Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0318n1.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 01/10/09 18:26:54
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - IMPRENSA
A imprensa santista (19-B)

Leva para a página anterior
Logo após o fim da Primeira Guerra Mundial, uma série de jornais surgiu em Santos, entre eles o Commercio de Santos, de 1920, que na edição especial pelo centenário da Independência do Brasil, em 7 de setembro de 1922, dedicou duas páginas às artes em Santos (ortografia atualizada nesta transcrição):
 

 

Página do caderno especial de 7 de setembro de 1922

Acervo: Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos

 

Santos, a cidade que trabalha e canta

A mulher santista

Ao rendermos hoje o preito do nosso culto aos super-homens, que aqui nasceram,não devemos esquecer a flor da beleza e da graça que, ao lado da plêiade ilustre dos filhos desta cidade, se fez notar pelo fascínio da sua presença. Referimo-nos evidentemente à Mulher Santista, que, na distribuição de coroas de louros, deve ter a sua parte não pequena.

Geralmente, nos grandes momentos de apoteose aos vultos históricos, os homens olvidam ou ignoram as humildes companheiras desses gigantes - as mães, irmãs, esposas ou filhas - que, no recesso do lar, os encorajaram nas horas de desalento, os fortaleceram nos dias torvos de infortúnio e de ingratidão, os induziram aos grandes gestos, nos instantes decisivos, quando a vontade vacila e o êxito das nobres causas periclita. A admiração, a reverência e a estima do povo agradecido focalizam-se na figura soberana dum ser eminente nas Artes, nas Letras, na Ciência, na Política; muitas vezes, no entanto, esses homens representam o esforço de mil ignoradas dedicações das criaturas femininas que o cercam.

Quanto sacrifício, quanta abnegação, quanto carinho a mulher não despende, no segredo inviolável da casa, sem que lá fora se perceba!

Ela é a colaboradora silenciosa que não exige paga do seu trabalho. No dia da glorificação, contenta-se em ver exaltado o ídolo da sua existência e, amável e boa, vai levar a oferenda do seu incenso àquele de quem ela própria foi a criadora!

Cumpre-nos, pois, nesta hora única que estamos vivendo, dirigir algumas palavras de saudação à Mulher Santista. Por entre as expansões de alegria que já transbordam por estas ruas, queremos cumprimentar aquela que é um dos mais belos apanágios da família brasileira.

Dentre a galeria de senhoras notáveis que são o orgulho de Santos, pelo fulgor da sua inteligência e pelo encanto das suas qualidades, escolhemos um nome que simbolize plenamente a imagem da Mulher conterrânea. É a exma. sra. d. Zilda Pereira, cujo retrato honra estas colunas, e a quem toda Santos conhece e aprecia. Possuidora duma cultura invulgar, é uma artista de mérito digna dos grandes centros. Já teria o seu nome largamente afamado pelo pais inteiro, se não fosse a sua imensa modéstia.

É uma pintora exímia, dotada duma forte emotividade, duma extraordinária riqueza de imaginação, revelando, no colorido delicadíssimo de suas telas, o espírito equilibrado, aristocrático e exuberante de estrela.

Nesta época em que o cabotinismo dos medíocres anda a acenar, aos olhos dos basbaques, os penachos berrantes do seu tocar, surpreende verificar-se a penumbra que envolve talentos privilegiados como o de d. Zilda Pereira.

À clarinada da réclame, essa ilustre dama prefere a quieta paz do seu magistério, o sossego obscuro do convívio das suas discípulas, a quem ensina, como uma sacerdotisa, os transcendentes mistérios da sua Arte.

Nem lhe faltam, para completar o símbolo, todas as virtudes estimáveis que exornam o coração da mulher santista - a bondade que trescala, como um perfume, do olhar, do gesto, da palavra e da ação; a caridade que enxuga os olhos lacrimosos e faz calar as bocas famintas; a piedade que eleva os templos; a mansidão, a perseverança, a austeridade...

Portanto, na exma. sra. Zilda Pereira saudamos uma genuína representante da Mulher Santista, nesta data em que os pró-homens desta cidade estão sendo alvo das gerais demonstrações de respeito.

Zilda Pereira

Imagem publicada com a matéria


Santos, sob cujo céu abriu os olhos à luz a trilogia dos fautores máximos da nossa emancipação política, foi também o ninho em que ensaiaram o vôo para futuros surtos alguns poetas reverenciados na vasta república das Letras. Berço de heróis, como Bartolomeu de Gusmão, e de estadistas como José Bonifácio, costuma ser citado como um empório comercial, onde burburinha uma multidão de homens utilitários, egoístas e afanosos, uma estação balneária, em que dispépticos manipuladores do ouro vêm revigorar as vísceras fatigadas, sob a voluptuosa carícia do mar...

