Domingos Jorge Velho - O vencedor dos Palmares
Benedito Calixto, o excelente pintor santista, em princípios de 1903, expôs, na capital,
duas telas encomendadas pelo governo do Estado de São Paulo, a fim de figurarem no Museu do Ipiranga. Uma destas telas retratava o bandeirante
Domingos Jorge Velho, vencedor do célebre quilombo dos Palmares. A outra retratava Vicente Taques Góis e Aranha, que fora capitão-mor em Itu, de
1779 a 1825.
A propósito dessa primeira tela, curioso documento encontramos em o Diário de
Santos, edição do dia 1º de março de 1903, assinado pelo dr. A. de Toledo Piza, diretor do Arquivo Público do Estado de São Paulo e subordinado
ao título Os Palmares.
É uma página muito interessante, ilustrando primorosamente o critério artístico de
Benedito Calixto. Estamos certos de que os nossos leitores apreciarão devidamente as afirmativas e os conceitos emitidos na interessante página que
abaixo publicamos:
Os Palmares
Durante a invasão holandesa no Norte do Brasil, muitos escravos de Pernambuco, Alagoas
e vizinhanças fugiram das fazendas e, retirando-se para o sertão, fundaram uma povoação conhecida na história com o nome de "Palmares", no sertão do
atual Estado das Alagoas, entre os anos de 1624 e 1654.
Durante a guerra contra os holandeses, cerca de trinta anos tiveram os negros
quilombolas, tempo bastante para fundar e fortificar a sua povoação, e fazê-la próspera: pela aquisição de muita gente de cor, recrutada nas
fazendas de beira-mar e capitanias vizinhas.
Expulsos os holandeses, entenderam os pernambucanos que era tempo de dar cabo da
República dos Palmares, cuja população era calculada em cerca de 30.000 almas.
Várias expedições enviadas para esse fim tiveram maus resultados e o governador de
Pernambuco julgou acertado contratar o serviço da destruição dos Palmares com Domingos Jorge Velho, famoso sertanejo paulista, muito conhecedor dos
sertões do Brasil.
O contrato data do ano de 1687, porém só em 1694 é que a praça foi tomada, depois de
cerco regular e de uma luta cheia de peripécias. Milhares de negros preferiram suicidar-se a se entregar ao vencedor, que os reduziria ao cativeiro;
mas, ainda assim, os despojos foram grandes, os prisioneiros numerosos, e Domingos Jorge Velho voltou a São Paulo, cheio de glórias e de riquezas,
falecendo em Parnaíba, sua terra natal, pelo ano de 1714.
O governo do Estado pretende enriquecer o Museu do Ipiranga com um quadro comemorativo
deste notável feito de armas do famoso sertanejo paulista; mas, por enquanto, encomendou somente ao pintor santista Benedito Calixto o retrato do
vencedor dos Palmares.
Para bem se desempenhar da tarefa que lhe foi incumbida, Benedito Calixto dirigiu
cartas ao dr. Teodoro Sampaio e a mim, consultando-nos sobre a melhor forma de representar a pessoa do herói paulista - se como militar e mestre de
campo que era ou se como sertanejo, sendo a carta a mim dirigida extensiva também ao dr. Washington Luiz Pereira de Sousa, moço hábil e muito
conhecedor de nossa história colonial.
As respostas dadas a Benedito Calixto constituem documentos valiosos para a nossa
história pátria, e, por isso, vou reproduzi-las, começando pela do dr. Teodoro Sampaio:
"Meu caro sr. Benedito Calixto.
Saúde. Respondo agora à sua carta de 24 do corrente, relativa à consulta que o amigo
me faz sobre o modo de mais propriamente caracterizar o tipo de Domingos Jorge Velho, o vencedor dos Palmares.
Estou de acordo com o esboço do quadro projetado, e com o modo de representar a figura
do famoso paulista. Um quadro histórico referente a uma data tão remota, da qual poucas informações precisas e minuciosas temos sobre o trajar dos
homens, tem de ser, por via de regra, uma coisa convencional e aproximada, reproduzindo um pouco do que se sabe ao certo e um pouco dos costumes da
época que mais se lhe aproxime.
Ora, não é de crer que Domingos Jorge Velho se apresentasse a batalhar com os seus
mamelucos caracterizado como um mestre de campo. De certo, a parte decorativa equivalente ao seu posto militar não foi exibida na ação. Nós temos
exemplo disso, bem perto de nós, na guerra do Paraguai e na última revolução do Rio Grande: nenhum general se apresentava em campo com a sua farda;
timbravam quase sempre em se apresentar à gaúcha.
