítima e... "principalmente pela falta de atenções em se me não dar, do intento, o mínimo aviso, quando mui formalmente fora isso por mim, com antecipação, suplicado...".

Neste tomo XXIV da dita Revista - página 1 a 111 - vêm, pois, publicadas, além de outros documentos notáveis, a supra dita carta de Varnhagen e a reprodução fiel e completa do Diario de Navegação de Pero Lopes de Sousa (1530 e 1532), que, sem dúvida, passou despercebida, não só ao dr. João Mendes, como aos demais historiadores de nossos dias.

Vejamos, pois, por este documento, o dia em que a frota de Pero Lopes partiu de São Vicente, em demanda do porto de Lisboa.

"Quarta-Feira, XXII dias do mês de maio da era de 1532, da era de Adam de oito mil quinhentos XVII e 361 dias, da era do dilúvio de 4634 anos e 95 dias, estando o sol em 10 graus e 32 meudos (N.E.: SIC - deve ser "minutos") de Geminis, e a lua em 19 graus de Capricórnio - parti deste Rio de São Vicente uma ora antes que o sol se pusesse, com ventos noroeste.

"E como foi noite fiz caminho a Leste e a quarta de Nordeste.

"Quinta-feira pela manhã era tanto a vante com a ilha de São Sebastião e ao meio dia se fez o vento Oeste e começou a ventar, o que me foi necessário tirar as monetas e correr com os papa-figos baixos, fazendo o caminho a l'Es-Nordeste até meia noite em que mandei tomar as velas por me fazer com o Rio de Janeiro.

"Sexta-feira XXIII dias do dito mês, pela manhã, via a terra três léguas de mim e conheci o Rio de Janeiro que me demorava a Norte e quarta do Nordeste, e com o vento Sudoeste dei vela e entrei nele ao meio dia.

"Sexta-feira, XXIIII (N.E.: notação antiga do número romano XXIV) dias do mês de junho, chegou a nau Santa Maria das Candeias, que ficara em São Vicente acabando de carregar. Neste rio estive tomando mantimentos para 3 meses e parti-me terça-feira 2 dias de julho: com o vento Nordeste saí fora, e achei o mar tão feio, que me foi necessário tornar arribar e surgi na boca ao mar da Ilha das Pedras em fundo da areia limpa de 15 braças...".

E assim prossegue o insigne diarista de bordo - nosso melhor cronista - a notar dia por dia, hora por hora, todos os incidentes da jornada: a 8 de julho passou por Cabo Frio, a 16 do dito mês avistava a Baía de Todos os Santos onde, em conseqüência de mau estado do mar, só pôde ancorar a 18 de julho. são notáveis as peripécias ocorridas neste porto, onde alguns marinheiros "deixaram as naus para irem viver com os índios!". A 30 de julho deixava o comandante Pero Lopes a Bahia em direção a Pernambuco e Ilha Fernando de Noronha, assinalando todos os pontos principais, últimas escalas da nossa costa.

Toda essa região do Norte, principalmente a de Pernambuco - Ilha de Itamaracá - onde se comerciava com o pau-brasil, já era bem conhecida de Pero Lopes e de Capico - o escrivão da armada - que governara uma feitoria nessas imediações, da qual voltara rico, para Portugal, antes de tomar parte na expedição de Martim Afonso e seu irmão Pero Lopes.

***

Terminado este parêntesis, reatemos o fio que nos conduzirá ao principal motivo deste capítulo.

Não foram, por certo, os mangues do lagamar de Morpino (N.E.: Morphium), na ilha de Engaguaçú, nem as areias duras da Praia Grande, de Itaipu a Itanhaém ou Peruíbe, nem as terras de varzedos e desmontes ubérrimos, nos vales dos rios Itanhaém, Peruíbe, Guaraú e vale da Ribeira, que seduziram o capitão Martim Afonso a escolher esta região do litoral onde fundou a sede de sua colônia.

Não foram também as "paradisíacas colinas da legendária Piratininga", tão poética e sugestivamente descritas por Affonso de Freitas e cantadas pelos nossos poetas bucólicos. Não.

O que o atraiu a S. Vicente foi a posição topográfica, hidrográfrica e orográfica da zona e, mais que tudo, a situação dessa aldeia de Tibiriçá, à margem do Tietê "porta aberta para o sertão", na frase do padre Nóbrega, quando ali, alguns anos depois, relatava ao geral de sua Ordem as vantagens e conveniências que resultariam para as "entradas das missões" desse ponto privilegiado, "onde Martim Afonso primeiro povoou".