Flávio Montenegro

Imagem publicada com a matéria

No entanto, um poeta aqui nascido ocupa merecidamente uma poltrona da milionária Academia Brasileira e outros, aqui surgidos, aqui educados, opulentam o meigo idioma com a seara opima do seu sonho... Terra de trabalho, esta cidade é também um ambiente propício ao recreio das altas cogitações de espírito. Ao lado dos corretores de café, sempre houve, neste rincão, entusiastas corretores de... rimas... Que isto de negociar sobre gêneros de primeira e última necessidade não impede o benévolo comércio com as Musas...

De longa data existe a aristocracia mental santense. Já nos tempos pré-históricos da varíola e da febre amarela, que Deus haja, nas horas vagas, de volta ao lar, desembaraçados da inferneira das ocupações materiais, alguns moços espanejavam o cérebro exausto da revoada de algarismos, que o atulhavam, e, à luz de fuliginosos lampiões de querosene, garatujavam qualquer coisa sonoramente sentimental, que, dias após, era lida com sofreguidão, impressa nas folhas volantes da imprensa diária ou declamada na íntima camaradagem das tertúlias...

Bom tempo aquele, em que não havia a vulgaridade dos cinemas, nem a tentação dourada das casas de tavolagem! A cidade adormecia pacatamente, às oito horas, sob o largo bocejo dos combustores públicos, sem vivalma nas alfurjas escuras, escusas e mal calçadas. Bom tempo!

Martins Fontes

Imagem publicada com a matéria

Livrando-se, a pouco e pouco, do pesadelo das epidemias, que a tornavam quase lendária, enchendo os cemitérios de cruzes, Santos engatinhava para o Progresso, lentamente, devagarinho, sem grande alvoroço para alcançar a meta... Morto estava, desde 1874, o formoso espírito de Xavier da Silveira, cujo desaparecimento, aos 33 anos de idade, deixara um rastilho de mágoa no coração de todos os que tiveram a ventura de ouvir a sua voz inflamada a decorar os seus versos singelos e emocionais.

Vicente de Carvalho publicava então as primícias do seu estro privilegiado. Das oficinas do velho Diário de Santos, cuja tradição de independência o Commercio de Santos hoje continua, saíam a lume os primeiros livros do autor do Velho tema, em que o sabor hugoano das estrofes vinha impregnado dum perfume enternecidamente lírico. Em torno dele, se agitava uma falange de poetas incipientes, que ficaram como afirmações definitivas de talento invulgar, entre outros, Alberto de Sousa, o vate lascivo de alexandrinos impecáveis.

Mas, simultaneamente com estas figuras de relevo, aqui floresciam outros poetas menores, de que os velhos santenses ainda se recordam com saudade. João Guerra, por exemplo, é um nome que abre uma clareira de lembranças na "Selva obscura" do esquecimento...

Num antigo anuário, deparamos com estas quadras piedosas sobre a Caridade, firmadas por esse olvidado bardo:

Bendito sentimento, que as almas enobrece;

Que exalta-se na prece, que santifica a dor;

Fanal resplandecente, iluminando o mundo,

Intérmino, profundo, mister consolador!

Dos páramos celestes emigra para a Terra;

Seu doce nome encerra - virtude, amor e paz -

Os berços acalenta dos querubins risonhos;

Revela-se nos sonhos dos tristes parias.

Arrimo da velhice; amparo da inocência

Encanto da existência, emanação de Deus;

As lágrimas enxuga, as mágoas alivia;

Qu'enlevos, que magia, nos atributos seus!

Da errante humanidade, no longo itinerário,

Erige um santuário, em cada coração:

Derrama, despertando a voz da consciência

Na dor - a paciência; no gozo a elevação!

.................................................................

Algum caturra fechará a carranca lendo as estâncias acima, que exijam talvez urgentes concertos numa oficina de colocação... de pronomes... Porém não há negar que existe ali bastante inspiração e sentimento, ao gosto dos admiradores de Casimiro de Abreu.

Poeta muito apreciado das donzelas casadoiras conterrâneas, no último quartel do século passado (N.E.: século XIX), foi Gastão Bousquet, um caráter e uma inteligência que, sobre ser um delicado versejador de galanterias, militou durante longos anos na imprensa local, revelando-se um jornalista vigoroso. As quadrinhas abaixo eram recitadas, com requebros de voz e de olhar, pelos peraltas, nos saraus familiares de Santos de antanho:

Na Praia de S. Vicente

A última vez que nos vimos,

Foi na praia, junto à fonte.

