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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - URBANISMO (X)
Porto disputa espaço com a cidade (6-E)

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Metropolização, conurbação, verticalização. Os santistas passaram a segunda metade do século XX se acostumando com essas três palavras, que sintetizam um período de grandes transformações no modo de vida dos habitantes da Ilha de São Vicente e regiões próximas.

Em todo esse tempo, como nos cem anos anteriores, o porto foi avançando sobre o território urbano. E essa verdadeira guerra entre o porto e a cidade que o abriga ficou bem clara numa série de matérias do jornal santista A Tribuna, que terminou e ser publicada em 9 de outubro de 1980:


Nos 11 quilômetros de porto, equipamento obsoleto e sem conservação
Foto publicada com a matéria

A CIDADE SUBJUGADA - 5
A herança que ficou no porto

Uma herança ou um presente de grego? A pergunta é justificada pelos fatos: os quase 14 mil empregados da CDS estão lutando na Justiça, e nos últimos anos encaminharam mais de 45 mil ações contra a empresa, reclamando direitos trabalhistas. Duas dessas reivindicações somam Cr$ 800 milhões, mas a soma poderá chegar aos Cr$ 10 bilhões, caso os trabalhadores ganhem os nove processos que tramitam hoje na Justiça. Ao longo dos 11 quilômetros de cais, por outro lado, a aparelhagem portuária está em estado precário de conservação. Afinal, desde 1969 a CDS não investe diretamente no porto, preferindo aplicar o capital em outras áreas. Todos os investimentos com aquisições e ampliações foram pagos, desde aquela época, pelo Governo Federal.

Texto: Álvaro de Carvalho Júnior e José Carlos Silvares
Fotos: Rafael Dias Herrera


Enquanto os trabalhadores brigam...
Foto publicada com a matéria

Briga na Justiça vai longe
(pode chegar a Cr$ 10 bilhões)

Pagamento do descanso semanal remunerado na média dos dias trabalhados durante a semana.

Pagamento das diferenças relativas a não obediência do intervalo de 35 horas entre duas jornadas semanais de trabalho.

Salário-chuva.

Jornada de 33 horas para os empregados na administração e de 44 para os empregados do cais.

Adicional de risco noturno.

Gratificação de férias.

Pagamento do salário produção àqueles que ainda não foram beneficiados (balanceiros, auxiliares de encarregados, conferidores, trabalhadores de armazéns etc.).

Adicional de risco em toda a área portuária.

Pagamento do adicional por tempo de serviço proporcional ao salário bruto.

Essas são as reivindicações pelas quais os quase 14 mil empregados da Companhia Docas de Santos - CDS - estão lutando na Justiça. Muitas dessas reivindicações foram conseguidas antes da Revolução de 1964, e cortadas pelo decreto-lei número 56.420, de 4 de junho de 1965, assinado pelo então presidente da República, Humberto de Alencar Castelo Branco. Assim, a herança trabalhista que a Companhia Docas de Santos deixa à nova empresa, Companhia Docas do Estado de São Paulo - Codesp -, não é das melhores. Os quatro sindicatos dos trabalhadores da capatazia reúnem hoje mais de 45 mil ações contra a empresa, numa clara demonstração de que não pretendem arredar pé dos direitos conseguidos antes do decreto-lei, e de outros, que têm como base a própria Constituição.

E a dívida trabalhista recebida pela Codesp poderá ser maior ainda. Considerando-se que a quantia que a CDS deve a seus empregados em apenas duas ações - pagamento do descanso semanal remunerado na média dos dias trabalhados e pagamento das diferenças relativas à desobediência do intervalo de 35 horas entre duas jornadas semanais - chega aos Cr$ 800 milhões até agora, a situação agrava-se de maneira assustadora. Calcula-se, hoje, que, em caso de os trabalhadores vencerem todas as lutas judiciais, a Companhia Docas de Santos deixará uma desagradável dívida acima dos Cr$ 10 bilhões, "uma cifra calculada a grosso modo, e que poderá aumentar dependendo do tempo que os processos levarem tramitando na Justiça", como explicam os dirigentes dos quatro sindicatos envolvidos nas lutas.

Os números, apesar de surpreendentes, não podem ser considerados exagerados. Usando-se o adicional de risco como exemplo, chega-se à conclusão de que eles são condescendentes. Os trabalhadores entraram com essa ação em 1977, e, caso saiam vencedores, terão direito a receber os atrasados dos últimos 3 anos, acrescidos de 40 por cento - a taxa de insalubridade determinada pelo Governo.

Portanto, utilizando-se um cálculo hipotético, se hoje a Companhia Docas de Santos paga Cr$ 100 milhões mensais aos seus empregados, será obrigada a repor essa mesma quantia, acrescida de 40 por cento e multiplicada por 36 meses, referentes aos 3 anos de tramitação na Justiça. Isso se a causa for ganha até dezembro.

