Comportamento
Criança
e professor: de Colombo à Padroeira
Coincidência de quatro
datas festivas em outubro permite refletir sobre a relação
entre elas
Carlos Pimentel Mendes (*)
Quem
semeia vento, colhe tempestade. O dito tradicional se aplica bem à
complexidade de problemas enfrentados pela sociedade americana (do Norte,
do Centro e do Sul...) em relação às crianças,
aos adolescentes, aos professores, aos pais... e ao seu próprio
futuro. Não temos uma relação saudável entre
esses personagens, como é fácil perceber num passeio pelas
cidades. Com guarda-costas, lógico, para proteção
contra os grupos de menores delinqüentes que fazem um arrastão
de assaltos, sob o olhar complacente de alguns policiais, que até
conversam com eles enquanto dividem o produto do saque...
Policiais
conversam com ladrões que acabaram de fazer um arrastão
na praia do Leblon, e apenas
observam, enquanto os marginais dividem o produto do saque, na própria
praia Imagem: captura
de tela, noticiário da Rede Globo de Televisão, 29/9/2004,
7h23
Quando Colombo começou a trazer
para a América os padrões europeus de comportamento, encontrou
aqui uma sociedade indígena (vá lá, várias...)
em que uma das características é a existência de um
rito de passagem à fase adulta. Seja meter a mão num pote
de formigas selvagens e agüentar firme, ou o que for, o fato é
que ao término da prova o indivíduo deixa a condição
de tutelado e passa à de adulto, em igualdade de condições
com os demais adultos. Com direitos e deveres de adulto.
Na sociedade branca européia,
não existe uma divisão clara, e inclusive se ampliou a zona
amorfa entre a criança e o adulto com a criação de
novas faixas: pré-adolescência, puberdade, adolescência,
jovem etc. E não se criou definição clara para nenhuma
dessas fases do crescimento. Ao contrário, sob a influência
da propaganda de fisiculturismo, moda, clínicas de estética,
fabricantes de remédios e cosméticos etc., tornou-se aceitável
que adultos até em fase idosa regridam à fase da adolescência...
OK, tem o seu lado bom, nada desprezível, mas tratemos apenas do
que resulta da falta de um melhor controle social desse processo.
Indígenas
têm rito de passagem. Na sociedade branca, professores sem apoio
não enfatizam os limites do comportamento social, que por serem
indefinidos facilitam o ingresso na marginalidade Fotos: reprodução
Sem limites – O grande problema
é a falta de definição dos limites. Cobra-se da criança
e do jovem algo que o menor terá que descobrir por si só,
tateando em sua inexperiência. Para descobrir os limites, precisa
avançá-los e sentir a reação. Que muitas vezes,
por esse mesmo problema de indefinição, aparece na forma
de sinais cruzados: uns aplaudem, enquanto outros condenam violentamente.
Perplexidade...
Ou alguém tem dúvida
de que não surgiram aplausos quando um grupo de jovens de famílias
prósperas incendiaram um índio em Brasília? Eles não
fizeram muito mais do que as forças policiais (integradas e comandadas
por adultos), que - no dia do Índio do ano 2000, junto ao marco
do descobrimento do Brasil, em Porto Seguro -, repeliram violentamente
os índios que tentavam chegar ao local da festa... E não
são crianças que produzem filmes com teor extremo de violência,
nem são crianças que transmitem tais cenas na sessão
da tarde da televisão... Também não são crianças
que produzem e patrocinam programas mundo-cão (no pior sentido,
em que atitudes dos humanos até ofendem os ditos animais irracionais...).
No Brasil, como em vários
outros países, a chamada elite não é cultural, mas
econômica. Não se destaca pelo que sabe, mas pelo que possui.
Com vergonha do que não sabe, faz como a raposa que não consegue
alcançar as uvas: despreza-as, estão verdes... Então,
a elite que em tese teria condições de mostrar aos demais
o caminho a seguir (pois está no alto, poderia ver mais longe...),
passa a cultuar e reproduzir comportamentos sociais da camada social que
não teve acesso a melhores padrões de vida, cultura e educação.
Em lugar dos príncipes finamente
educados tanto na arte da esgrima como nos floreios verbais, vivendo entre
sábios - que serviram de referência e modelo para a construção
da sociedade na Europa -, temos como referência de valores grupos
de pessoas que enriqueceram subitamente, e que passaram a usar a força
dessa riqueza para se impor como os novos padrões. Sem base cultural,
imitam (pessimamente) as elites de sociedades mais avançadas, mas
desprezam a cultura que não têm e valorizam o superficial,
que é o máximo que conseguem apreender de qualquer assunto
tratado. O que não entendem, declaram ser enfadonho e sem importância.
Então é "positivo"
alguém declarar numa cultuada revista de banalidades que deixou
de praticar música porque o uso do instrumento era incompatível
com suas unhas compridas... É "positivo" ver na televisão
um casal suburbano trocando acusações de infidelidade em
meio a sopapos, mas é brega, cafona, mudar de canal para ver um
documentário, um filme de arte. É positivo pinçar
palavras estrangeiras para pendurá-las nas frases, mesmo que o falante
não tenha a mínima idéia do que acabou de dizer, mas
é indesejável quem tenta se elevar culturalmente (poderá
descobrir que o rei está nu...)