Com que dor nos despedimos!

Como lhe beijei a fronte!

 

- Voltarás? - perguntou ela.

- Pois quê! duvidas? - Não sei -

Deixava-a o pranto mais bela.

Respondi-lhe - Voltarei. -

 

Parti. Já bem longe estava,

Mas ainda no fim da praia;

O adeus trêmulo avistava

Do seu lenço de cambraia.

 

Voltei. Mas, ai de mim! Antes

Nunca tivesse voltado...

Nada há pior que os amantes

Do que chorar o passado.

 

A praia de S. Vicente

E a fonte, as mesmas achei.

A praia e a fonte somente,

Que ela... não mais encontrei...

 

Como não mais a encontrasse,

Tudo ali senti deserto,

E fui, qual ébrio que errasse,

Pela praia a passo incerto.

 

Caía a tarde, tranqüila...

Já muito longe, parei.

E para os lados da vila,

Os turvos olhos voltei.

 

Uma garça o vôo abria

Perto da fonte, na praia.

Chorei. O adeus parecia

Do seu lenço de cambraia...

Contudo, a poesia lírica não era exclusivamente cultivada por esses espontâneos artistas. A sátira leve, maliciosa e risonha tinha também os seus devotos. Um deles, Hygino Botelho, celebrizou-se pela acerada contundência de suas setas. Os santistas de boa nata sabem "du coeur" vários versinhos chistosos daquele "toureador" literário, que cobria os defeitos físicos e morais de seus contemporâneos com as garrochas pitorescas de seus epigramas. Dos escaninhos da memória, conseguimos desempoeirar estes, contra um conhecido agiota, cujo apêndice nasal desenvolvido lhe valera, a ele, a antonomásia de "Bicanca":

Quando vejo teu nariz,

Em palmos d'aranha fico;

Será venta? Será tromba?

Alguns afirmam - É bico...

 

Uma venta desse porte,

Que ninguém olha de frente,

É bico de papagaio:

Nunca foi nariz de gente...

Wladimir Alfaya

Imagem publicada com a matéria

Humorista, insinuante, era Baptista Coelho filho do famoso Chico Cuyabano, também terrível poeta.

João Phoca, tal o pseudônimo que adotou aquele, nasceu em Santos, porém muito moço transferiu-se para o Rio de Janeiro, de onde o seu nome, através da imprensa, se irradiou por todo o país, tornando-se logo vastamente conhecido. Ao mesmo tempo, Francisco Martins dos Santos, redator do jornalzinho O Raio, era o demônio da zombaria, que deixou muita gente com dores de cabeça. Mais um nome pinga-nos da pena - Eugenio Porchat de Assis, engraçadíssimo vate que desperdiçava pelos jornais da época a alegria esfuziante das suas rimas. Não faltaram aqui atores teatrais de mérito, entre outros Arthur Bastos e Avelino Brasiliense Carneiro, que firmavam desopilantes revistas, que os cartazes anunciavam com o clássico "verdadeiras fábricas de gargalhadas".

São da mesma época de Martins Junior, Angelo Souza e Isidoro de Campos, que sob o pseudônimo de Flavio Tolendal, pintalgavam as páginas das revistas e jornais com o fulgor das suas poesias. José André do Sacramento Macuco e o barão de Paranapiacaba, o autor de Jocelyn e duma esplêndida tradução da Divina Comédia, em versos soltos, nasceram em Santos, onde fizeram a sua iniciação literária.

José André do Sacramento Macuco, bem como o sr. Manoel Augusto de Oliveira Alfaya, têm o seu nome ligado a várias peças teatrais que foram as delícias das platéias exigentes de então.

Imagens publicadas com a matéria

Um poeta que também teve os seus dias de entusiasmo e de glória foi o dr. Arthur Assis, que hoje muito injustamente renega a autoria dos seus versos, considerando-os pecadilhos veniais da mocidade...

Aos primeiros alvores deste século, Santos foi-se desenvolvendo gradativamente, povoando-se, alargando-se por bairros afastados, aumentando o seu movimento comercial, e, à promoção que essa metamorfose material se produzia, verificava-se o incremento da sua atividade intelectual. Começaram a aparecer os primeiros livros locais e as primeiras publicações com fumaças de literatura...

