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Monte Cabrão (4)

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Matéria publicada nas páginas A-1, A-4 e A-5 do jornal santista A Tribuna de domingo, 18 de setembro de 2011:


MONTE CABRÃO, ONDE FELICIDADE RIMA COM SIMPLICIDADE - As cerca de 1.200 pessoas que lá vivem trocaram as facilidades do supermercado ou do telefone fixo por quintais com mexeriqueiras e por amanheceres anunciados pelo canto dos pássaros. Ali as crianças brincam soltas, sem medo e com muito espaço à disposição

Foto: Rogério Soares, publicada com a matéria, na primeira página

 

O sr. sabe o que é PAZ?

Alcione Herzog

Da Redação

Certa vez, o poetinha Vinícius de Moraes (1913-1980), em mais um dia inspirado, quis explicar a um simpático magnata norte-americano por que felicidade não se mede em cifrões.

Foi assim que escreveu o famoso poema Olhe Aqui, Mr. Buster. Em 20 versos, Vinícius descreve a suntuosa (e vazia) vida do colega podre de rico. E, em apenas três perguntas finais, reduz todo o luxo do milionário a quase nada: "O Sr. sabe lá o que é um choro de Pixinguinha? O Sr. sabe lá o que é torcer pelo Botafogo? O Sr. sabe lá o que é ter uma jabuticabeira no quintal?"

Há um lugar em Santos onde jabuticabeiras, ou melhor, jaqueiras e mexeriqueiras no quintal valem mais do que torradeiras elétricas produzindo fatias saltitantes no café da manhã.

Há um lugar em Santos onde o cantar de corruíras, sabiás e sanhaços ao raiar do dia valem mais do que o ronco potente de BMWs atrasadas para levar seus donos ao trabalho. Por mais incrível que possa parecer, há em Santos um lugar onde a brisa do mar não se mistura a cheiro de protetor solar, onde o café é feito com coador de pano e onde se comem cuscuz e tapioca feitos na hora.

Esse lugar se chama Monte Cabrão. Fica na Área Continental de Santos, a 15 minutos de Vicente de Carvalho (Guarujá), num pedaço de terra entre a Rodovia Rio-Santos (BR-101) e o Canal de Bertioga. Não tem padaria, supermercado, telefone fixo e as correspondências não chegam em boa parte das casas.

Foto: Rogério Soares, publicada com a matéria, nas páginas A-4 e A-5

Vivem ali, de um jeito quase primitivo, cerca de 1.200 pessoas. Vizinhos praticamente desconhecidos e de quem os Mr. Busters tupiniquins, satisfeitos com suas varandas gourmet, certamente nunca ouviram falar. Em Monte Cabrão, habita uma gente que pode até não saber direito quem é Vinícius de Moraes, mas sabe, como o poeta, que felicidade rima com simplicidade.

Nos dias 13 e 14, nossa Reportagem passou quase 12 horas imersa no cotidiano deste povoado para vivenciar o jeito diferenciado com que seus habitantes levam a vida. Aliás, como diria Zeca Pagodinho (e esse os monte-cabrenses conhecem), lá é a vida quem os leva.

Nesse pedaço de terra cercado de mangue, as crianças brincam soltas, em meio a galinhas, patos e cachorros. As casa acompanham o traçado do Canal de Bertioga, e o espaço entre os portões e a maré não ultrapassa dez metros. São moradias simples, em cujas garagens, em vez de carros, há pequenos e velhos barcos estacionados.

Por todo lugar, há varais com roupas coloridas contrastando com diferentes tons de verde das árvores. O silêncio só é quebrado pelo som dos passarinhos. A hora passa devagar. As pessoas também passam lentamente pelo caminho de terra que circunda o bairro.

Não só flores

Queda de árvores e deslizamento de terra são riscos aos quais estão submetidos os moradores. E, em parte, lhes faltam água encanada e abastecimento regular de energia

 

Monte - Soubemos que o nome Monte Cabrão é uma referência ao monte com topo arredondado, desbravado em 1900 pelo imigrante nórdico Jacob Jensen, ao redor do qual surgiu o povoado. Resolvemos, ao nosso modo, também desbravar o lugar, dando a volta completa no monte. Contamos com a presidente da Sociedade de Melhoramentos, Francineide Souza, como guia.

Antes de andar os primeiros 20 metros, uma agitação toma conta das crianças e dos cachorros à beira da maré. Eram os primeiros pescadores que voltavam com os barcos cheios de caranguejos. As mulheres se juntam para ajudá-los a desembarcar os crustáceos.

Naquela terça-feira nublada, a pescaria terminou às 16 horas, um pouco mais cedo do que de costume. "A hora de pegar e largar o batente é definida pela maré e pela Lua", explica o catador de caranguejo Francisco Balbino, o Chico, de 47 anos.

