Estes artigos foram enviados a O Bonde por Luiz
Costa de Lucca Silva, de Petrópolis/RJ, em 14/8/2001, junto com duas fotos de seu avô no controle do bonde "Bocca do Matto", no Rio de Janeiro
(bairro do Méier). Ele explica que as imagens não têm data, calculando que tenham sido produzidas entre 1930 e 1950, o que é atestado pelo detalhe
dos bondes ainda não terem pára-brisas:
A ferrovia na rua
Algumas coisas, antes não existentes, tornam-se, a partir de sua criação, inerentes ao
contexto a que pertençam. Isso podemos verificar em diversos campos da atividade humana, seja no que se refere à técnica, a determinados recursos e
costumes, à arte etc. Por exemplo, seria quase inconcebível imaginarmos um mundo sem escrita, desde que a escrita existe, onde ela existe; e hoje
ela abrange praticamente o mundo todo.
No mundo dos meios de transporte terrestre, poderíamos dizer que, desde o advento do
transporte sobre trilhos, vivemos no que pode ser chamado de “A Era Ferroviária”. Isto porque, em terra, tal tipo de recurso viário demonstrou ser o
mais seguro, mais econômico e mais apropriado à satisfatória organização.
É conclusivo, portanto, que não tenha dado bons resultados o ato de legar a ferrovia a
segundo plano, fato que ocorreu em muitos casos.
Foi dito acima que poderíamos chamar o tempo em que vivemos de “A Era Ferroviária”, no
que se refere ao campo dos transportes terrestres, não porque a ferrovia predomine na maior parte do nosso mundo, mas porque ela é a opção mais
satisfatória, e que, assim sendo, deveria predominar.
Predominar não significa apenas uma questão de ser maioria ou meio de transporte mais
usado, mas também a base ou ponto de apoio do serviço viário de uma nação, e entre nações, de modo que, de certa forma, a ferrovia “comandasse” o
sistema geral de transportes, no qual a rodovia (ou o transporte rodoviário) figuraria como um sistema auxiliar.
É óbvio que, onde a opção rodoviária tenha sido exageradamente incentivada, uma
instauração ou restauração de um serviço ferroviário predominante e intenso não seria viavelmente um trabalho de curto prazo. Uma ampla atividade de
planejamento, projetos e graduais estudos de viabilidades seria necessária; isto porque uma situação insatisfatória muito generalizada e arraigada
envolve inúmeros aspectos, inclusive a questão humana dos meios de subsistência honestos das pessoas que vivem de atividades ligadas à referida
situação, e, sendo que aqui nos referimos à opção rodoviária, podemos exemplificar os caminhoneiros, os motoristas de ônibus etc. Embora a adoção da
predominância ferroviária não viesse a acarretar na extinção dessas profissões, seu aproveitamento diminuiria consideravelmente, provocando prejuízo
e protestos daqueles que dependem delas. Por essas e outras razões, infelizmente ou não, é fato que uma opção melhor, em substituição à conformidade
precária, teria de ser buscada pelo desestímulo gradual de tal situação, e o igualmente gradual estímulo da predominância adequada.
A palavra “ferrovia” nos lembra geralmente a estrada de ferro seletiva e de longo
curso, que é, de fato, o mais ativo sistema de canalização viária entre regiões de média ou longa distância. A ferrovia, no entanto, é também um
grande recurso urbano. Para o transporte coletivo dentro das cidades, temos um dos exemplos mais interessantes do engenho ferroviário. Refiro-me ao
bonde.
Reparemos que, no caso das cidades grandes, embora sejam extremamente úteis e
necessários os préstimos de recursos ferroviários de maior porte (como os metrôs e trens urbanos de superfície), o bonde conta com uma vantagem
exclusiva, que poderíamos chamar de "penetrabilidade", ou seja, o bonde pode levar o usuário à frente (ou perto) do portão de sua residência, do seu
local de trabalho ou de qualquer lugar específico a que pretenda chegar.
Há, entre nós, um grande preconceito contra o bonde. Para demonstrarmos a falta de
fundamento de tal preconceito, convém citar como exemplo o fato de que, em importantes cidades de alguns países do chamado Primeiro Mundo, os
serviços de bondes "comandam" ainda hoje a atividade dos transportes coletivos. Não pretendo aqui sugerir que imitemos o que se faz em outras
nações, porém, lembrando-nos de que essa é uma questão universal, quero demonstrar que, se lá é viável um tipo de transporte satisfatório, seguro e
econômico, aqui também pode ser, e poderíamos adotá-lo de acordo com nossas necessidades e propriedades, como, aliás, já ocorreu em nosso país,
quando tínhamos intensos serviços de bondes em muitas de nossas cidades, geralmente grandes e médias, mas também em alguns poucos municípios
pequenos.