Os primeiros missionários anteviam, nesse sertão, a grande "messe de almas", na seara não menos imensa e ainda ignota.

O futuro donatário, porém, e seus companheiros, sonhavam com os ricos filões auríferos e argênteos, com as gemas preciosas que os haviam de enriquecer!

Que ele, seu irmão e parte de seu séqüito indagavam disso, primeiro que tudo, não se pode negar; os régulos portugueses e castelhanos e os próprios índios os incitariam para as explorações e pesquisas sertanejas, aliás sempre infrutíferas, nessa época primitiva.

Quanto tempo demorou o chefe da colônia lusitana nesta excursão, é ponto obscuro que nem os historiadores, nem o redator do Diario da Armada, nos revelam. É provável, entretanto, que uma parte do Tietê e do Paraíba e serras adjacentes fossem percorridas pelos povoadores, nessa primeira entrada aos sertões de Piratininga.

João Ramalho e Antonio Rodrigues, já talvez um tanto desiludidos da "patranha das minas", resumiam o comércio de sua feitoria no resgate com os índios, na venda de escravos e no trato com os navios que aportavam a São Vicente "que resgateavam os gêneros da terra" cultivados pelos mesmos, a troco de ferramentas e quinquilharias, conforme escrevem Rocha Pombo e outros historiadores.

O comércio do pau-brasil pouco se fazia em São Vicente, por falta, quase absoluta, desse precioso lenho. Em Cabo Frio, entretanto, já abundava este gênero de comércio tão lucrativo.

Em 1511, Duarte Fernandes, conforme se depreende do seu Roteiro, partia de Lisboa, a 17 de fevereiro, com destino à feitoria de Cabo Frio, na célebre nau Bretoa, com ordem expressa do monarca de "não consentires que nenhum homem de vossa nau saia fora, na terra firme, e somente onde estiver a feitoria".

Compunha-se a tripulação da Bretoa de 35 pessoas, entre marinheiros, grumetes e pajens da grande nau que carregou cinco mil e nove toros de brasil, muitos escravos e grande quantidade de gêneros da terra, sobretudo peles, e infinidades de bichos - macacos, quatis, araras, papagaios, periquitos etc.

Este carregamento da nau Bretoa, na feitoria de Cabo Frio, em 1511, como prova o documento descoberto por Varnhagen, publicado na Revista do Instituto Histórico do Brasil, volume XXIV - 1861 -, demonstra bem qual era o gênero de comércio estabelecido entre a metrópole e a terra de Santa Cruz, vinte anos antes da "Expedição de Martim Afonso" [*].

É fora de dúvida que o futuro donatário e seu irmão Pero Lopes estivessem bem ao par de todos esses fatos, em relação à terra que vinham povoar, e que antes de voltarem à Europa, receber as cartas de doações em que d. João III lhes daria títulos de donatário "em local por eles escolhido", percorressem eles toda a costa e fizessem mesmo explorações na extensa zona que vai de Macaé até Santa Catarina, onde deviam fixas as divisas de suas futuras capitanias. E para isso tiveram tempo; e o fizeram com o necessário tino e critério, de comum acordo, a fim de que nenhum dos parceiros ficasse lesado na partilha. Martim Afonso, como chefe, apanharia toda a zona, desde Macaé até o Rio Juqueriqueré, onde abundava o pau-brasil e grandes aldeamentos de índios, e bem assim a parte da costa austral, desde Bertioga até Superagui (Paranaguá) - Ilha do Mel.

Havia também aí - desde Itanhaém - grandes núcleos de aldeamentos de tupis e carijós ("excelentes peças") e boas notícias - indícios de ouro - no vasto sertão. Embora os limites com Castela não estivessem definidos nesse tempo, a legítima posse viria com o tempo - para aquele que pudesse impor o seu domínio - como de fato se deu.

Pero Lopes, que precisava ser contemplado com as mesmas vantagens prováveis - pau-brasil, índios e... terras auríferas - teve, para tal mister, de retalhar o seu quinhão.

Para o comércio do "lenho rubro", escolheu ele a Ilha de Itamaracá, porém, para ter direito a uma parte nas zonas regadas pelas nascentes do Anhembi, Paraíba e serras adjacentes, com o respectivo "sertão, onde havia indícios de minas', exigiu ele que das terras de seu irmão lhe fossem dadas dez léguas, de Juqueriquerê à barra da Bertioga.