Juntas, Lua e maré definem os dias de trabalho e os de descanso. Para saber se tem colheita no mangue, basta chegar até o quintal. Se ele estiver tomado pelas águas, é sinal de pesca ruim. Aí, vale tomar um trago de cachaça, jogar prosa fora com os amigos e esperar, sem pressa, que a Natureza o escale novamente.

Encontramos Chico remando de volta para casa na pequena embarcação de alumínio, ao lado de oito dúzias de caranguejos. Uma produção mediana para oito longas horas no mar. Depois de vender os bichos para fornecedores de beira de estrada, por R$ 8,00 a dúzia, Chico garante R$ 64,00.

É pouco? É muito? Para Chico, que já teve a oportunidade de ganhar mais "fichado" e ainda assim abriu mão do registro em carteira, R$ 64,00 por dia é mais do que suficiente. Do que ele precisa para ser feliz não tem cotação em real, dólar ou seja lá qual for a moeda. Do que ele precisa para sorrir chama-se liberdade. Mas essa conversa esquisita acabou ficando para o dia seguinte. Combinamos com ele um café da manhã para entendermos melhor esse assunto e voltamos á nossa meta: dar a volta no Monte Cabrão.

E fomos eu, o repórter-fotográfico Alexsander Ferraz e o motorista Roberto Pereira. No chão, entre areia, lama e pedaços de madeira, uma mangueira de plástico acompanha o trajeto. É que parte do povoado não tem água encanada. As mangueiras, ligadas a uma bomba em um poço que capta água de uma nascente, formam a rede de abastecimento.

Parte da comunidade também não tem energia elétrica regular. A fiação, clandestina, se camufla nos galhos de jaqueiras, goiabeiras e bananeiras.

"Perfurar rocha. Não nasci para aquilo", diz Francisco Balbino, contente

Foto: Alexsander Ferraz, publicada com a matéria

Carências - Os moradores de Monte Cabrão são cercados de Natureza mas, também, de carências. A maior preocupação de quem mora em áreas de risco é a queda de árvores ou o deslizamento de terra. "Quando chove, eu e meu marido não dormimos", conta Antônia de Oliveira, de 49 anos. Estão na mesma situação cerca de 30 famílias.

A vida é boa, mas é dura. E já foi pior, como conta o comerciante Durval dos Santos, de 72 anos, que encontramos já na parte pavimentada e nobre do povoado. Durval chegou ao local em 1960 e construiu o primeiro bar do bairro, próximo à Escola Rural de Monte Cabrão. O estabelecimento fica diante do campo de futebol, mais freqüentado nos fins de semana.

"Quando cheguei, não tinha a Piaçaguera (Rodovia Cônego Domênico Rangoni). Ia buscar mercadoria de barco a remo em Santos", conta o pioneiro.

Lazer - Futebol e os botecos são os divertimentos dos adultos, principalmente nos fins de semana, quando muita gente vem de Vicente de Carvalho para degustar o peixe frito no Bar do Durval ou um lambe-lambe (prato típico de comunidades caiçaras à base de arroz e mariscos) no Bar da Lu.

As mulheres gostam de assistir a novelas e, geralmente, dormem cedo. Aos domingos, vão à missa na Capela São Pedro Pescador ou freqüentam uma das duas igrejas evangélicas.

Os jovens têm a sorte de contar com uma lan house, na Rua Principal, para acessar a Internet. De vez em quando, o programa é ir às lanchonetes de Vicente de Carvalho.

Depois de uma hora de caminhada, já chegando no nosso ponto final, Tainara Silva, de 17 anos, conta como é ser adolescente num lugar onde, até um ano atrás, nem linha de ônibus havia. Como quase toda jovem, ela tem Orkut (rede social). Mas não possui computador e usa o de uma amiga quando "a Internet pega".

Já de noite, fomos convidados para um lanche na casa de Francineide, com direito a café com leite, pão com manteiga e ovos mexidos. Na parede da casa simples, que um dia serviu de alojamento para os trabalhadores que construíram a Rio-Santos, na década de 1970, um quadro ostenta a seguinte frase: "A quem tiver sede, de graça lhe darei da fonte da água da vida - Apocalipse 2:17".

Nos despedimos com a sensação de que felicidade, para quem mora em Monte Cabrão, não tem preço. É de graça.

Neste tranqüilo bairro da Área Continental de Santos, o caminho de terra serve como calçada, ...

Foto: Alexsander Ferraz, publicada com a matéria

 

... crianças brincam à beira da maré como não mais se costuma fazer numa cidade crescentemente tomada por arranha-céus. ...

Foto: Alexsander Ferraz, publicada com a matéria

 

... Mesmo as rotineiras saídas do ônibus que leva e traz crianças da escola são motivo para diversão da garotada

Foto: Alexsander Ferraz, publicada com a matéria

 

Liberdade, o salário do catador de caranguejo

Como prometido, na última quarta-feira, A Tribuna voltou à casa do catador de caranguejo Francisco Balbino, o Chico, para tomar café com sua família e acompanhá-lo em um dia de trabalho no mangue.