Em 1904 surgiu Anthese, órgão do Gabinete de Leitura Xavier da Silveira. Redigiam-na Benedicto Ribeiro, Souto Netto, Bicudo e Silva, Francisco A. Mendonça e Abelardo Gomes. Nela colaboraram com assiduidade os poetas santistas Amaro Christiano e Valentim de Moraes. Deste último, mavioso lírico, morto prematuramente, transcrevemos este belo soneto, saído no n. 4 do jornalzinho citado:

Boas Festas

 

Foram além dos sonhos mais luzentes

Meus, tuas doces festas amorosas,

Vindas em pétalas rubras, cetinosas,

Agasalhadas nos teus lábios quentes...

 

Que retribuam festas tão mimosas

Quem terá prendas, quem terá presentes?

Festas de lábios virginais, olentes,

Cantando amor e trescalando rosas...

 

A harmonia dum verso, o som dum beijo

Não vale... Tudo o que de rico existe

É recompensa aquém do meu desejo...

 

Em que embaraço, amor, tu me pusestes!

Para dar-te a recompensa que pediste,

Olha! devolvo as festas que me deste!

Depois da Anthese, estimável tentativa de alguns moços bem intencionados, e que não chegou a se publicar dez vezes, outras revistas aqui apareceram e desapareceram, todas ingenuamente literárias, que tiveram apenas o "perpétuo esplendor das coisas transitórias". A Fita, de Laercio Trindade, em 1909, a Via Lactea, de Fabio Montenegro, em 1912, o Riso, de Leovigildo Trindade e Paulo Gonçalves, em 1914, vinham sucessivamente para a arena brandindo o facho sagrado caído das mãos exânimes das suas antecessoras...

Já então a cidade se desenconchara definitivamente do seu ronceirismo primitivo, transformando-se na forja de trabalho, que hoje admiramos. Fazer versos não era mais a ocupação deprimente de alguns boêmios ociosos. Enxertara-se, nos seus hábitos, a elegância literária dos grandes centros de cultura. Tornaram-se freqüentes as conferências e as reuniões, em que a arte do "bem dizer" estadeia o atrativo da sua beleza.

Os seus poetas são artistas perfeitos, como o divino Martins Fontes, genial nababo que esbanja às mãos cheias as riquezas do seu cérebro extraordinário; manejam o bastão da vereança com a mesma facilidade como empunham o plectro para tanger a lira, como o ático Heitor de Moraes; e usam casaca e luvas como Cumba Junior, o poeta negro de coração de arminho, um dos laureados nos Jogos Floreais instituídos pelo Liceu Feminino cuja abolição todos lamentam... Santista como esses três, era o falecido Fabio Montenegro, uma das mais completas organizações de eleito de Apolo, autor de inspirados e lindos sonetos, de que só pequena parte foi enfeixada em Jornada Lyrica.

Eis-nos chegados aos tempos que correm. A vila fundada por Braz Cubas continua  a concorrer para a galeria dos poetas nacionais com o talento rútilo dos seus filhos. Aí se vêem, em plena frutificação literária, três santistas de lei - Affonso Schmidt, nosso prezado companheiro e originalíssimo autor de Senhora Dona Sancha; Ribeiro Couto, o delicado filigranista do Jardim das Confidências e Paulo Gonçalves, o comovido citaredo de Marilia e Dirceu. Com estes, outros virão, nestas margens tranqüilas do Atlântico, sob a égide mística do Monte Serrat, prosseguir na escalada do alcantil escabroso da Glória...

Rememorando, em rápidos traços, nomes de alguns poetas santenses, calando, a contragosto, os dos que, embora aqui vivessem e vivam, contudo não beberam a água do Itororó quando infantes, por terem nascido sob outros céus - julgamos homenagear a cidade tradicional, para onde hoje se volta o pensamento do país inteiro, por ter sido o torrão natal dos maiorais da Independência nacional.

Descendo ao túmulo

 

Eis-me chegado ao pé da sepultura,

Desapareço para o mundo agora,

Entre as névoas mortais da noite escura

Só tu cintilas, imortal aurora!

 

Minha existência, cheia de amargura,

Foi um poema singular, senhora:

- viçosa flor que ao galho se pendura

E que ao rigor do tempo se descora

 

Que importa a morte da infeliz matéria,

misto de dor, de fome e de miséria,

e que a tumba, afinal, resume e encerra?

 

Cesse da vida o lúgubre escarcéu...

Eu subirei cantando para o céu,

Tu ficarás chorando sobre a terra!

Angelo Souza


Baptista Coelho

Baptista Coelho

Imagem publicada com a matéria

José Baptista Coelho (João Phoca) nasceu nesta cidade a 1º de janeiro de 1876. Iniciou sua carreira de jornalista no antigo Diário de Santos, onde muito escreveu sob o pseudônimo de Victor Brazil, que depois conservou na Imprensa, de Ruy Barbosa.

