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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - URBANISMO (G)
Santos em três momentos (3): 2083

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Metropolização, conurbação, verticalização. Os santistas passaram a segunda metade do século XX se acostumando com essas três palavras, que sintetizam um período de grandes transformações no modo de vida dos habitantes da Ilha de São Vicente e regiões próximas. Em 26 de março de 1983, o jornal santista A Tribuna comemorava seu 90º aniversário com uma edição especial, em que mostrava a cidade em três momentos - passado, presente e futuro:
 
As raízes do mal

(Apenas um exercício de ficção)

Estamos no futuro, ano 2083.

O operador liga o transcomunicador e fala com voz grave: "Estação móvel ST-Y 28 informando ao Núcleo de Comando Espacial. Verificada perturbação no tráfego-luz de aeronaves na entrada de Santos Estelar. Nossos patrulheiros já estão no local adotando plano especial ZX-32 mas pouco poderão fazer. A culpa é das obras da Via Interplanetária Tarquínio Neto, na entrada da base. Vamos fazer o possível mas o congestionamento deverá prosseguir por mais algumas horas lunares. Canal preferencial WQR-231 em aberto. Aguardamos manifestação do inspetor de fluxo galático".

O controlador está irritado: quem será que teve a brilhante idéia de reformular o acesso principal à base espacial de Santos logo agora, em plena temporada cósmica, quando milhares de visitantes de outros sistemas solares procuram o nosso supercentro de lazer, turismo e cultura, um dos lugares mais agradáveis e repousantes de todo o universo?

Enquanto observa os pontos luminosos e os focos laser no painel computadorizado, o controlador recorda as histórias contadas por seu pai, um velho engenheiro núcleo-fissor, o homem que iniciou o grande projeto de reconstrução de Santos, após a catástrofe de 2020, quando o mar finalmente invadiu a cidade, como previam os antigos profetas do século passado, destruindo prédios, derrubando morros e matando milhares de pessoas. E lembra que seu pai sempre falava: "Santos foi destruída por suas próprias contradições, não se pode pensar que as coisas sempre serão iguais, é preciso antever o futuro.

O velho engenheiro sempre dizia do prazer que sentiu ao elaborar o Plano Centralizador de Renascimento de Santos e, nas noites de vento atômico, costumava contar aos filhos as dificuldades encontradas, a começar pela definição dos objetivos do empreendimento e da concessão de verbas, que encontrou forte reação por parte do Partido Unificado das Ideologias Utópicas. Muitos gastropolíticos faziam pé firme, querendo que tudo voltasse a ser como antes, uma réplica autêntica da Santos do passado, igualzinha à cidade de 1983.

Mas os representantes da Frente Contemporânea da Vida Livre fizeram passeatas, querendo que o passado e suas atrasadas concepções fossem definitivamente sepultados e que a reconstrução obedecesse a novos critérios, transformando a velha ilha em ponto de convergência para todo o cosmos. Sonhavam com um reduto de paz e tranqüilidade, onde a ética ecológica e o respeito mitológico fossem o sustentáculo de uma nova sociedade.

Os jovens, é verdade, venceram a votação no Supremo Fórum das Prioridades, mas foram obrigados a fazer algumas concessões, como permitir a criação de 199 novos cargos de assessoria de sistemas subidealizados.

Estes fatos todos o jovem operador conhecia bem, pois passou boa parte da infância e adolescência assistindo aos empoeirados discos microfilmados que seu pai guardava com carinho, para preservar a memória da civilização litorânea. "A história nos ensina a viver para o hoje e para o amanhã", costumava repetir para os filhos.

E enquanto o transmutador de tempo avança, trazendo a noite, o jovem operador lembra alguns acontecimentos antigos, como a festiva inauguração do sistema de canalização unilateral da poluição de Cubatão, construído às pressas depois do dia em que o Rio Cubatão pegou fogo e ameaçou mandar toda a Baixada Santista pelos ares. Foi apenas um descuido de um trabalhador da usina de nêutrons, que jogou um cigarro aceso nas águas.

Mas o operador admirava, na verdade, a filosofia de vida que seu pai conseguiu instalar junto com o plano de reconstrução. A mudança, auxiliada pela natureza, incluiu uma nova mentalidade comunitária, vivencial, existencial. E foi assim que o jovem aprendeu a amar Santos.

E é exatamente por  isso que ele anda tão preocupado.

Os novos colonos e o velho jornalista - Acostumado a perceber as mais leves mudanças de comportamento, o jovem operador sabe bem que as alterações foram muitas, desde os aspectos astro-urbanistas até as implicações metropolíticas. Os eletrojornais não cansam de transmitir os sinais de que alguma coisa não anda bem.

Primeiro, o Egrégio Controle Populacional resolveu cortar de uma vez por todas a autonomia espacial de Santos. "O povo andava inquieto e arisco", disseram os protonsábios e nomearam um burgo-intendente para governar. Reações aconteceram, pois o indicado foi Barbosis VIII, um extraterrestre, alheio à vida do lugar.

E os primeiros tempos do novo governante foram difíceis: a tranqüilidade tão duramente conquistada, aos poucos desmoronava. Resolveu-se realizar muitas obras grandiosas, como a moderna Espaçovia dos Sobreviventes, mas não havia intercentavos suficientes. Antigos moradores olhavam assustados as imponentes torres do infinito, habitações coletivas que pareciam chegar às estrelas, dotadas de transformadores de oxigênio e ambientadores cósmicos.