O que pôde tornar o bonde "inviável" em nossas cidades foi o crescimento desordenado,
a aparição de ônibus urbanos em demasia, e o excesso de carros de passeio nas ruas.
Se nossas opções urbanas tivessem tomado outro rumo, se, na época em que nossos bondes
eram ainda os "senhores" do transporte urbano, tivéssemos pensado em preservá-los e modernizá-los, em vez de suprimi-los, hoje teríamos, muito
provavelmente, uma vida urbana melhor, porque, contando com um transporte elétrico bem organizado, o cidadão poderia usar com menos freqüência o seu
automóvel particular, não congestionando as ruas, gastando menos combustível, e contribuindo menos com a poluição atmosférica; e, se houvesse alguns
ônibus, estes seriam poucos, servindo como um recurso auxiliar não predominante.
O bonde é melhor não somente porque não gasta combustível e não polui o ar, pois nesse
caso poderíamos dar a mesma visão ao ônibus elétrico; no entanto, ainda que sua alternativa realmente ofereça essas duas vantagens, o ônibus
elétrico falha em outro aspecto considerável: um veículo grande, sobre rodas de borracha, exige maior volume, para seu equilíbrio e estabilidade.
Assim, um transporte coletivo, que, em qualquer caso, precisa ser relativamente comprido, no caso de ser um ônibus elétrico ou não , precisará
também ser largo. Ele ocupa muito espaço, além de ter oscilações imprevisíveis e fazer curvas de modo incerto, às vezes perigoso, sobretudo para os
pedestres, mesmo quando estejam estes nas calçadas.
Em suma, um ônibus é uma espécie de "trambolho" na via urbana, ao passo que o bonde,
por ter a estabilidade dos trilhos, pode ter uma bitola estreita ou média, e, por conseguinte, menor largura em seu corpo, o que não limita a
capacidade de número de passageiros, pois ele pode tracionar reboques (ou ser um carro articulado), além do fato de que um serviço bem organizado -
numa cidade onde trafeguem menos automóveis de passeio e poucos ônibus - poderia ser oferecido ao usuário com horários pouco espaçados, de modo a
não sobrecarregar os veículos, coisa que ocorre quando o passageiro embarca num carro às vezes muito cheio, porque o próximo há de "demorar muito".
Voltando a falar em segurança e previsibilidade, notemos que uma pessoa que esteja
dirigindo seu carro, numa rua em que passem bondes, pode orientar-se melhor, pois sabe que um bonde não lhe daria nenhuma "fechada"; o pedestre
conhecerá o espaço que o bonde ocupará nas curvas (é claro que o posicionamento da linha deve ser calculado de modo a atender à segurança).
Quanto às desvantagens do bonde - que são a possibilidade de descarrilamento e a
questão da intransponibilidade de obstáculo (por exemplo, um acidente rodoviário ou algum veículo enguiçado na via), são problemas solucionáveis, e,
com os avanços tecnológicos que hoje temos, ainda mais facilmente.
Em primeiro lugar, notemos que, numa cidade de trânsito organizado e - via de regra -
não congestionado, a probabilidade de acidentes seria consideravelmente minimizada. Em segundo, quanto a descarrilamentos, se temos uma via de
bondes e um material rodante (os próprios veículos) bem mantidos, esse tipo de acidente seria também pouco provável.
Mesmo assim, para a devida prevenção contra tais inconvenientes, poderiam ser
dispostas chaves (desvios) em pontos estratégicos, para casos de obstrução na via; e, para a eventualidade do descarrilamento, poder-se-ia estudar a
idealização de algum tipo de dispositivo de frenagem automática de segurança, de modo a evitar que o veículo avançasse ou se deslocasse
diagonalmente.
Além disso, há hoje o recurso dos circuitos de via, que são dispositivos automáticos
ao longo da linha, ligados ao sistema dos veículos, que podem, além de outras coisas, induzir a limitação da velocidade, em locais onde seja
necessário, e enviar informações para um painel de controle, situado num "C.C.O." (Centro de Controle Operacional), pelo qual se pode saber a
localização de cada veículo.
Por fim vejamos a vantagem que o bonde oferece ao conforto do passageiro. Ele é menos
ruidoso, não trepida e não tem um motor diesel, que ocupa espaço e produz calor.
Embora tenha dado aqui um destaque especial ao bonde, faço alusão a todo o contexto
ferroviário, de curto ou longo curso, elétrico ou movido por outros tipos de tração.
