Peabiru, a rota perdida
Historiadores tentam desvendar origem do caminho que ligava o Brasil ao antigo império Inca
André Kovalevski (*)
Colaborador
A história brasileira, a despeito da quantidade de livros e
pesquisas publicadas ao longo dos anos, ainda é um enredo repleto de perguntas sem resposta. E o que mais atormenta o imaginário de historiadores e
pesquisadores é algo tão misterioso quanto inspirador: como seria o Brasil antes da chegada de portugueses e outros exploradores europeus?
Na busca por respostas, alguns indícios têm vindo à tona, os quais revelam algo no mínimo
surpreendente: comerciantes e soldados Incas teriam pisado em território brasileiro e mantido, mesmo que isoladamente, contato com nossos indígenas,
especialmente os guaranis.
Em seu livro Náufragos, Traficantes e Degredados (Editora Objetiva, 1998), o
jornalista Eduardo Bueno dá algumas pistas do que foi o Peabiru: "Não se tratava de uma mera vereda na mata: era quase uma estrada, sinalizada por
certa erva muito miúda".
A denominação Caminho do Peabiru aparece pela primeira vez no livro História da
Conquista do Paraguai, Rio da Prata e Tucumán, escrito pelo padre jesuíta Pedro Lozano, nascido em 1697.
Ponto de partida - O que pouca gente sabe, especialmente na Baixada Santista, é que
São Vicente, além de ser a primeira vila organizada fundada no País, foi um dos pontos de partida da rota, cujo nome, em tupi-guarani, significa
pe (caminho) e abiru (gramado amassado).
A trilha que ligava o litoral brasileiro aos Andes também era alcançada a partir de Cananéia
(SP) e Porto dos Patos (SC).
O que tem dificultado o trabalho dos estudiosos é o fato de que o desenvolvimento,
particularmente a agricultura, acabou por apagar boa parte do seu traçado original. Em São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato
Grosso do Sul praticamente não existem mais trechos originais.
Somente em 1970 alguns vestígios do Peabiru foram encontrados pela equipe do professor Igor
Chmyz, da Universidade Federal do Paraná. O grupo achou cerca de 30 km da trilha na área rural de Campina da Lagoa (PR). Ao longo do trecho, o
pesquisador descobriu sítios arqueológicos com restos de habitações utilizadas, provavelmente, quando os índios estavam em viagens.
Algumas iniciativas têm buscado recuperar parte da rota. Trabalho do arquiteto Daniel Issa
Gonçalves, pela USP, posiciona o caminho sobre a atual malha urbana da cidade de São Paulo. "As trilhas indígenas são um dos raros testemunhos da
vida no período pré-colombiano brasileiro", afirma Daniel.
Mas o que ainda intriga os pesquisadores é quando e como o caminho teria sido criado. A
pesquisadora Rosana Bond diz ser difícil datar o Peabiru com precisão.
Mil anos - Em suas pesquisas, ela diz ter encontrado hipóteses de que o Peabiru pode
ter sido utilizado pelos Itararés, no interior paranaense, já nos anos 400 ou 500 D.C., portanto, mil anos antes da conquista européia. "Achei
também suposições de que o caminho, em seu trecho paraguaio e andino, já era usado no século VIII", afirma.
Mas a principal característica que faz do Peabiru algo excitante aos olhos de muitos
pesquisadores é a possibilidade dele ter sido utilizado para o contato entre índios brasileiros e os Incas.
"Isso é praticamente certo. Há autores que defendem a tese de que o Peabiru teria sido
aberto de Oeste a Leste, de lá para cá, dos Andes rumo ao Brasil, e não o contrário. É provável que comerciantes e soldados Incas tenham estado, em
algumas oportunidades, no território brasileiro. Não foi uma presença constante, pois os nossos índios não permitiam", diz Rosana.
Não bastassem essas afirmações, outro detalhe também contribui para aumentar a aura de
mistério que cerca o caminho: "Chama a atenção a existência de pedras orientadas, de uso astronômico, e de relógios solares - semelhantes aos
incaicos - em alguns pontos do Sul do Brasil, inclusive no litoral", comenta Rosana.
Nas palavras do escritor e historiador Hernâni Donato, a maior autoridade brasileira no
assunto e autor de mais de 60 livros, é fundamental olhar o caminho pelos olhos dos Incas e não apenas pelo prisma dos europeus.
"Do coração do império, as estradas Incas apontavam para os quadrantes da América. As mais
importantes, pavimentadas, protegidas, arborizadas e regadas. Outras, secundárias, meramente de exploração - como o Peabiru - menos cuidadas,
preparando o futuro avanço para o Atlântico".
A saga do misterioso Aleixo Garcia
Pouca gente sabe, mas o verão de 1524 marcou o início de uma das jornadas mais
extraordinárias da história do Brasil. Naquele ano, o português Aleixo Garcia - não se sabe quem era, nem onde ou quando nasceu - depois de viver
por oito anos entre os índios, partia do porto dos Patos, no litoral catarinense, rumo ao Peru.
Durante sua convivência com os nativos, Garcia ouviu diversos relatos sobre a existência de
uma serra de pura prata e de um poderoso rei branco. Acompanhado por um exército de 2 mil índios flecheiros (quase todos carijós), Garcia partiu
pelo Caminho do Peabiru rumo às fabulosas riquezas do Império Inca.
Mel e pinhão - Guiado pelos nativos, ele venceu a Serra do Mar e alcançou o primeiro
trecho do Peabiru. A dieta alimentar, durante a jornada, era composta de mel silvestre, palmitos, milho e farinha de pinhão. Foram quatro meses para
deixar Santa Catarina e chegar ao local onde hoje está a cidade de Assunção, no Paraguai.
No Sudeste da Bolívia, Garcia e seus índios flecheiros atacaram os postos fronteiriços do
Império Inca, nas proximidades da atual cidade do Sucre. Garcia deve ter estado a menos de 150 km de Potosi, a fantástica montanha de mais de 600 m,
quase que inteiramente de prata pura e que deu origem à lenda da serra de prata. O rei branco, comentado pelos indígenas, também existia: era o inca
Huayna Capac, que vivia em Cuzco, a capital imperial.
Peitorais de ouro - Após saquear a região, enchendo cestos com taças de prata,
peitorais de ouro e objetos de estanho, o grupo bateu em retirada. Entretanto, ao chegar às margens do rio Paraguai, foram atacados pelos temíveis
índios Payaguá. Entre as centenas de mortos estava o próprio Aleixo Garcia.
Após Aleixo Garcia, o Peabiru ficou conhecido e muito utilizado. Em 1531, Pero Lobo, um dos
capitães de Martim Afonso de Sousa (fundador de São Vicente), fracassou em sua expedição pela rota. Também passaram pelo caminho Alvar Nuñes Cabeza
de Vaca, em 1541, e Ulrich Schmidel, em 1553.
Os jesuítas Pedro Lozano e Ruiz de Montoya percorreram a trilha em suas missões de
catequização dos índios guarani. Os bandeirantes paulistas, como Raposo Tavares, trilharam o Peabiru para atacar as missões jesuítas.
(*) André Kovalevski é jornalista, pesquisador e
diretor da Intelicom.
Encontro de dois mundos: na igreja matriz de Sabará (Minas Gerais) existe esta porta em
estilo chinês, importada de Macau
Foto de Michael Teague, in A Aventura Portuguesa, Editorial Verbo, 1991, Lisboa,
Portugal
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