No Rio de Janeiro, passou depois para a Cidade do Rio, de J. do Patrocínio, aí trabalhando como secretário até o fechamento da folha.

A popularidade do seu pseudônimo João Phoca nasceu das crônicas publicadas no Jornal do Brasil.

Fez várias viagens pelo interior do Brasil e uma à Europa, em companhia de artistas como Raul Pederneira, Luiz Peixoto, Abigail Maia, Luiz Moreira, Chaby e Ruy Collaço.

Sua bagagem literária é vultosa. Seus trabalhos principais foram os livros de contos Caiçaras e Praieiros, inspirados nos costumes da gente pobre das praias de Santos.

Traduziu várias peças francesas e produziu originais para os nossos teatros, tais como: Não venhas; O maxixe, de colaboração com Bastos Tigre; Dinheiro haja, de colaboração com Ataliba Reis; Fado e maxixe e O diabo que o carregue, de colaboração com André Brum; Babel, A terra gaúcha, Povoamento do solo, Sem vontade e Braz Bocó.

Deixou duas comédias inéditas, O 116 e Sinhazinha.

João Phoca foi um dos mais queridos humoristas brasileiros, a sua memória é carinhosamente guardada pelos intelectuais que o conheceram e estimaram na capital da República.


Sylvio Floreal

Sylvio Floreal

Imagem publicada com a matéria

Este é o fulgurante mago do estilo cuja pena sensacional ilumina a ouro as colunas da imprensa paulistana, transfundindo-lhe prodigamente o seu sangue juvenil, ardente como lava.

Viu a lua nesta terra, aqui fez os primeiros estudos, aqui teve o seu bocado de vida boêmia.

Depois, um dia, andorinha sôfrega de azul, subiu a Paranapiacaba e caiu com estardalhaço no então estagnado meio literário paulistano.

Na augusta assembléia das venerandas rãs houve um movimento de estupefação e de despeito. Quem seria aquele moço que entrava sem pedir licença, que vencia sem tirar o chapéu, que esbanjava talento como um coronel do interior esbanja dinheiro?

Mas o sonho ainda é uma poderosa força, a inteligência é envolvente como uma teia, a mocidade é dois terços de uma conquista. Ele venceu. Hoje é o mais cintilante dos cronistas urbanos de São Paulo, quiçá do Brasil.

Seu primeiro livro Attitudes, recentemente publicado, foi uma apoteose. Os poucos exemplares que ainda se encontram pelas livrarias desaparecem como por um encanto. Isto quer dizer que Sylvio Floreal é um dos que são lidos... Porque a maior parte dos nossos grandes homens não tem leitores! O público admira-os, à distância.

Desejaríamos dar aos leitores algo de Attitudes, um pouco de prosa escolhida de tal maneira que o leitor com um olhar apenas pudesse abranger todo o horizonte intelectual do escritor santista. Impossível. Em cada página desse livro Sylvio Floreal é um novo artista, a esbanjar novas belezas.

Aí vai a última página, a maior que as proporções exíguas desta nota comportam:

Para os olhos marejados de Maria Magdalena.

O luar, nessa noite, predispunha o ânimo para o pecado.

Os brilhos argênteos da lua, insidiosos, empastados na treva densa da noite empoeirada de fria neblina, tocavam um batuque lascivo na banza dos nervos.

Errava no ar um hálito de confidência, de mistura com presságios soturnos.

- Paremos.

- Não, mais adiante.

Caminhamos, entregues às ciladas do silêncio.

No lugar combinado, Ela, a triste carne da multidão, parou, com os olhos naufragados numa torrente de lágrimas, os lábios secos, denunciadores de revoltas abafadas, por onde escapavam a custo e estraçalhadamente as suas palavras de queixume e lamento. Estávamos sob uma árvore mergulhada no torpor do nevoeiro.

A sua voz, entenebrecida de angústias, punha no veludo pardacento da noite uma vaga e indizível comoção, que se diluía no sopro cadenciado e frio da aragem.

- Isso foi numa noite... ai! nem quero me lembrar! Até parece que uma lâmina enferrujada me atravessa o coração!

- Coragem! A dor maior é aquela que ainda não se sofreu.

- Basta... Não posso mais! Para viver em paz, devo agir contra o passado. Devo tentar novamente a felicidade.

- A felicidade começa para os corações trespassados como o teu, no instante benfazejo em que morre a saudade. Assassina a tua saudade juntamente com os fantasmas que a povoam e terás ganho, na partida da dor, um tento de felicidade.