A modelo/manequim e o esportista
analfabeto são destacados, ganham muito bem, enquanto o ignorado
cientista nacional tem de se exilar para os países que lhe darão
condições de criar novos produtos. Novidades que as elites
brasileiras pagarão com as divisas duramente obtidas pelos trabalhadores,
os mesmos que moram na margem oposta do fosso social criado pela brutal
desigualdade na distribuição de renda.
Da superficialidade, um passo para
a inconseqüência. Não se valorizando a cultura, nem se
buscando aperfeiçoar o modelo social, despreza-se valores antigos
e por extensão quem os represente. Por isso, as figuras do pai,
do professor, do patriarca, perderam valor em nosso meio. Como também
perderam valor o livro, a música clássica, a arte pictórica.
O que ficou no lugar, como ser ou objeto valorizado? O superficial, o marginal,
em todos os sentidos. Perdeu-se a noção do que seja qualidade,
talvez de forma deliberada, para que seja mais fácil vender produtos,
pessoas e idéias sem qualidade. Frase dura, sim, mas infelizmente
algo real...
Greve de
professores, na capital paulista, década de 1980: a sociedade
não reconhece a importância do ensino e do professor Imagem: enciclopédia
Retrato
do Brasil, Editora Três/Política Editora, São Paulo/SP,
1984
Recuperar os limites – Dos
ventos à tempestade. Ficou muito difícil definir novos limites,
ainda mais quando falta a vontade e mesmo a capacidade de impô-los.
Como exemplos, a Convenção Internacional dos Direitos da
Criança e o Estatuto da Criança e do Adolescente, com normas
civilizadas que se tenta - há 14 anos - aplicar a uma sociedade
que regrediu ao estágio da barbárie. Sim, barbárie.
Ou assassinar mendigos, matar por um par de tênis ou um telefone
celular, não conseguir um estudante o mínimo de concatenação
de idéias para formar e entender uma frase, destruir sem motivo
o patrimônio público, valorizar atitudes irracionais, são
sinais de civilização?
Notícia do dia: professores
em greve, reclamam de que sua profissão está sendo aviltada,
com salários mínimos e sobrecarga de horas de trabalho. E
não é só reclamação de ativista sindical:
a prova é que um dos maiores problemas das escolas é a falta
de professores.
Ora, se no passado os professores
tivessem sabido incutir nos alunos noções básicas
de valores e limites, mostrando a importância do ensino, da cultura,
da educação, para o próprio enriquecimento da sociedade,
hoje essa classe desfrutaria decerto do mesmo respeito que teve no passado.
Pois os ex-alunos de poucas décadas atrás são os elementos
que hoje decidem neste País. Por quê eles não dão
ao professor uma condição econômica e social melhor?
Porque não foram ensinados a fazer isso. Ventos semeados...
Pelas normas em vigor, não
se pode aplicar às crianças castigos corporais. Certo, existem
formas mais avançadas de educar, sem castigos físicos. Mas
que se tornam inócuas, ante a barbárie reinante, que estimula
o menor a infringir as poucas regras ainda em vigor e a desafiar os adultos,
estes sem moral e força para impor normas que eles mesmos não
seguem. Então, um pai que se atreve a bater no filho para castigá-lo
pode ser condenado, mas se o mesmo pai, sem forças para remar contra
a maré de selvageria, pede auxílio à sociedade para
educar essa criança, o que encontra? Meios de comunicação
valorizando o lixo, uma tessitura social em que vale mais quem é
mais pervertido, autoridades despreparadas para ajudá-lo, professores
assoberbados com classes enormes e incontroláveis devido aos mesmos
problemas enfrentados pelos pais.
Solução legal: ah,
envia o "caso" para o Conselho Tutelar. Que também não sabe
lidar com o "caso" e trata de empurrá-lo com a barriga, transferindo
sucessivamente o aluno de escola, até que o tempo agrave os problemas
e eles se resolvam por si só (com a morte do "caso" numa briga de
rua). Se o assunto for mais urgente, manda para a Febem (sem comentários
sobre a qualidade da reeducação ali praticada). E quando
armas e drogas se juntam à pobreza para formar novos bandidos, polícia
neles. Detalhe: a polícia "apreende" o menor, que debocha, pois
sabe que horas depois estará de novo na rua: o juiz também
não sabe o que fazer com o problema, pela falta de mecanismos sociais
de correção, de tratamento, de recuperação.
Qualquer decisão do juiz será ruim... Afinal, como impor
limites, se eles não existem mais?
Em resumo: a sociedade, isto é,
todos nós, precisamos sair desse círculo vicioso, criando
um novo padrão de comportamento e de relacionamento que busque resolver
esses conflitos. Simples como colocar um ovo em pé, não é?
Ou então, lembrando a última das quatro datas festivas da
semana, rezar à padroeira do Brasil para que dê um jeito em
tudo isso. Agora, cá entre nós, leitor: vendo como a sociedade
tem lidado com o problema, infelizmente continuaremos apelando para o método
mais cômodo: quer ver como vão aumentar as novenas e as trezenas?
O drama
do menor, no Brasil, ainda aguarda uma solução melhor Imagem: enciclopédia
Retrato
do Brasil, Editora Três/Política Editora, São Paulo/SP,
1984
(*) Carlos
Pimentel Mendes é jornalista, editor do jornal eletrônico
Novo
Milênio.
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