E essa é apenas uma ação. Levando-se em conta que até agora elas chegam a nove, pode-se afirmar que a diretoria empossada ontem na Codesp terá muitas dificuldades para solucionar os problemas herdados, além de um relacionamento difícil com seus empregados. "Não vamos abrir mão de nada - afirmam os dirigentes sindicais. São direitos conseguidos antes de 64, homologados junto à Companhia Docas e ratificados pelo Governo. Nós não podíamos ter perdido esses direitos, essa é a realidade. Por isso, vamos tentar bloquear a indenização que a CDS deve receber do Governo, no final da concessão".

Os dirigentes sindicais têm razão. Algumas reivindicações são novas, mas a maioria foi conseguida e negociada antes de 1961, entre os sindicatos e a direção da empresa. Esses acordos foram ratificados pelo Governo em 1963, transformando-se portanto em direito adquirido. Em 1965, um ano depois da Revolução de 1964, o decreto presidencial anulou todas as reivindicações conseguidas e que agora voltam a ser disputadas mais uma vez.

As horas extras podem ser usadas como exemplo: os empregados da CDS recebiam horas extras de 70, 120, 240 e 290 por cento, dependendo dos períodos de trabalho. Com o decreto presidencial, essas horas passaram para 20, 50 e 100 por cento, gerando uma perda considerável nos ganhos mensais.

A mesma coisa ocorreu com o salário-chuva, uma acordo que vinha de antes de 1965, e que foi cortado. Os dirigentes sindicais afirmam que a partir do momento em que a direção da empresa aceitou as negociações, e posteriormente o Governo as ratificou, foi conseguido um direito de causa que não poderia ser destruído. "Nossa luta é de conseguir de volta acordos tratados no decorrer de muitos anos, alguns inclusive definidos em 1937 e 1939, e que de repente foram anulados".

É claro que toda essa luta ainda consumirá muito tempo, e que o patrão será outro. Mas, os trabalhadores continuarão: "Iremos até o fim - afirmam -, lutando na Justiça até que recebamos de volta tudo aquilo a que temos direito".

Portanto, a situação é grave para os novos diretores da empresa. Os trabalhadores continuarão a exigir que seus direitos sejam respeitados, enquanto a Codesp promete arcar com todas as obrigações que a Companhia Docas de Santos deixará a partir do dia 8 de novembro, quando se encerra definitivamente a concessão que durou 90 anos. Chega-se à conclusão que, somados os problemas trabalhistas que a nova empresa encontrará e as péssimas condições de conservação do equipamento espalhado nos 11 quilômetros do porto, a Companhia Docas de Santos não deixará uma herança, mas um presente de grego.


...a aparelhagem fica na chuva, enferrujando
Foto publicada com a matéria

Um panorama da aparelhagem
(quase tudo está precário)

Há alguns anos, os motoristas em guindastes, por meio do advogado Eraldo Franzese, moveram ação contra a Companhia Docas. Os trabalhadores venceram a ação, mas a CDS resolveu recorrer. Para isso, ofereceu como garantia do juízo um guindaste do tipo canguru, a serviço no cais do Saboó. A oferta foi recusada por três motivos: não houve licitação para a cobertura da garantia, pelo valor do guindaste; o aparelho não pertencia à CDS, mas ao Governo Federal; e o equipamento não estava em boas condições.

Esse exemplo, por si, mostra uma realidade sob dois ângulos: a falta de investimentos da CDS no porto e a precariedade dos equipamentos existentes,ao longo dos 11 quilômetros de cais.

A precariedade da aparelhagem portuária também se reflete em casos de estratégia, como confirma o folclore do cais do Armazém 23, da Santa. Ali, por incrível que pareça, as dalas de farelos são fixas no solo, ao invés de correrem sobre trilhos, como acontece nos demais pontos do cais. Por isso - e dependendo da situação -, há vezes em que o navio tem que se movimentar para a frente ou para trás, com as próprias máquinas e gastando combustível e horas extras com o pessoal de bordo, para mudança da estivagem nos porões. Os portuários costumam fazer piada com o fato: "É como aquele pianista que ao invés de puxar o banquinho, manda arrastar o piano até ele...".

No mesmo ponto do cais, na Santa, onde se movimentam farelos, adubo e carvão coque, um navio costuma ficar atracado durante uma semana, para embarcar 5  mil toneladas de carvão, também devido à precariedade dos equipamentos do porto. Se os aparelhos estivessem em boas condições - asseguram os trabalhadores -, um navio desses seria estivado, no máximo, em três dias.

Mas os problemas começam no cais do Saboó, onde há grande movimentação de enxofre e fertilizantes: ali os guindastes sofrem desgaste porque os produtos que movimentam são corrosivos, e a manutenção não dá conta do processo de corrosão. Esses guindastes, apesar de novos (têm cerca de seis anos de uso), estão completamente estragados. E o estrago chega ao ponto de ser comum desativar-se um aparelho para tirar as peças e utilizá-las em outros equipamentos iguais. Mas o pior é que a precariedade causa má condição de trabalho ao portuário.

