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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Amor e um delicioso copo de garapa em 1915

Sabor especial seria devido à forma de coar o líquido?

Uma irônica reclamação sobre a higiene com que eram servidos produtos aos turistas - como o caldo de cana-de-açúcar, também conhecido como garapa - nos caminhos praianos de Santos e São Vicente foi feita nesta crônica, publicada nas páginas 16 e 17 da edição de 1º de agosto de 1915  (ano 2/nº 24) da revista paulistana A Cigarra, (preservada no Arquivo do Estado de São Paulo - acesso em 25/10/2011) - em ortografia atualizada nesta transcrição:

Imagem: reprodução da página 16 da publicação

Um copo de garapa

THEO, de Santos

É a segunda crônica que envio, desta deliciosa praia de banhos. Não fosse o completo descanso que me impus, durante estas férias, e um sem número de coisas interessantes poderia contar. Por aqui, tudo vai correndo às mil maravilhas: até a minha Binoca – é assim que chamo a minha mulher – conseguiu passar duas semanas sem atrito comigo.

Dizem que as briguinhas entre marido e mulher são sintomas de muito amor; é possível que, de fato, assim seja! Embora convencido de que minha mulher e eu muito nos queremos; embora viva obcecado por esse laço de afeição que nos liga há tantos anos, nem por isso perdi a capacidade de julgar, com justiça, as coisas que nos dizem respeito. E é talvez por isso que não atribua exclusivamente ao muito amor que me devota a minha esposa a causa das nossas quizílias.

Nós brigamos, forçoso é confessá-lo, porque a minha Binoca é muito neurastênica.
Trata-se de uma moléstia como outra qualquer: não sendo infectuosa, nem contagiosa, não haveria razão para que eu deixasse de proclamar, alto e bom som, que a causa das nossas brigas reside na neurastenia da minha mulher.

Como disse, acabamos de passar duas semanas sem o menor atrito, e esse fato impressionou-me bastante! Já começava a sentir saudades das nossas últimas discussões! Aí vai o resumo dos dois últimos pegas:

- Você, hoje, não tomou sorvete, ao jantar!

- É verdade; abusaram da hortelã-pimenta; achei-o com gosto de dentifrício; além do mais, não me estou sentindo bem.

- Por que não toma uma dose da minha homeopatia?

- Deus me livre!

- É por isso que você anda magro: a sua doença não passa de mania; você precisa comer e deixar esses luxos!

- Não me acho magro; ao contrário, estou pesando 65 quilos!

- 65 quilos, esse palito!

- Palito é você com toda a sua homeopatia!

- Por favor, não zombe da minha medicina; parece até que você ignora que a homeopatia se assenta em princípios científicos muito sólidos e incontestáveis!

- Com efeito: similia similibus

- Como é? !!!

- Sim, esse é o princípio básico da homeopatia, e significa: curar-se uma dor de cabeça, provocando-se no doente, e por meio de uma insignificante dose de aguinha, outra dor de cabeça. Ora, sendo princípio corrente em mecânica que duas forças iguais e contrárias, atuando sobre o mesmo ponto, se destroem, segue-se que duas dores, provocadas por causas diversas e atuando sobre a mesma cabeça, devem forçosamente anular-se.

Em tese, tudo isso é muito bonito; na prática, porém, não tem grande aplicação, mesmo porque as tais aguinhas nem sequer poder têm para provocar uma dor de cabeça! Haja vista ao que se deu com o filho do dr. Oliveira, que ingeriu 12 vidros de drogas homeopáticas e nada sofreu! Eis, minha filha, como se desmoraliza uma ciência!

- Percebi logo que o seu intuito é provocar-me, dizendo tolices!

- Tolices, não, senhora!

- Tolices, repito.

- Olhe, se continuar nesse tom, meu bem, acabo proibindo a entrada da homeopatia em nossa casa.

- E onde foi você buscar autoridade para tal proibição?

- !!!...

Não mudasse eu de assunto, e só Deus saberia onde iríamos parar!

"Um interessante grupo de banhistas na Praia do José Menino, em Santos"

Foto e legenda publicadas na página 14 da revista A Cigarra de 1/8/1915

Já no dia anterior, tínhamos registrado o seguinte diálogo:

- Onde foi, todo perfumado?

- É boa: fazer uma visita!

- E para que todo esse chiquismo?

- Pois você não sabe que na casa do dr. Ribeiro há muita moça bonita?

