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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - URBANISMO (S)
Começa a guerra do (ao) lixo (8)

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Metropolização, conurbação, verticalização. Os santistas passaram a segunda metade do século XX se acostumando com essas três palavras, que sintetizam um período de grandes transformações no modo de vida dos habitantes da Ilha de São Vicente e regiões próximas.

Um dos grandes problemas que a Baixada Santista sentia já então a necessidade de equacionar era o da destinação do lixo. Curiosamente, enquanto o mundo todo fala em proteção ambiental e em reciclagem, em Santos as autoridades municipais continuam com a visão de enterrar todo o lixo, sufocando até mesmo a ação espontânea de parte da população que se dispõe a fazer a seleção do lixo. Com isso, cria vários problemas: o da destinação de uma quantidade maior de lixo, em termos de volume depositado e danos ambientais; o social, com o destino das famílias que ficam impedidas de sobreviver com esse trabalho; e o financeiro, pois além de não lucrar com a reciclagem o município (ou a metrópole) ainda tem de arcar com o ônus da destinação do lixo.

O problema do desperdício de recursos, que é nacional mas se reflete na qualidade de vida santista, se torna ainda mais importante no momento em que a Presidência da República desenvolve o programa Fome Zero, com a meta de erradicar a fome entre a população nacional. Essa, a denúncia publicada em 6 de abril de 2003 pelo Jornal da Orla:

O PAÍS DO FOME ZERO é também a nação do desperdício de alimentos. Cerca de 30% do que é colhido no Brasil vão parar no lixo. Em Santos, a situação não é diferente, produtos que são jogados fora ainda alimentam muitos e poderiam sustentar outros mais. O Mercado Municipal é apontado por carrinheiros como um dos pontos de maior desperdício na cidade. 
Caixas inteiras de frutas e verduras frescas são jogadas fora diariamente, 
só porque algumas delas estão amassadas ou machucadas
Foto: Alex Almeida, publicada com a matéria

Retrato do país do desperdício

Tiago Dória

Não é só o Fome Zero que anda mal das pernas, mas também a consciência dos santistas a respeito do desperdício de alimentos. Além de produzir 500 toneladas de lixo por dia, a cidade joga fora muito alimento próprio para consumo. Quem mostra toda essa situação é o carrinheiro Anderson, que levou a reportagem do Jornal da Orla aos locais de maior desperdício de alimentos na cidade.

Em alguns pontos, é possível encontrar frutas, verduras e legumes frescos no lixo. No Mercado Municipal, a chamada escolha (separação das frutas para o consumo) é rigorosa. O produto que o cliente rejeita é jogado fora. "Não posso fazer nada", diz um vendedor. A contradição é tremenda: caminhões chegam abarrotados de frutas frescas enquanto os catadores recolhem alimentos no lixo.

Atrás do Mercado é possível encontrar uma pilha de batatas e cebolas frescas no lixo. A maioria dos alimentos despejados ali não está estragada. Os produtos são rejeitados apenas por apresentarem imperfeições. São devolvidos pelos principais compradores do Mercado: os donos de restaurantes e mercearias. "Se tiver uma fruta machucada numa caixa, eles jogam tudo fora", conta o carrinheiro.

A poucos metros dali, o contraste é maior: uma fila de pessoas ocupa uma rua inteira ao lado do Mercado para tomar uma sopa. A refeição é servida por várias entidades da região. "Eu sempre venho aqui. A comida é boa. Estou desempregado há 8 anos", conta uma senhora de 50 anos com um pedaço de pão numa mão e a sopa na outra. Servida em garrafas de plástico cortadas ao meio, as sopas são a única refeição diária de muitos que estão ali. Algumas famílias inteiras recebem a sopa.

Quando se chega aos bairros da orla de Santos, o desperdício é ainda maior. Na avenida Epitácio Pessoa, restaurantes jogam pratos inteiros no lixo. Segundo o carrinheiro Anderson, as padarias são as que depositam mais alimentos no lixo. "Outro dia comemos pão de queijo. Um pote inteiro da massa que faltava um dia para vencer estava no lixo", fala sorrindo Ana, esposa de Anderson.

O lixo de Santos é disputado por pessoas de outras cidades. "Tem gente que vem de São Vicente, Praia Grande e Cubatão. Tem dia que até há briga", conta o carrinheiro. E, segundo o catador, existe dia certo para catar alimentos. "O dia 18 é melhor. Um dia antes, vence a maioria dos produtos e então eles jogam tudo no lixo. Coisas que, às vezes, nem estão vencidas".

E ainda existem épocas certas do ano. "Nas festas de final de ano, no Carnaval, tem mais comida no lixo. Justamente na época em que a população deveria desperdiçar menos alimentos", diz, inconformado.

Ainda conforme o carrinheiro, atrás dos cemitérios da cidade são os locais preferidos para se colocar restos humanos. É possível encontrar até fetos. "Outro dia encontramos o corpo de um bebê no lixo. Avisamos a polícia. Não é comum, mas acontece".