Caprichosa, a Mãe Natureza decidiu que o dia para ele seria de folga e mandou chuva. Chegamos às 6h40, na esperança de o tempo melhorar. "Comesse tempo, os bichos ficam entocados", explica o pescador, já decidido a não ir para o mar.

O jeito foi sentar à mesa, tomar café com tapioca e tentar descobrir o que faz Chico e tantos outros pescadores não pensarem em outra vida. Ele conta que aprendeu o ofício com o pai, em Forte Velho, distrito de Santa Rita, na Paraíba. Começou aos 7 anos e se apaixonou pela profissão.

Em Santos, trabalhou como operador de perfuratriz em uma pedreira. A renda era fixa e maior, mas não o fazia feliz. "Meu serviço era perfurar as rochas para enfiar as dinamites. Não servia para aquilo. Desisti e voltei para o mangue. Com meu barquinho, sou livre. Meu patrão é a Natureza".

Quer salário melhor que sossego e liberdade? Nem Chico e nem sua esposa, Fabiana da Silva, de 29 anos, pedem mais do que isso para criar Fernanda, de 12 anos, e Fernando, de 6. "Se depender de mim, não saio daqui", diz Fabiana, que descreve a rotina simples da família: "Acordo às 6h15 e chamo os meninos para a escola. Às 6h40, levo o menino até o Ônibus da Seduc (Secretaria Municipal de Educação). A menina vai a pé com as colegas".

A essa altura, Chico já saiu para pescar e Fabiana começa a rotina do lar: arrumar a casa, lavar roupa preparar o almoço. Quando é preciso, vai a Vicente de Carvalho comprar algo que falta na despensa ou buscar a correspondência no Correio. "A cidade é muito barulhenta. Minha diversão é conversar com as vizinhas".

À tarde, Fernando brinca com os colegas e Fernanda faz curso de dança do ventre na escola. Às 17 horas, a família se recolhe. "As crianças entram, tomam banho e jantam. Às 19 horas, já estamos dormindo. No dia seguinte, tudo de novo".

Dia após dia

A família de Chico acorda cedo, para mandar as crianças à escola. Ele vai pescar. A esposa, Fabiana, cuida da casa. Sai raramente, para evitar o barulho da vida urbana

 

Chico e Fabiana, como tantos outros moradores do Monte Cabrão, não esperam muito mais da vida do que bons dias de pescaria e de bate-papo com amigos. Mas os habitantes do lugarejo não são os únicos a perceber, na simplicidade, o segredo da felicidade.

O operador de máquinas Oswaldo da Conceição, de 56 anos, e o montador de móveis Aldo Venâncio, de 49, são a prova. Naquela manhã fria, os visitantes de Santos batem à porta de Chico em busca de um trago de cachaça com cambuci e de conselhos para uma pescaria com tarrafa.

Alugam um pequeno barco, passam repelente natural à base de óleo e citronela e, munidos de capas de chuva e uma bolsa cheia de sanduíches de mortadela, partem sorridentes, remando devagar sob garoa fina. "Tá vendo a água bulindo ali? É peixe. Podem ir com fé", avisa Chico.

Sabe lá o que é pescar tainhas e robalos em pleno Canal de Bertioga: Quem conhece Monte Cabrão, povoado quase isolado na Área Continental de Santos, sabe.

A tranqüilidade cotidiana

É hora do lanche na casa de Francineide Souza, da Sociedade de Melhoramentos do Bairro: café com leite, pão com manteiga e ovos mexidos. Uma refeição alegre numa casa simples, que um dia serviu de alojamento para os operários que construíram a Rodovia Rio-Santos, na década de 1970

Foto: Alexsander Ferraz, publicada com a matéria

 

Durval dos Santos é um dos mais antigos por lá: chegou em 1960. Pertence a ele o primeiro bar instalado no Monte Cabrão. A vida nem sempre foi fácil, a despeito do sossego. "Quando cheguei, não tinha a Piaçaguera (Rodovia Cônego Domênico Rangon, antiga Piaçaguera-Guarujá). Ia buscar mercadoria de barco a remo em Santos"

Foto: Alexsander Ferraz, publicada com a matéria

 

Visitantes alugam um pequeno barco, passam repelente natural à base de óleo e citronela e, munidos e capas de chuva e uma bolsa cheia de sanduíches de mortadela, partem sorridentes, remando devagar sob garoa fina. "Tá vendo a água bulindo ali? É peixe. Podem ir com fé", assegura Francisco Balbino, o anfitrião que sobrevive de catar caranguejos

Foto: Rogério Soares Ferraz, publicada com a matéria

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