Para resolver o grave problema da superpovoação da ilha, inclusive na parte aérea, foi aplicado este complicado sistema de construções nucleares, derrubando prédios antigos e erguendo as novas torres em questão de dias. As torres foram invadindo todos os locais ainda disponíveis, incluindo o Augusto Centro das Artes Androméticas, apesar de todas as tentativas de tombamento e preservação.

As pontes submarinas - engenhos metálicos que se estendiam até a laje de Santos, em pleno oceano - deixaram de ser apenas locais de lazer e pesquisa, para transformarem-se em alternativa de moradia para os microtrabalhadores, que aqui chegavam atraídos pelas obras de expansão da moderna refinaria de carvão venusiano, recolhido dos asteróides errantes. Espalhavam-se os micro pelas amuradas, indolentes, famintos, espiando os peixes-mercúrio (altamente contaminados) que perseguiam as lanchas craft de transporte comunitário, que faziam a ligação com Alfapema.

O Centro de Controle dos Espaços Disponíveis e a Divisão de Encaminhamento Populacional tentavam traçar diretrizes para abrigar os milhões de habitantes, enquanto o Setor de Multiplicação de Alimentos tenta fazer milagres com a produção de moluscos exóticos.

No Núcleo dos Novos Colonos Centuriais, o desemprego era total e aumentavam as agrofavelas. Líderes comunitários viviam gritando nas tele-emoções: "A riqueza tem que ser distribuída entre todos...".

E, para complicar ainda mais, o Hospital das Doenças Vídeo-Transmissíveis estava fechado, sem verbas, sem poder subsistir, causando uma epidemia de hiperneuroses.

Nas cavernas interligadas dos morros e dos astros de Santos, uma perigosa população armava-se até os dentes, inclusive com os perigosos lugger-dissolventes, assaltando os visitantes.

Apesar de ter todas as condições para tornar-se um dos locais mais visitados da Terra, Santos não rendia divisas moleculares ao Supremo Conselho Ditatorial. E, por isso, recebia pouca atenção, apesar de ter o maior espaço-porto do universo conhecido.

Os turistas também tinham motivos para reclamações: a Colônia Repousante de Bertioga estava praticamente abandonada, sem transportes e sem os Postos de Distribuição Alimentar, enquanto o Depositário de Animais Alienígenas não mostrava novas atrações, apenas o velho leão de Saturno.

Por tudo isso, o jovem controlador não tirava da cabeça a figura de um velho e rabugento jornalista, amigo de seu pai, que vivia escrevendo violentos manifestos pedindo a reintegração no cargo de dirigente doméstico daquele negro altivo, que havia sido eleito legalmente e exilado antes de tomar posse. E que não cansava de pregar a integração dos andróides.

Pois o velho e rabugento jornalista vivia repetindo: "Este não é um planeta sério!", indignado com os rumos da civilização e, principalmente, com a saturação da Estação Estelar de Santos.

O grande retorno - O velho jornalista dizia que o tempo estava retrocedendo, por alguma arte mística ou premeditação dos poderosos. E o jovem controlador pensava muito nestas coisas.

Naquela noite, voltando para casa no seu rumoplay e olhando a chuva meteórica cobrir a cidade, ele perguntava-se se algum dia, em todos os tempos, as coisas haviam chegado a este estado deplorável e incerto. Ouvira muitas lendas sobre os "velhos tempos tristonhos", mas não podia avaliar o que ocorrera lá por volta de 1983. Lembrava apenas a figura de seu venerável avô praguejando e maldizendo fatos sem nenhum sentido, alguma coisa sobre maxideslocação ou dúvidas externas.

O rumplay atravessava a Cidade, contornando os radares dos prédios envidraçados e desviando dos grandes anúncios lumiflutuantes que ofereciam maravilhosas máquinas japonesas e tônicos beta-reativantes.

Lá de cima, ele enxergava as ruas escuras (as neuroluminárias estavam todas danificadas) e cheias de sujeira. Nas esquinas e mesmo nos espaço-terminais, estranhas formas de vida perambulavam, esquivas, ameaçadoras. "Nossa estação é um bocado triste, parece que a angústia está no ar", pensou.

Pouco tempo depois, no ambiente abafado de um certo ínfimo bar, o jovem controlador conversava com alguns companheiros da Academia Luminosa dos Acompanhantes Multicelulares. Os copos de etilocanalizador já estavam praticamente vazios quando o grupo discutia sobre o futuro. As frases:

- "O que será dos nossos filhos, vivendo aqui?"

- "Precisamos fazer alguma coisa, não podemos continuar vivendo apenas dos vídeo-impostos para sustentar toda a população...".

- "As vilas da Planície Gelada são muito mais novas e arrecadam muito mais do que a gente...".

- "E os membros do Conselho Curricular do Proletariado continuam sem fazer nada, preocupados apenas em garantir suas próprias vidas e as longomordomias..."

Já meio entorpecido, o jovem controlador ouviu do mais velho dos seus companheiros a preocupação maior de todos: "Onde será que erramos? O que fizemos para merecer tudo isso, essas urano-algemas que nos prendem, essa falta de calor, de generosidade, de interumanidade?"

E, em sua cabeça, sem mesmo saber a razão, apareceu a voz do avô, esbravejando: "83 foi a nossa ruína. Eu cansei de avisar, mas eles não quiseram ouvir. Agora, as novas gerações é que vão pagar por tudo".

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