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Edição 135 - Set-Out/2004
Comportamento 

Criança e professor: de Colombo à Padroeira

Coincidência de quatro datas festivas em outubro permite refletir sobre a relação entre elas

Carlos Pimentel Mendes (*)

Quem semeia vento, colhe tempestade. O dito tradicional se aplica bem à complexidade de problemas enfrentados pela sociedade americana (do Norte, do Centro e do Sul...) em relação às crianças, aos adolescentes, aos professores, aos pais... e ao seu próprio futuro. Não temos uma relação saudável entre esses personagens, como é fácil perceber num passeio pelas cidades. Com guarda-costas, lógico, para proteção contra os grupos de menores delinqüentes que fazem um arrastão de assaltos, sob o olhar complacente de alguns policiais, que até conversam com eles enquanto dividem o produto do saque...


Policiais conversam com ladrões que acabaram de fazer um arrastão na praia do Leblon, 
e apenas observam, enquanto os marginais dividem o produto do saque, na própria praia
Imagem: captura de tela, noticiário da Rede Globo de Televisão, 29/9/2004, 7h23

Quando Colombo começou a trazer para a América os padrões europeus de comportamento, encontrou aqui uma sociedade indígena (vá lá, várias...) em que uma das características é a existência de um rito de passagem à fase adulta. Seja meter a mão num pote de formigas selvagens e agüentar firme, ou o que for, o fato é que ao término da prova o indivíduo deixa a condição de tutelado e passa à de adulto, em igualdade de condições com os demais adultos. Com direitos e deveres de adulto.

Na sociedade branca européia, não existe uma divisão clara, e inclusive se ampliou a zona amorfa entre a criança e o adulto com a criação de novas faixas: pré-adolescência, puberdade, adolescência, jovem etc. E não se criou definição clara para nenhuma dessas fases do crescimento. Ao contrário, sob a influência da propaganda de fisiculturismo, moda, clínicas de estética, fabricantes de remédios e cosméticos etc., tornou-se aceitável que adultos até em fase idosa regridam à fase da adolescência... OK, tem o seu lado bom, nada desprezível, mas tratemos apenas do que resulta da falta de um melhor controle social desse processo.


Indígenas têm rito de passagem. Na sociedade branca, professores sem apoio não enfatizam os limites do comportamento social, que por serem indefinidos facilitam o ingresso na marginalidade
Fotos: reprodução

Sem limites – O grande problema é a falta de definição dos limites. Cobra-se da criança e do jovem algo que o menor terá que descobrir por si só, tateando em sua inexperiência. Para descobrir os limites, precisa avançá-los e sentir a reação. Que muitas vezes, por esse mesmo problema de indefinição, aparece na forma de sinais cruzados: uns aplaudem, enquanto outros condenam violentamente. Perplexidade...

Ou alguém tem dúvida de que não surgiram aplausos quando um grupo de jovens de famílias prósperas incendiaram um índio em Brasília? Eles não fizeram muito mais do que as forças policiais (integradas e comandadas por adultos), que - no dia do Índio do ano 2000, junto ao marco do descobrimento do Brasil, em Porto Seguro -, repeliram violentamente os índios que tentavam chegar ao local da festa... E não são crianças que produzem filmes com teor extremo de violência, nem são crianças que transmitem tais cenas na sessão da tarde da televisão... Também não são crianças que produzem e patrocinam programas mundo-cão (no pior sentido, em que atitudes dos humanos até ofendem os ditos animais irracionais...).

No Brasil, como em vários outros países, a chamada elite não é cultural, mas econômica. Não se destaca pelo que sabe, mas pelo que possui. Com vergonha do que não sabe, faz como a raposa que não consegue alcançar as uvas: despreza-as, estão verdes... Então, a elite que em tese teria condições de mostrar aos demais o caminho a seguir (pois está no alto, poderia ver mais longe...), passa a cultuar e reproduzir comportamentos sociais da camada social que não teve acesso a melhores padrões de vida, cultura e educação.