Os guindastes existentes na faixa inicial do porto, entre os armazéns 1 e 10, do tipo palmeirinha, de lança fixa, são obsoletos e têm pequena capacidade de carga, sendo usados apenas nos navios de cabotagem. O mesmo acontece com os guindastes do tipo palmeirão, que apesar de obsoletos, e de datarem de 1945, são funcionais onde estão: cais dos armazéns 11, 12 e 13.

Do Armazém 15 ao 19, o piso do cais está cedendo em vários pontos, e uma empresa de engenharia já advertiu, confidencialmente, que toda a muralha do cais, onde os navios encostam, está caindo por causa da falta de manutenção periódica. Mas, afora essa questão, o trecho não apresenta problemas.

Depois do Armazém 19 e até a Mortona, há uma grande confusão de guindastes velhos, o porto se estreita e os armazéns são pequenos, superados em vista da movimentação de carga geral.

Do Armazém 29 ao 38, cais novo, os navios operam com equipamento de bordo (com exceção dos pontos 1 e 2 do cais do 37, onde há guindastes do tipo gavião, os melhores do porto), e tudo funciona bem. Mas nessa área há grande movimento de empilhadeiras e caminhões, que também estão em estado precário de conservação. Depois da criação da Portobrás, os veículos funcionam mais como quebra-galhos, como dizem os portuários.

O Terminal de Cereais da Ponta da Praia (Novo Macuco), construído para o embarque de até três mil toneladas de cereais por hora, e inaugurado em outubro de 1973 pelo então presidente Emílio Médici, previa grandes embarques de cereais para o Japão. Falava-se, na época, em exportações de um milhão de toneladas de milho para os japoneses, que forneceram toda a tecnologia do terminal, pago pela Portobrás. Mas apenas na safra de 1974 o terminal foi usado com capacidade plena. As exportações caíram e, de alguns anos para cá, todo aquele sofisticado equipamento é utilizado para embarques de farelo. Quando não há farelo, o cais é usado por navios de carga geral.

No Terminal de Fertilizantes de Conceiçãozinha, o problema continua: cada um dos dois piers tem quatro moegas e cinco guindastes, com capacidade para movimentar até 120 toneladas/hora. Mas não há manutenção efetiva, as esteiras transportadoras estão estragadas, e com freqüência as operações de descarga são paralisadas porque o equipamento quebrou. Há vezes, também, em que uma das moegas usadas naquele período de trabalho é retirada de uso, para aperto de parafusos, operação que os portuários chamam de preventiva, atrapalhando e interrompendo o trabalho de descarga.

Ali, nos armazéns 1 e 2, não há seleção rigorosa dos produtos, e um deles, a uréia, solta um líquido que atinge produtos caros como o superfosfato triplo, estragando-os. Como a manutenção é precária, o líquido permanece ali, danificando novos lotes de fertilizantes.

Ao longo de todo o cais é comum encontrar-se tratores e até empilhadeiras da CDS empurrando guindastes que estão em situação precária e que, embora tenham motores elétricos, não funcionam. Nos dias de chuva, os trabalhadores que operam guindastes costumam dizer que chove mais dentro do aparelho do que do lado de fora: a grande maioria desses equipamentos está com os vidros quebrados ou tem problema de vedação. Por isso, alguns trabalham usando capa e chapéu. Quando não usam guarda-chuva.

Essa herança toda também será deixada pela CDS. Uma herança triste e que terá que ser totalmente reformada pela Codesp, com a aplicação de dinheiro próprio ou da Portobrás. Mesmo com toda essa precariedade operacional, mensalmente o superintendente de tráfego da CDS (desde ontem presidente da Codesp), Sérgio da Costa Matte, reunia a imprensa para anunciar contínuas quebras de recordes. Esses recordes poderiam ser duplicados, no entender dos portuários, caso todo o equipamento do porto estivesse em bom estado de conservação.

O bom estado de conservação, inclusive, faz parte do capítulo 8º do decreto imperial número 966, de 1890: "Findo o prazo do privilégio, reverterão para o Estado Federal todas as obras do cais, compreendendo armazéns, linhas férreas e todo o terreno que for adquirido pelos concessionários, que nenhum direito terão a qualquer indenização, devendo tudo achar-se em bom e perfeito estado de conservação".

Na verdade - como denunciam os trabalhadores portuários na petição encaminhada ontem à Justiça Federal, solicitando o bloqueio do capital social da Codesp -, a CDS não vem aplicando o dinheiro de seu capital há pelo menos 20 anos, "pois todas as obras e melhoramentos do porto têm sido efetuados pelo próprio Governo Federal".

O fato foi confirmado em entrevista publicada na edição de A Tribuna do dia 12 de março de 1978. Nessa época, o diretor-tesoureiro e herdeiro da CDS, Luís de Melo Flores Guinle, dizia que desde a promulgação do ato complementar 74/69 (que cerceou as reavaliações do capital de concessão, impedindo a CDS de aplicar a correção monetária plena sobre esse capital), a empresa deixou de investir no porto, preferindo atuar em áreas de finanças, imobiliárias, pecuárias e centrais telefônicas. Desde então, as obras de expansão e aquisição de equipamentos portuários são projetadas e solicitadas pela CDS, mas pagas pelo Governo Federal.

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