É sempre bom que pensemos em opções construtivas, e lembremos que do pensamento nasce
a hipótese. A hipótese é o ponto de partida para o plano; o plano leva ao projeto; o projeto ao estudo da viabilidade e de como fazer; daí vai-se ao
empreendimento direto, à construção, que possibilita a atividade efetiva.
Luiz Costa de Lucca Silva
(Petrópolis, 1º de maio de 2000)
Transporte urbano é cultura
Se procurarmos num dicionário a palavra “bonde”, leremos adiante algo parecido com
“Veículo sobre trilhos adaptado para trafegar em via rodoviária etc. etc...” A definição está correta; isso, com efeito, é o bonde.
No entanto, uma pessoa que jamais tenha visto, ou viajado num deles, não poderá a
partir dessa definição saber de fato a respeito do bonde.
Quem o conheceu, quem viajou nele, pode ter experimentado a sensação de estar num trem
em plena rua. Isso é o bonde: o “trem de rua”, como dizem os alemães (Straßenbahn). O bonde tem o mesmo balanço do trem, o mesmo ronco de um
trem elétrico, e suas rodas produzem o mesmo ruído rítmico nas juntas dos trilhos. Entretanto, o trem é o trem, e o bonde é o bonde.
Ao viajarmos num bonde, exceto pela velocidade módica, pelas frenagens prontas, as
paradas nos pontos e as curvas fechadas, sentimo-nos tal como num trem; porém, se olhamos para fora, abaixo, não vemos o lastro de pedra britada:
vemos os paralelepípedos ou o asfalto. Se olhamos ao redor, vemos os carros de passeio, os caminhões e os ônibus. É algo singularmente sugestivo
sentirmo-nos dentro de um veículo ferroviário, estando-se em plena rua. O mesmo ocorre quando observamos um bonde por fora, e vemos seu movimento
típico de ferrovia, em meio à via de trânsito rodoviário. Quem teve a oportunidade de ver o bonde, pessoalmente ou em filmagens, pode ter notado sua
passagem característica por uma curva fechada, descrevendo, com a precisão ferroviária, uma elegante trajetória oblíqua.
A idealização do bonde, foi um dos mais engenhosos eventos da tecnologia ferroviária.
Além de artístico, o contexto de um sistema de bondes é extremamente ordenado e funcional.
É artístico, porque é, de fato, uma obra de arte, a idealização e a construção de uma
via férrea no leito rodoviário urbano. É ordenado, porque um movimento sobre trilhos é bem controlável. É funcional pelo próprio fato de ser
ferroviário, condição adequada para veículos de maior comprimento, por permitir menor bitola e menor largura do corpo, sem prejudicar a
estabilidade. Um sistema de bondes (ou ferro-carril urbano, ou tramway via sem protuberância, ou Straßenbahn, trem de rua etc.),
trata-se de um meio de transporte sobre trilhos com condições de trafegar pelas ruas, podendo penetrar em vias urbanas estreitas e afastadas, às
vezes levando o usuário à porta de sua residência. A isto poderíamos chamar a “penetrabilidade” do bonde, o que não têm os metrôs e trens urbanos de
superfície, embora sejam estes extremamente úteis e necessários nos grandes centros.
No Brasil, existiram intensos serviços de bondes em muitas de nossas cidades,
geralmente grandes e médias, mas também em alguns poucos municípios pequenos, e, ainda hoje, em importantes cidades de alguns países, sobretudo
europeus, os serviços de bondes “comandam” a atividade dos transportes coletivos.
A cidade de Petrópolis contou com um serviço de bondes elétricos a partir de 1912, a
princípio com 15 km de linha em bitola métrica, e com carros fechados. O sistema ampliou-se em extensão e quantidade de veículos, prestando serviço
à população até extinguir-se em 1939.
Em São Paulo os bondes duraram até 1968; no Rio de Janeiro, embora o serviço tenha
sido suprimido em 1965, continuou circulando por mais três anos a linha do Alto da Boa Vista, com carros reformados para o estilo fechado (os bondes
do Rio eram do tipo aberto). Em todo caso, podemos dizer que o serviço de bondes no Rio não foi, a rigor, totalmente extinto, pois salvou-se o setor
de Santa Tereza, onde o sistema vem sendo amplamente restaurado e protegido, como opção satisfatória e favorecida pela preferência da população
local, e como tradição a ser preservada.
Luiz Costa de Lucca Silva
(Petrópolis, 22 de maio de 2000)
Fonte de consulta sobre Petrópolis, Rio de Janeiro e São Paulo: “HISTÓRIA DO
TRANSPORTE URBANO NO BRASIL” - autor: Waldemar Corrêa Stiel.
Veja também estes poemas sobre os bondes, do mesmo
autor... |