- Impossível! Ainda sinto o eco das suas promessas...

- A promessa foi o atalho da tua perdição!

- Foi, sim! Foi o narcótico sibilino com que Ele subjugou os meus sentidos, entonteceu-me a alma e enlouqueceu-me os nervos.  Beijou-me desvairadamente a boca, mergulhou os dedos elétricos nos meus cabelos. Todo o seu ser convergiu sinuosamente para o meu. Quando percebi o desastre, o irremediável consumar-se com todo o horror da sua trágica beleza.

Depois de um pesado silêncio, olhando a noite, desafiante e interrogativa, exclamou:

- Ai! nem quero me lembrar! Isso foi nu'a noite assim...


Cumba Junior

Cumba Junior

Imagem publicada com a matéria

Remanescente da fase simbolista inaugurada no Brasil pelo gênio de Cruz e Souza, Cumba Junior tem inédito um formoso livro de versos, sugestivamente intitulado Holocausto.

A despeito de ser o único dos poetas de Santos que não se abalançou ainda a aparecer com as honras e responsabilidades de um volume não lhe é menor, por isso, o prestígio que firmou aqui e em S. Paulo, onde reside.

Muito moço, julga bem que não deve correr afoitamente atrás da falena pérfida em que é de uso simbolizar-se a Glória.

Holocausto contém trabalhos preciosos. O poeta é também um artista: maneja o verso com bastante elegância.

Sendo, como é, um visualista mais do que um emotivo, Cumba Junior transformou a ânsia amorosa que lhe vai pela alma em versos de uma ardência apenas comparável à que incendeia as estrofes de Gilka Machado.

É este um exemplo de vontade e um modelo de trabalho. O brilho do seu nome deve-o a si mesmo, pelo esforço com que, desde criança, se empenha para se colocar acima da mediocridade.

Suplício de Tântalo

 

Desejar sua posse e não poder possuí-la

e ter de recalcar, recôndito, no peito,

este desejo atroz, que aos poucos, me aniquila

na rude  ânsia febril do gozo insatisfeito;

 

antepor à paixão o dever e o respeito;

ter a carne em delírio e mostrá-la tranqüila

e sopitar latente o incontido despeito

de ver outro, feliz, osculá-la e cingi-la:

 

eis aí todo o meu enorme sacrifício,

a causa do meu mal, que me torna um infausto

Tântalo condenado a este duro suplício.

 

E, para mitigar a febre do desejo,

ao menos, não poder haurir, hausto por hausto,

Na taça do seu lábio o néctar do seu beijo!

Cumba Junior


Affonso Schmidt

Affonso Schmidt

Imagem publicada com a matéria

É Affonso Schmidt, na cidade que lhe serviu de berço, e quiçá no meio literário do Estado, a primeira figura entre os novos.

Vive por um ideal - eis o que lhe ilumina a grande alma de artista. Poeta e prosador, seu nome está hoje definitivamente consagrado com a publicação de Janelas Abertas, Lusitania, Mocidade e Brutalidade.

Janelas Abertas mereceram menção honrosa no concurso da Academia Brasileira em 1912, de que foi julgador Silvio Romero. A opinião do grande crítico louvava o autor com estas palavras:

"A Academia impôs-me também o dever de opinar sobre as Janelas Abertas, livrinho de poesias do sr. Affonso Schmidt. Muitas belas coisas há nesse exíguo volume do jovem paulista: boa métrica, felizes imagens, real inspiração.

Confesso que o li a correr, mas nada de inferior ali encontrei.

O poeta, de pouco mais de vinte anos, sustenta-se perfeitamente bem entre os numerosos líricos que abrilhantam as letras pátrias.

Pode contar com o futuro.

As peças Beijos, Aquário, Coração fadista, No campo, esta sobretudo, são lindíssimas. Há muitas outras assim.

Se o livro do sr. Miguel Mello não o tivesse prejudicado, este livrinho das Janelas abertas mereceria bem o prêmio da Academia.

Rio, 31 de agosto de 1912.

Silvio Romero".

Não se pode fixar num bosquejo a individualidade de Affonso Schmidt. É por demais complexa para ser flagranteada em traços breves. Não nos servindo do vasto acervo de escritos que a seu respeito vêm aparecendo ultimamente, basta dizer-se, para defini-lo no verso e na prosa, que em ambos é inconfundível pela originalidade e pelo colorido. Para o verso, reserva o "humour" e o pitoresco; para a prosa, a amargura da vida e a rebeldia.