- São coisas que você não devia dizer, nem brincando! Nãofica bem a um homem da sua idade dizer asneiras.

- Asneiras?!!! Mas… minha filha, uma mulher deve sempre sentir-se ufana ao ver o seu marido dar letras…

- Dar letras: um velho dando letras! Tem graça!

-Isso lá não: velho, tenha paciência…

Senti o sangue subir-me à face; ia ficar enérgico; mas… lembrei-me da neurastenia, e julguei melhor mudar de assunto!

"Grupo surpreendido pelo repórter fotográfico d'A Cigarra em um bote, na Praia do José Menino"

Foto e legenda publicadas na página 33 da revista A Cigarra de 1/8/1915

Sinto sempre imenso prazer em provocar a minha boa Binoca; e, se o faço, é porque já verifiquei que ela precisa dessas discussões: a sua neurastenia o exige.

Como todo o marido deve estudar a sua mulher, a fim de conhecer as necessidades do seu temperamento, as exigências das suas manias e doenças, fui sempre muito solícito em não deixar faltar a Binoca uns bons pretextos para as suas discussões.

A mudança de ares, os passeios e as diversões, porém, como que por encanto, afastaram da nossa convivência aqueles atritozinhos que já faziam parte integrante da nossa vida conjugal. E como foram longas aquelas duas semanas! Como sofri a alteração por que ia passando a minha Binoca! Não parecia a mesma: senti que ia perdendo um pouco da estima que me devotava!

Não tardou, porém, que tudo voltasse às boas. Um passeio de automóvel, lá pelos lados da ponte pênsil, deu-nos ensejo para o início dos nossos antigos afetos.

Íamos a caminho da Praia Grande, vencendo as encostas de um morro, quando um casebrezinho muito pobre e quase em ruínas atraiu a nossa atenção. Fizemos uma parada e pedimos um copo de garapa. Binoca não queria provar o delicioso caldo de cana, mas, tanto eu insisti, tantos louvores teci ao sabor do suculento líquido, que acabou por aceitar o meu oferecimento.

Íamos partir quando teve ela a infeliz ideia de meter a cabeça para dentro de um quartinho escuro do casebre, de onde uma vivaz menina trazia os copos de garapa.

Deparou-se-lhe, então, o seguinte quadro: a garapa estava sendo coada por uma velhinha, muito velha, através de uma toalha e dentro de uma bacia já bem carcomida pelos longos anos de uso!

Resultado:

- Que horror; venha ver que desaforo! Foi por isso que você me ofereceu garapa: outra coisa não podia eu esperar de você! Olhe para isso!

- Mas, minha filha… eu não sou culpado, e, além do mais, é possível que esteja tudo muito limpinho!

- Como não é culpado? Eu bem não queria garapa; e você a insistir, a insistir! E, com certeza, naquela bacia até pés se lavam! E, na toalha, enxugam-se horrores! Ah! Meu Deus, sou a mulher mais infeliz do mundo!

Íamos entrando no automóvel, quando ouço a pequena que nos havia servido, dirigir-se à minha mulher, gritando indignada:

- Nois nun semo porco como meceis; nóis nun lava os peis naquela bacia; nois lava nela só as mão e a cara!!!...

"Outro grupo fotografado para A Cigarra, por ocasião das últimas regatas realizadas, na Ponta da Praia, pelo Clube Saldanha da Gama"

Foto e legenda publicadas na página 37 da revista A Cigarra de 1/8/1915

No automóvel fui gozando um sem número de acres censuras, uma série interminável de lamúrias e queixumes, como já há duas semanas não ouvia!

Nesse mesmo dia, porém, ficamos mais amigos do que nunca: tudo devido ao delicioso copo de garapa!

SANTOS (Parque Balneário), julho de 1915 - THEO

Imagem: reprodução da página 17 da publicação

 

"Aspecto do salão do Parque Balneário, por ocasião do baile ali realizado em benefício da Capela de Santo Antonio do Embaré"

"Grupo de banhistas a passeio pela Praia do José Menino"

Imagem: reprodução da página 18 da publicação

 

"Grupo de rowers, posando para o repórter fotográfico d'A Cigarra, por ocasião das regatas realizadas na Ponta da Praia, pelo clube Saldanha da Gama"

"Grupo fotografado especialmente para A Cigarra, por ocasião das mesmas regatas"

Imagem: reprodução da página 21 da publicação

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