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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Saint-Hilaire e o Felix que não foi feliz

No tempo do Império, no século XIX, diversas expedições científicas foram promovidas por sábios europeus, com apoio dos imperadores, para ampliar os conhecimentos sobre o Brasil, sua cultura, flora, fauna e sua gente. Entre elas, a do botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), que esteve no Brasil de 1816 a 1822. Na obra Viagem à Comarca de Curitiba, o sábio cita José Felix, em cuja Fazenda Fortaleza se hospedou. E foi no porto de Santos que esse José Felix conheceu Onistarda, que seria sua esposa e o infelicitou até a morte.

O relato dessa tragédia consta nesta matéria publicada pelo jornal santista A Tribuna, nas páginas 17 e 18 da edição de domingo, 30 de julho de 1959 (ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da página 17 com a matéria

OS CRIMES QUE NÃO FORAM ESQUECIDOS… - XVIII

A tragédia que nas viagens ao interior do Brasil Saint-Hilaire presenciou

Texto e ilustração: Alberto Martins

Texto de Raimundo de Menezes
Ilustrações de Mick Carnicelli

(Especial para A Tribuna)

O erudito botânico e infatigável explorador francês Auguste François Cesar Provençal de Saint-Hilaire, em seis volumes de suas interessantíssimas Viagens ao interior do Brasil, nos relata as curiosas peripécias que viveu, percorrendo, durante seis anos, numerosas províncias do Império.

Em 1816, aportou ao nosso país e palmilhou 15.000 quilômetros, fazendo pesquisas da sua especialidade e contribuindo assim para que a nossa pátria se tornasse conhecida nos meios científicos do resto do mundo.

Foi em 1820 que o infatigável sábio esteve em Campos Gerais do Paraná, e, visitando a vila de Castro, situada a 95 léguas de São Paulo, então considerada a 2ª e mais tarde a 5ª Comarca desta Província, ali testemunhou um dos episódios romanescos mais emocionantes, que nos expõe em um dos seus livros de viagem, vertido do francês pelo historiador Davi Carneiro.

Ficou esse episódio conhecido como o drama da Fazenda Fortaleza, autêntico romance da vida real, em que figuraram como protagonistas o sargento-mor José Felix da Silva, sua esposa Onistarda Maria do Rosário e sua filha Ana Luísa.

O botânico Auguste de Saint Hilaire, testemunha do Drama da Fazenda Fortaleza, e que nos relata o estranho episódio em um dos seus curiosos livros de viagem
Imagem e legenda publicadas com a matéria

O infeliz José Felix, nascido em 1710, em lugar ignorado, era filho dos lusitanos João José da Silva e de dona Mécia Catarina dos Passos. A terrível Onistarda era natural deste Estado, e vinha a ser filha de Antônio Ferreira de Miranda e de sua mulher, dona Maria do Rosário, residentes em Taubaté.

Numa viagem, por mar, entre Santos e Paranaguá, ao passar por aquela cidade, vieram a encontrar-se, acidentalmente, reunidos pela misteriosa mão do destino, os dois principais personagens desta história tão singular.

José Felix ficou perdidamente enamorado da estranha e esquisita moça de olhos azuis claros, e começou ali o seu amor de perdição…

Principia o drama passional – Nos começos, os pais da bela Onistarda opuseram empecilhos a essa união. Finalmente concordaram e realizaram-se as bodas naquele 8 de dezembro de 1781, entre as maiores pompas e festas, servindo de padrinho o capitão-mor. Compareceram os juízes ordinários, os vereadores, os meirinhos, com suas insígnias e seus espadins, os "homens bons".

Após a cerimônia, foram os nubentes morar na Fazenda Fortaleza, que ficava na vila de Castro. Começou aqui o drama passional que vem contado, com minúcias atraentes, pelo sábio Saint-Hilaire. Descobriu, desde logo, José Felix que a esposa não era a virgem que ele esperava encontrar. A luta, entre os dois, se esboçou violentíssima. Nasceu recíproco ódio de morte. Apesar de tudo, a fim de evitar maiores escândalos, continuaram a viver juntos, como se nada houvesse sido descoberto pelo marido…

Meses depois, vinha para a vida o único rebento. Foi batizado com o nome de Ana Luiza. Parecia que as coisas iam agora tomar outro rumo, com a vinda da filha. Mas, qual! A menina cresceu, alimentada de ódio, sempre robustecida de rancor contra o pai, e aquele fel ia sendo inoculado, cada dia que passava, pela alma revoltada da progenitora de índole má.
(N. E.: era comum, no início do século XX, o erro de chamar de progenitora a mãe, quando a palavra na verdade designa a avó).

Um dia, José Felix foi vítima do primeiro atentado, que lhe armou a esposa irascível. O sargento-mor, mais ágil que o agressor, um português desconhecido, conseguiu escapar ileso ao tiro de bacamarte. E matou-o antes com um golpe de espada em pleno coração!

Quando sofreu o primeiro atentado, não tinha ele ainda 40 anos. Era um homem que começava precocemente a envelhecer. Arrepiante a tragédia da sua vida!

Certa vez, sem segundas intenções, o sargento-mor, na presença da esposa, achou bonita a escrava Rosa, que servia à mesa, e "cuja dentadura branquíssima era ressaltada pelos lábios grossos e vermelhos, e pela tez de ébano…"

Foi o bastante. "No almoço do dia seguinte, numa bandeja de prata, a pobre menina foi obrigada a trazer-lhe, ensanguentados, os seus lindos dentes, que ele, em má hora, admirara…"

A pobre escrava foi obrigada a trazer, numa bandeja de prata, os seus lindos dentes ensanguentados que ele admirara

Imagem e legenda publicadas com a matéria

A maldade de dona Onistarda – A fama da maldade de dona Onistarda correra mundo, alarmando os habitantes daquela região.