Para o catador, existe uma certa "fartura" no lixo da cidade. Uma máquina de escrever, walkman, discman e aparelhos de informática fazem parte da coleção de objetos encontrados no lixo por Anderson. Todos funcionando em perfeito estado.

Carrinheiros entram na guerra contra o analfabetismo

Vanderléia de Freitas tem 33 anos. É mãe de 5 filhos e trabalha como carrinheira, secretária e dona-de-casa. Apesar da correria do dia-a-dia, sobra tempo para uma das atividades mais importantes em sua vida. Mesmo tendo formação escolar até a 8ª série, há 6 meses é professora de português e alfabetizadora. Seus alunos são companheiros de profissão: carrinheiros da região do Centro da cidade que assistem as suas aulas à noite.

Enquanto o Programa Alfabetização Zero não sai do papel, a Pastoral da Criança e a Associação dos Carrinheiros de Santos se unem para combater o analfabetismo e a pobreza infantil na região do centro da cidade. É uma verdadeira guerra de gigantes. De um lado, carrinheiros e os agentes da Pastoral da Criança. Do outro, a exclusão social, o desemprego e a miséria gritante de um dos bairros mais pobres de Santos. O quartel-general fica localizado na Rua Amador Bueno, 446, num grande galpão, onde são ministradas as aulas e os carrinheiros trabalham.

Os trabalhos entre as entidades são realizados em acordo. A Associação oferece à Pastoral maior penetração na região do centro com cursos e projetos - como a pesagem de crianças feita no galpão da entidade - e a Pastoral dá visibilidade e respaldo à Associação. Todo segundo sábado do mês são pesadas cerca de 54 crianças.

Desse combate só saem vitoriosos. "O trabalho melhorou muito. Conseguimos reformar o galpão: criamos um escritório, um refeitório e uma sala de aula. Agora temos 8 carroças de lixo", orgulha-se Vanderléia. Por semana, no espaço, se processam cerca de 3,5 toneladas de lixo.


O carrinheiro Anderson mostra a falta de consciência:
caixas inteiras de frutas próprias para o consumo são jogadas no lixo
Foto: Alex Almeida, publicada com a matéria

Apenas mais um na multidão

Anderson e Ana são um casal de catadores de lixo da Associação dos Carrinheiros de Santos. A história do encontro deles com o lixo, em 2001, no entanto, revelou mais do que a tragédia pessoal de um brasileiro pobre e desempregado que nunca teve a chance de ser mais do que um catador. Anderson e Ana chamaram a atenção dos associados porque poderiam não estar ali.

Ele era locutor de rádio. "Trabalhei três anos numa rádio em São Paulo". O ano era 1998 e a rádio, comunitária, chamava-se Conexão FM. Ela era funcionária da rádio.

Natural de Santo André, Anderson falava no seu programa de um problema que iria bater de cara no futuro: a exclusão social. "Muitas pessoas entravam por telefone no ar e pediam cesta básica, emprego, além de reclamar de políticos e empresários. Era um programa que fazia sucesso no bairro, mas não tinha anunciantes", relembra.

Como muitos de seus companheiros, Anderson desconversa em relação ao motivo de estar ali. "Um golpe financeiro de meu ex-sócio foi o motivo desse corte em minha vida, acarretando dívidas que nunca seriam pagas. Eu dependia muito da rádio".

Hoje, com uma calça rasgada, unhas negras de sujeira e tênis enlameados, Anderson é mais um quando se mistura aos vários catadores que dividem com ele as latas, plásticos e outros recicláveis despejados nas ruas, junto com restos de comida. Como centenas de companheiros, Anderson tem nome, rosto, identidade e até perfil. "Fiz curso de rádio na Jovem Pan na Avenida Paulista, na capital".

Com uma renda de 350 reais mensais no bolso, fruto de 12 horas diárias de trabalho, o carrinheiro sente orgulho do que faz e cita três motivos: ganhar o dinheiro de forma digna, limpar a cidade e preservar o meio-ambiente: "Os carrinheiros realizam diariamente um trabalho importantíssimo de reciclagem. Coisa que muita dona-de-casa não tem coragem e não sabe fazer".

E prossegue: "Santos é uma cidade que tem uma pobreza de espírito muito grande. O preconceito é muito grande nesta cidade", diz, citando casos de companheiros de profissão que sofreram agressões físicas e morais. Preconceito que impede um café da manhã. "Tem padarias em que somos proibidos de entrar, mesmo que tenhamos dinheiro".

Anderson impressiona não só pela clareza das idéias, mas pelo senso crítico e conhecimento dos problemas sociais do país. "O programa Fome Zero nunca vai dar certo, enquanto a dona-de-casa, o empresário, o dono do restaurante não souberem a riqueza do lixo, aproveitar alimentos e a importância de se reciclar todo tipo de material.

Apesar dos imprevistos e das dificuldades em sua vida, sobra tempo para pensar no futuro.

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