Os contos de Brutalidade asseveram este último juízo, e Mocidade, com O herói e Cubatão, arrazoa o primeiro.

Homem singularíssimo, desdenhando sinceramente de quantos elogios se lhe façam, cuida apenas de pôr a arte a serviço do seu ideal libertário. Resume nisto seu destino, e, mercê da sua copiosa produção para a imprensa e da divulgação do seu folheto Evangelho dos livres, tornou-se conhecido até dos chefes do movimento comunista na França - entre eles Barbusse.

Seu público é imenso; seu futuro, de glória. Futuro, sim, porque embora a mereça no presente, ainda não lhe foi concedida.

Não incidiremos em exagero em dizer que Affonso Schmidt é um dos mais fortes novelistas do Continente.

Dois inéditos do seu próximo livro Chama d'Álcool:

Os pequenos varredores

 

Pela escura avenida arborizada,

ninguém. Lá para cima,

escuta-se um rumor que se aproxima,

nuvens que rolam pelo chão, mais nada...

 

Depois, a noite se enche de pavores,

há risos, pragas, uivos;

dançam, ao longe, contra o vento, ruivos

de poeiras, pequeninos varredores.

 

De ombros estreitos e de faces cavas,

lutam com seus destinos

nas horas em que todos os meninos

dormem e sonham com princesas flavas,

 

Há entre eles alguns que são precoces,

fumam e bebem. Vários,

transitam para a noite dos ossários,

têm o pulmão comido pelas tosses.

 

Arrastando o esqualor destas sarjetas,

dirão, olhos em brasa,

que é melhor acabar na Santa Casa

do que viver assim, como os grilhetas.

 

E lá se vão. A nuvem se adelgaça;

um senhor, na alameda

sem luz, toma do lenço que é de seda,

tapa o nariz, inclina a fonte e passa...

 

 

Jardins fechados

 

        Outrora, estes jardins eram fechados

por venerandas grades de arabescos;

defesa inútil contra os namorados

                                    madrigalescos...

 

         Os logradouros eram cidadelas

e fortalezas de uma idade morta;

havia guardiães e sentinelas

                                    em cada porta.

 

        - "O povo com seus hábitos libertos,

não respeita os recantos mais sagrados",

pensava-se. - E os jardins, agora abertos

                                   eram fechados.

        Mas, eis que vingam todas as verdades

que se julgavam meras fantasias:

nossos jardins livraram-se das grades

                                   e dos vigias;

 

       no entanto, antigamente, a sete chaves,

presas daqueles guardas aguerridos,

seus canteiros não eram tão suaves,

                                  nem tão floridos.

 

       Vendo-os, eu digo aos homens condenados

que a Terra mudará - ficai bem certos! -

do mais escuro dos jardins fechados

no mais soberbo dos jardins abertos.


Paulo Gonçalves

Paulo Gonçalves

Imagem publicada com a matéria

Paulo Gonçalves, como Affonso Schmidt, é um temperamento difícil de definir. Dócil e combativo, místico e rebelado, é o tipo do idealista, com todas as suas qualidades e defeitos.

Talvez não lhe fique mal a denominação de revolucionário mansíssimo. Na época presente - um "déplocé". Se vivesse na Idade Média, seria, com toda a certeza, um outro Godofredo, com o mesmo heróico destemor e a mesma religiosa humildade. Na sua última novela, Calvário de Flávio Rosas... Mas, deixemos isso de lado. Nada de indiscrições com um homem recatado, capaz de guardar um segredo durante mil anos, se tantos vivesse. E o Paulo que nos interessa agora é o autor de Yara, o poeta fino que gravou em ouro do melhor quilate a história romântica de Marilia e Dirceu.

Antes de tudo, porém, digamos uma coisa interessante: Paulo é um milagre de sofrimento. Expliquemo-nos. Pouco antes da grande guerra, que é de quando data a sua estréia nas letras, vivia ele a construir, com palavras as mais difíceis, coisas as mais absurdas e desconexas. Era um apaixonado do vocábulo sonoro e incomum. As suas poesias nada diziam, nem tampouco queriam dizer. Versos de quem "escrevia por escrever", como diria aquele silencioso e estranho Gottfried, tio de Jean Christophe.

Também não dava tratos à bola para ser lógico, senão raro. O difícil o atraía: e, de tão complicado, chegava a ser, às vezes, enigmático. "Julgava-se" parnasiano. Sobre tal escola doutrinava com uma solenidade desinteressada de pastor evangélico. Ria às escâncaras da arte que mana do coração; achava-se demasiado lânguida e sobretudo "muito velha". A parnasiana, esta sim.