Várias tradições orais foram colhidas pelo historiador Davi Carneiro, que, entre outras, nos revela esta: "Quando um escravo lhe desobedecia, mandava que o pregassem a prego, pela orelha, na parede. Depois de algumas horas de sofrimento, Onistarda repetia a ordem que antes não fora cumprida. O escravo, para evitar maiores dores e perseguições futuras, rasgava a orelha e ia cumprir a missão que novamente lhe fosse dada em condições tristes e penosas".

Onistarda chegou ao desplante de, com o intuito de aumentar o ódio da filha contra o pai, insinuar-lhe que ela não era filha dele…

Um dia, José Felix quis fazê-la casar. Escolheu-lhe um ótimo partido. Negou-se a moça, terminantemente, a obedecê-lo. Qual não foi a sua surpresa quando veio a descobrir, meses mais tarde, que se achava grávida! Procurou indagar quem fora o autor de sua sedução e nada conseguiu.

Tempos depois, surgiu na fazenda, vindo de Jaguariaiva, um peão chamado Manoel José do Canto, que se enamorou de Ana Luiza, e, mesmo naquele estado, concordou em com ela se casar. Não muitos anos passados, carregada de filhos, enviuvou e retornou à "Fazenda Fortaleza".

Outros atentados veio a sofrer o infeliz José Felix, que ficou marcado de numerosas cicatrizes, pelo corpo todo, e aleijado. Aquilo era uma verdadeira vida de inferno!

Num desses atentados foi preso um tal de Manoel Alves, que confessou que agira a mandado de Onistarda, a qual, em paga, lhe prometera a própria filha Ana Luiza, como prêmio!

Onistarda foi presa como autora intelectual do crime, e, pelas autoridades, posta sob a guarda do próprio marido.

Final da tragédia – O sargento-mor José Felix da Silva, após uma vida doméstica tão atribulada, com 60 anos de idade, "mutilado, estropiado, coberto o rosto de barba longa, de meia polegada", era um homem envelhecido antes do tempo.

A tragédia daquela existência, que rolava dolorosamente há 41 anos, ia chegar ao seu epílogo.

Saint-Hilaire afirma que José Felix se estabelecera na "Fazenda Fortaleza" no começo do século XIX, num lugar apenas frequentado por selvagens.

"Era homem de espírito e bom senso. Estudara em S. Paulo e conversava muito bem. Felix passava por ser dois mais ricos proprietários da província de S. Paulo. Detestado por sua mulher e filha, chegou a tal ponto de desconfiança que tinha sob chaves as suas menores provisões".

"Quando abandonei a Fazenda Fortaleza – escreve ainda Saint-Hilaire – a 13 de fevereiro de 1820, e no momento da minha partida, recebi considerável presente, o qual, com a excelente hospedagem que me dera durante minha estada em sua casa, desmentia inteiramente a reputação de avareza que tinha na sua vizinhança".

Escarrou no rosto do marido! – Dois anos mais tarde, a 27 de abril de 1822, caiu morto repentinamente José Felix da Silva, conforme o seguinte atestado: "
O tenente-coronel José Felix – casado – aos 27 de abril de 1822, na sua fazenda de Fortaleza, faleceu, sem sacramento, por ser repentino, e sem testamento, o tenente-coronel José Felix da Silva, da idade de 62 anos, mais ou menos. Casado com d. Onistarda Maria do Rosário. Foi solenemente encomendado: acompanhado e sepultado por mim e mais clérigos paroquianos que se achavam presentes na matriz desta vila de Castro. (a) Padre Antônio Pompeu".

Afirma Davi Carneiro que algumas tradições dão como causa ao repentino da sua morte o veneno de difícil constatação naqueles tempos. Sobre o cadáver jogou-se Ana Luiza para dele arrancar a chave da prisão materna.

Vestido pelos vizinhos, o corpo esperou condução para ser enterrado em Castro. Dona Onistarda, posta em liberdade pela filha, não se contendo em seu ódio de morte, teve um gesto selvagem e mesquinho:

"Foi até ao cadáver, levantou o lenço que lhe cobria o rosto e nele escarrou, rindo de prazer! E, satisfeita, retirou-se, calma e fria, a passos lentos…"

Estava finda a tragédia, que vem revelada por Saint-Hilaire. Quando Davi Carneiro encontrou o caso da Fazenda Fortaleza, no livro de Saint-Hilaire, apresentou-o, mandando um recorte ao romancista Paulo Setubal: "O enredo aí vai. Se julgar aproveitável para desenvolvê-lo, será fácil a si, hábil manejador da pena e do romance".

Setubal respondeu: "
Pareceu-me interessantíssimo o romance passional de José Felix da Silva e se tiver tempo e saúde para tomar sobre os meus ombros a tarefa, depois de terminar o Amador Bueno da Ribeira, tentarei…"

Mas, Paulo Setubal não chegou a realizar o romance, pois a morte o colheu antes do tempo…

Encontraram-se no porto de Santos. Ele logo ficou apaixonado por ela. Assim nasceu a violenta paixão de José Felix por Onistarda

Imagem e legenda publicadas com a matéria

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