No dia 7 de maio de 1900, um menino atento acompanhava a
movimentação dos paulistanos em torno da inauguração do serviço de bondes elétricos na capital paulista.
O texto a seguir resumido é desse menino, o consagrado escritor modernista Oswald de
Andrade. Com o nome O Bonde e a Cidade, ocupa quatro páginas no livro Um Homem sem Profissão (Sob as Ordens de Mamãe), publicado pela
Editora Civilização Brasileira (Rio de Janeiro, 3ª edição, 1976):
Anunciou-se que São Paulo ia ter bondes elétricos. Os tímidos veículos puxados a
burros, que cortavam a morna cidade provinciana, iam desaparecer para sempre. Não mais veríamos, na descida da ladeira de Santo Antônio, frente à
nossa casa o bonde descer sozinho equilibrado pelo breque do condutor. E o par de burros seguindo depois.
Uma febre de curiosidade tomou as famílias, as casas, os grupos. Como seriam os novos
bondes que andavam magicamente, sem impulso exterior? Eu tinha notícia pelo pretinho Lázaro, filho da cozinheira de minha tia, vinda do Rio, que era
muito perigoso esse negócio de eletricidade. Quem pusesse os pés nos trilhos ficava ali grudado e seria esmagado facilmente pelo bonde. Precisava
pular. (...)
O projeto aprovado, começaram logo os trabalhos da execução. E anunciaram que numa
manhã apareceria o primeiro bonde elétrico. Indicaram-me a atual Avenida de São João como o local por onde transitaria o veículo espantoso.
Um mistério esse negócio de eletricidade. Ninguém sabia como era. Caso é que
funcionava. Para isso, as ruas da pequena São Paulo de 1900 enchiam-se de fios e de postes. (...)
Um amigo de casa informava: - o bonde pode andar até a velocidade de nove pontos. Mas,
aí é uma disparada dos diabos. Ninguém agüenta. É capaz de saltar dos trilhos. E matar todo o mundo...
A cidade tomou um aspecto de revolução. Todos se locomoviam, procuravam ver. E os mais
afoitos queriam ir até a temeridade de entrar no bonde, andar de bonde elétrico!
Naquele dia de estréia ninguém pagava passagem, era de graça. A afluência tornou-se,
portanto, enorme.
No centro agitado, eu desci a ladeira de São João que não era ainda a Avenida de hoje.
Fiquei na esquina da rua Líbero Badaró, olhando para o largo de São Bento, de onde devia sair a maravilha mecânica.
A tarde caía. Todos reclamavam. Por que não vem?
Anunciava-se que a primeira linha construída era a da Barra Funda. É pra casa do
prefeito! - O bonde deixava o Largo de São Bento, entrava na Rua Libero Badaró, subia a Rua São João, entrava na Rua do Seminário.
Um murmúrio tomou conta dos ajuntamentos. Lá vinha o bicho! O veículo amarelo e grande
ocupou os trilhos do centro da via pública. Um homem de farda azul e boné o conduzia, tendo ao lado um fiscal. Uma alavanca de ferro prendia-o ao
fio esticado, no alto. Uma campainha forte tilintava abrindo as alas convergentes do povo. Desceu devagar. Gritavam:
- Cuidado! Vem a nove pontos!
Um italiano dialetal exclamava para o filho que puxava pelo braço:
- Lá vem o bonde! Toma cuidado!
O carro lerdo aproximou-se, fez a curva. Estava apinhado de pessoas, sentadas, de pé.
Uma mulher exclamou:
- Ota gente corajosa! Andá nessa geringonça!
Passou. Parou adiante, perto do local onde se abre hoje a Avenida Anhangabaú. Houve
tumulto. Acidente?
Não andava mais, gente acorria de todos os lados. Muitos saltavam.
- Rebentaram a trave do lado! Não é nada!
Tiravam a trave quebrada, o veículo encheu-se de novo, continuou mais devagar ainda,
precavido.
E ficou pelo ar, ante o povo boquiaberto que rumava para as casas, a atmosfera dos
grandes acontecimentos. Nas ruas, os acendedores de lampião passavam com suas varas ao ombro acendendo os acetilenos da iluminação pública. |