Quando um amigo, também poeta, lhe perguntou, certa ocasião, o que significava "escola parnasiana", respondeu prontamente: "É muito fácil. É...Repare: ponha muitas pedras preciosas, mármores, ouro, prata, marfim etc. nos seus versos e você será um perfeito parnasiano".

Hoje nos rimos de tanta ingenuidade petulante... Mas, que querem? não sofrera ainda... Depois sofreu. Sofreu até demais. E veio a ser o lírico amorável da Canção triste, uma das páginas mais embaladoras da nossa poesia. É nesse particular que o achamos diferente de todos os seareiros do verso no Brasil. Ninguém com mais delicadeza e finura, mais elegância e nobreza, mais harmonia e propriedade para exprimir essas horas de abandono íntimo, em que nos afastamos de nós mesmos nessa viagem de êxtase pelos espaços...

Paulo que, nos seus primeiros dias, abominava os versos amorosos, é o poeta do amor. Não do amor-volúpia, como o sonhou Bilac, mas desse que é maior ainda, porque é ternura espiritual, suavidade interior, luz puríssima do espírito que não morre. O seu livro, todo ele, é a história de um coração. Nada de cerebralismos, nem de "esquisitices", nem de modas. Tomou o conselho sublime de Emerson e só conhece, no mundo inteiro, a sua musa.


Ribeiro Couto

Rui Ribeiro Couto

Imagem publicada com a matéria

Ribeiro Couto, que se estreou o ano passado com o Jardim das Confidências, é um dos poetas mais lidos hoje em dia em todo o país. O aparecimento do seu admirável livro valeu-lhe por uma consagração, que não foi outra coisa a maneira entusiástica pela qual o receberam escritores irreprocháveis como João Ribeiro e Ronald de Carvalho, para citar apenas o mais velho e o mais moço dos nossos críticos.

Pessoal e sincero como todo verdadeiro poeta, poderia gravar ao alto das suas obras estas palavras de Jackson de Figueiredo: - "Há um tom de confissão em tudo que escrevo". Sim, porque quase todos os seus poemetos são lindos segredos líricos que a sua alma nos conta. E de que modo o faz! com que fina doçura!

O que caracteriza a sua arte é aquele "certain degré de vague", de que nos fala o grande Anatole. Ele é um mestre nesse particular. Só um escritor possui a chave do mesmo tesouro no Brasil: Álvaro Moreyra. O vago porém nunca vem só. E é por isso que passa roçando pelos seus versos, leve e veludosa como uma pluma, a asa suavíssima da melancolia, daquela mesma enternecedora melancolia das obras de Samain e Francis James. Esta a razão de não ser a sua arte a de um pintor a óleo, mas de um aquarelista delicado, que prefere trabalhar nas horas em que a natureza está silenciosa, à tarde ou à noite, quando surgem as sombras ou aparecem as estrelas.

Uma coisa importante ninguém disse até hoje: foi, depois de Cepellos, quem cantou com mais verdade e sentimento a célebre garoa de S. Paulo. Em algumas das suas poesias, ainda inéditas, evoca, com aquela singeleza que lhe é própria, os parques da Paulicéia, sob a luz do luar e sob o luar da garoa, cheios, às vezes, de vultos abraçados, isto é, de boêmios, estudantes, vadios e costureirinhas românticas, cenas que muito valem pelo seu pitoresco e autenticidade. E certamente hão de ficar populares, quanto postas em música, honra que já mereceu de Villa-Lobos a sua emocionante Solidão, que não resistimos ao prazer de citar:

Chove... Uma goteira, fora,

Como alguém que canta de mágoa,

Conta, monótona e sonora,

A balada do pingo d'água.

 

Chovia, quando foste embora...

Ribeiro Couto é poeta de sugestão. Os seus versos impressionam, não tanto algumas vezes pelo que dizem, mas pelo que lembram, pelo mundo e coisas que nos fazem entrever. Não é, portanto, um descritivo. O seu forte é a imprecisão musical, que nos acorda um bando de motivos no espírito, como uma paisagem na névoa.

Há na sua arte também uma face boêmia. Trata-se aqui da boemia espiritual, já se vê. Um quê assim de Marcello Gama, o espontâneo e grande Marcello, que tão injustamente vai sendo esquecido. Leiamos alguns versos da Noite monótona de um poeta enfermo:

Fuma...  Vendo subir o fumo azul, esparso,

O poeta boceja e ergue os braços... Que tédio!

Obrigado a ficar nessa noite de março,

Numa alcova que cheira a doença e remédio.

Veja também:

Publicidade em 1922 [C] [D]