Num quadro histórico, porém, não há só a considerar a verdade ou realidade do fato; há
também a parte propriamente artística ou de efeito estético, há a lição de coisas.
Caracterizando o vulto de Domingos Jorge Velho como trajava qualquer sertanejo mais
abastado ou "a bandeirante", não se conseguirá do quadro a demonstração ou a idéia que se tem em vista alcançar.
É mister, portanto, sacrificar um tanto a realidade à ficção, no intuito de se
conseguir maior força de expressão.
Acho, pois, acertada a sua resolução de caracterizar o famoso vencedor dos Palmares
pelo modo pelo qual m'o descreveu.
Muito folgo em saber que o retrato de Anchieta agradou muito e não tenho expressões
com que louvar a resolução do dr. Bento Bueno, que tão inteligentemente está fazendo representar na tela, por pintores paulistas, os feitos
gloriosos dos filhos de São Paulo.
Bem haja.
Adeus; disponha sempre do seu amigo e admirador - Teodoro Sampaio.
São Paulo, 27/11/1892".
O dr. Washington Luís, a quem transmiti o pedido de Benedito Calixto, não se demorou
em dar o seu parecer, e como ele pertence, por casamento, à família de Domingos Jorge, a sua opinião é muito valiosa e as suas informações são tão
minuciosas e precisas que, no meu entender, resolvem completamente as dificuldades da matéria.
Dou abaixo a íntegra da sua preciosa carta:
"Ilmo. sr. Benedito Calixto.
O dr. Antonio Piza teve a bondade de mostrar-me uma carta, em que v.s. pede minha
opinião, por escrito, sobre Domingos Jorge Velho e a destruição dos Palmares.
A minha competência sobre o assunto é bem limitada e por isso minha opinião para bem
pouco servirá.
Como quase todos os pontos da nossa história, esse acha-se tão confuso, tão vago, tão
indefinido, que só um estudo especial poderia precisá-lo, lançando-lhe alguma luz. O seu maior interesse, porém, refere-se a Domingos Jorge Velho.
Hoje parece-me muito difícil, senão impossível, determinar com exatidão se Domingos
Jorge, na ocasião da tomada dos Palmares, vestia a farda de mestre de campo das tropas regulares portuguesas ou se trajava o vestuário clássico do
sertanista de São Paulo, conquistador dos índios e devassador do sertão.
Neste particular só podemos caminhar por conjeturas.
Que Domingos Jorge Velho era mestre de campo não há que duvidar, mas que ele o era de
um "terço de paulistas" é também fora de dúvida. E quem diz "terço de paulistas" entende tropas não regulares, no sentido de não
estarem a soldo da metrópole portuguesa, o que é confirmado pelo contrato feito entre Domingos Jorge e o representante da metrópole para a
destruição dos Palmares, quando, para tal fim, se ele fosse militar assoldado, comandando soldados pagos, bastaria uma simples ordem superior.
Ele poderia, pois, estar fardado ou trazer o costume habitual do sertanista,
dependendo isso de suas posses, de sua educação, de seu temperamento, de seu modo pessoal de ver as coisas, de sua tendência para a ostentação ou
para a simplicidade, da impressão que quisesse produzir nos seus e nos alheios soldados, caso nisso pensasse.
A riqueza, na capitania de S. Paulo, se tornou comum depois do descobrimento e
exploração das minas, posterior, quanto à abundância, ao fato que nos ocupa, se bem que naquele tempo já houvessem grandes fortunas, que em alguns
se traduziam por fausto.
O principal luxo do paulista antigo revelava-se na hospitalidade, nas copas de prata,
pesando arrobas, nos lençóis de Bretanha, nas colchas da Índia, no número de armas de seu séqüito, na fundação e ornamentação de capelas etc., mas
em geral, os ricos localizados nas povoações ou nas suas fazendas disputavam os cargos da governança e só deixavam a tradição da riqueza.
Domingos Jorge Velho não teria herdado grandes cabedais e, se deixou grandes bens de
fortuna, esses foram acumulados pela força do seu braço, na cativação dos índios e na conquista de terras.
A julgar pelos feitos de que temos notícias, Domingos Jorge foi o tipo acabado do
sertanista paulista; partido de São Paulo, o melhor da sua vida consumiu ele talando o sertão, cruzando o moderno Piauí, de que foi um dos
descobridores, e o centro da Bahia, em luta constante e bravia com o indígena selvagem.