Estas divisas de Pero Lopes, "essas léguas elásticas", que se esticariam, conforme se viu neste litígio, até a barra de São Vicente, devido ainda à ganância de seus sucessores, em possuírem "terras auríferas nessa privilegiada zona".

A outra seção da Capitania de Pero Lopes, conforme já ficou explicado, abrangeria desde a Ilha do Mel, em Paranaguá, até Santa Catarina. Ficava pois o irmão de Martim Afonso aquinhoado também com boa parte das terras auríferas de Paranaguá, "onde se extraiu o primeiro ouro no Brasil", conforme reza a legenda de um antigo mapa [58] existente no arquivo de nosso Instituto.

Depois de combinadas estas partilhas in loco, regressavam os dois irmãos à primitiva vila, onde houve conselho deliberativo entre os mandantes da terra, conforme anota Pero Lopes em seu referido Diario:

"E assentavam que o Capitão I devia de mandar as naus para Portugal com a gente do mar; e ficasse o capitão I com a mais gente em suas duas vilas, que tinham fundado, até vir recado da gente (os oitenta homens) que tinham mandado a descobrir pela terra dentro e logo me mandou fazer prestes para que eu fosse a Portugal nestas duas naus, a dar conta a el-rei do que tínhamos feito". Isto, como explica Varnhagen, em nota, foi já escrito por Pero Lopes, a bordo, nas vésperas do primeiro dia do regresso a Portugal - 22 de maio de 1532.

Até esta data, como se vê, ainda não havia notícias dos oitenta homens idos ao sertão dos carijós, em busca de "ouro e escravos".

A volta de João de Souza, do reino, com carta de el-rei prometendo concessão das duas capitanias, aos dois irmãos, só se deu no ano seguinte, 1533, pois é datada de 28 de setembro de 1532 (de Lisboa), quando Pero Lopes já estaria talvez em Portugal. Diz d. João III, nesta carta a Martim Afonso, que tinha "determinado de mandar demarcar, de Pernambuco até Rio da Prata, cinqüenta léguas de costa a cada Capitania, e - antes de dar a nenhuma pessoa, mandei apartar para vós cem léguas, e para Pero Lopes, vosso irmão, cinqüenta, nos melhores limites dessa costa, por parecer de pilotos e de outras pessoas de quem o conde de Castanheira, por meu mandado, informou...".

A concessão definitiva, isto é, a Carta de Doação a Pero Lopes, não de 50 léguas, mas de 80, com suas respectivas divisões, só foi passada, em Évora, a 21 de janeiro de 1535, conforme as indicações dadas pelos dois irmãos, quando ambos já estavam de volta a Portugal.

É de então em diante que Pero Lopes e Martim Afonso obtêm, oficialmente, o título de "donatários".

Tudo isto é, aliás, claro e insofismável para quem estuda, sem idéias preconcebidas, os fatos ocorridos nesta primeira época do povoamento, na extensa e rica região paulista, cuja história, como já temos dito, é tão falha e tão controvertida.

Martim Afonso, após o regresso de seu irmão, continuou a cuidar do estabelecimento e desenvolvimento de sua colônia, concedendo terras aos seus companheiros, e animando o cultivo, principalmente da cana-de-açúcar, fundando o primeiro Engenho de São Jorge, como é bem conhecido. Os demais fidalgos o imitaram e foram com auxílio dos índios, desbravando as matas, visto estarem convictos que as "sonhadas minas" - embora dessem indícios de existência - teimavam em ocultar-se.


[57] O fim da viagem ao Rio da Prata era, simplesmente, explorar a costa e colocar "marcos de pose" com as armas lusitanas, conforme lhes ordenara el-rei d. João III, e isso Martim Afonso e Pero Lopes o efetuaram.

[*] Na obra monumental Historia da Colonização Portugueza no Brasil, que acaba de ser publicada em Lisboa, vêm referências e documentos sobre a nau Bretoa e dita Feitoria.

[58] Vide Mapa de Paranaguá, na memória histórica de Benedicto Calixto Capitania de Itanhaém - Revista do Instituto Histórico de S. Paulo - 1915, e Planta da Bahia de Paranaguá - levantada em 1653 e conservada no Arquivo da Marinha de Ultramar, em Lisboa, publicado ultimamente por Moysés Marcondes, sob o título Documentos para a Historia do Paraná.

Imagem: adorno da página 247 da obra