Essas travessias ousadas eram feitas a pé, por um sertão agreste e desconhecido,
duravam dois, três e até seis anos, e diminuta e às vezes nenhuma era a bagagem dessa gente, que se alimentava da caça, pesca e mel que encontrava,
e, muitas vezes saciava a sede chupando raízes das árvores. As matas e os rios eram as suas hospedarias.
Essas expedições, que tanta glória deixaram a São Paulo e que de tanto valor foram
para a constituição geográfica do país, eram nesse tempo feitas para a cativação de índios.
Na destruição dos Palmares, embora visassem a glória que redundaria para o nome
paulista, tinham o incentivo da cativação de muitos milhares de negros.
Nesse mister semi-bárbaro, em tempos de costumes pouco brandos, em que por ventura se
comprazia o seu temperamento, se fez Domingos Jorge.
O seu "terço" se compunha de homens de todas as classes da capitania, inclusive
muitos índios, que se vestiam conforme suas posses e posição. Entre eles não havia uniforme e de S. Paulo seguiram para Palmares, na moderna
Alagoas, provavelmente por terra, segundo o costume, sofrendo naturalmente todas as provações e vicissitudes de que o sertão era fértil para aqueles
que o freqüentavam.
O cerco e, conseqüentemente, a destruição dos Palmares durou meses, em um sertão sem
recursos, bravio e descaroável.
Por temperamento, pelos hábitos e educação, pelas próprias condições dessa guerra
singular, Domingos Jorge não poderia estar vestido de sedas e veludos; não se distinguiria pelo fausto do vestuário, mas pela bravura, energia,
tenacidade, resistência ao sofrimento, desprezo ao perigo.
Ele deveria estar, sem dúvida, com o vestuário clássico do sertanista, do bandeirante,
que, em resumo, é o tipo glorioso de São Paulo.
Fardado de mestre de campo das milícias portuguesas, não obstante ter nascido na
Capitania de São Paulo, Domingos Jorge Velho seria uma glória portuguesa; vestido como vestiam os sertanejos, ele, embora colono de Portugal, é uma
glória paulista.
Domingos Jorge, nessa época, era um homem de 70 anos de idade, mais ou menos, pois em
14 de novembro de 1643 já tinha batizado seu filho Salvador.
Era alto, robusto, de uma aparência imponente, tinha os cabelos ruivos, cortados
rente, os olhos azuis, o rosto comprido, alvo, corado na pequena parte que não era coberta pelo espesso bigode e comprida barba ruiva que lhe descia
ao peito.
O seu imediato em comando, o sargento-mor Antonio Fernandes de Abreu, era meão de
altura, pescoço curto e grosso, ombros largos, corpo reforçado; a cabeça era bem feita, a testa um tanto saliente, os olhos pequenos e vivos, os
bigodes aparados. No cuidado com que se vestia e tratava e nas suas mesmas ações, via-se que caprichava em mostrar um soldado escravo da disciplina.
As indicações relativas ao físico de Domingos Jorge Velho e de Antônio Fernandes de
Abreu, encontrei na obra do dr. Joaquim de Paula Sousa, descendente daquele, intitulada "Os Palmares". É um romance histórico, no qual o
autor se cingiu estritamente à verdade nas suas descrições.
Estou informado que o dr. Joaquim de Paula Sousa consumiu muito tempo nas suas
indagações e obteve estes apontamentos, em grande parte, dos amigos moradores de Itu, que tinham razão de saber porque repetiam o que tinham ouvido
de seus maiores, numa tradição constante e uniforme.
Em todo o caso, v. s. dar-lhes-á o valor que entender.
Desejo sinceramente, e estou certo da realização do meu desejo, que a perpetuação de
uma glória paulista seja para v. s. também uma glória, o que é fácil a quem tem sabido conquistar um justo renome a golpes de talento e trabalho.
Apesar de ter querido ser breve, já vai esta muito longa, o que será desculpado a quem
se confessa seu admirador obrigado - Washington Luiz.
São Paulo, 3-1903".
Como vêem os leitores, em fundo estão de pleno acordo ambos os distintos cultores da
história nacional, entendendo o dr. Teodoro Sampaio que, na forma, é lícito ao pintor, como ao poeta, sacrificar um pouco a realidade à ficção, para
mais impressionar o público pelo efeito estético do quadro.
Benedito Calixto, entretanto, cingiu-se o mais possível à realidade histórica na
pintura do seu quadro, e hoje podemos nos orgulhar vendo reproduzido o vulto imponente do grande sertanejo paulista, na galeria do Museu do
Ipiranga.
A. de Toledo Piza.
|