Em lugar dos príncipes finamente educados tanto na arte da esgrima como nos floreios verbais, vivendo entre sábios - que serviram de referência e modelo para a construção da sociedade na Europa -, temos como referência de valores grupos de pessoas que enriqueceram subitamente, e que passaram a usar a força dessa riqueza para se impor como os novos padrões. Sem base cultural, imitam (pessimamente) as elites de sociedades mais avançadas, mas desprezam a cultura que não têm e valorizam o superficial, que é o máximo que conseguem apreender de qualquer assunto tratado. O que não entendem, declaram ser enfadonho e sem importância. 

Então é "positivo" alguém declarar numa cultuada revista de banalidades que deixou de praticar música porque o uso do instrumento era incompatível com suas unhas compridas... É "positivo" ver na televisão um casal suburbano trocando acusações de infidelidade em meio a sopapos, mas é brega, cafona, mudar de canal para ver um documentário, um filme de arte. É positivo pinçar palavras estrangeiras para pendurá-las nas frases, mesmo que o falante não tenha a mínima idéia do que acabou de dizer, mas é indesejável quem tenta se elevar culturalmente (poderá descobrir que o rei está nu...)

A modelo/manequim e o esportista analfabeto são destacados, ganham muito bem, enquanto o ignorado cientista nacional tem de se exilar para os países que lhe darão condições de criar novos produtos. Novidades que as elites brasileiras pagarão com as divisas duramente obtidas pelos trabalhadores, os mesmos que moram na margem oposta do fosso social criado pela brutal desigualdade na distribuição de renda.

Da superficialidade, um passo para a inconseqüência. Não se valorizando a cultura, nem se buscando aperfeiçoar o modelo social, despreza-se valores antigos e por extensão quem os represente. Por isso, as figuras do pai, do professor, do patriarca, perderam valor em nosso meio. Como também perderam valor o livro, a música clássica, a arte pictórica. O que ficou no lugar, como ser ou objeto valorizado? O superficial, o marginal, em todos os sentidos. Perdeu-se a noção do que seja qualidade, talvez de forma deliberada, para que seja mais fácil vender produtos, pessoas e idéias sem qualidade. Frase dura, sim, mas infelizmente algo real...


Greve de professores, na capital paulista, década de 1980: 
a sociedade não reconhece a importância do ensino e do professor
Imagem: enciclopédia Retrato do Brasil, Editora Três/Política Editora, São Paulo/SP, 1984

Recuperar os limites – Dos ventos à tempestade. Ficou muito difícil definir novos limites, ainda mais quando falta a vontade e mesmo a capacidade de impô-los. Como exemplos, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança e o Estatuto da Criança e do Adolescente, com normas civilizadas que se tenta - há 14 anos - aplicar a uma sociedade que regrediu ao estágio da barbárie. Sim, barbárie. Ou assassinar mendigos, matar por um par de tênis ou um telefone celular, não conseguir um estudante o mínimo de concatenação de idéias para formar e entender uma frase, destruir sem motivo o patrimônio público, valorizar atitudes irracionais, são sinais de civilização?

Notícia do dia: professores em greve, reclamam de que sua profissão está sendo aviltada, com salários mínimos e sobrecarga de horas de trabalho. E não é só reclamação de ativista sindical: a prova é que um dos maiores problemas das escolas é a falta de professores.

Ora, se no passado os professores tivessem sabido incutir nos alunos noções básicas de valores e limites, mostrando a importância do ensino, da cultura, da educação, para o próprio enriquecimento da sociedade, hoje essa classe desfrutaria decerto do mesmo respeito que teve no passado. Pois os ex-alunos de poucas décadas atrás são os elementos que hoje decidem neste País. Por quê eles não dão ao professor uma condição econômica e social melhor? Porque não foram ensinados a fazer isso. Ventos semeados...

Pelas normas em vigor, não se pode aplicar às crianças castigos corporais. Certo, existem formas mais avançadas de educar, sem castigos físicos. Mas que se tornam inócuas, ante a barbárie reinante, que estimula o menor a infringir as poucas regras ainda em vigor e a desafiar os adultos, estes sem moral e força para impor normas que eles mesmos não seguem. Então, um pai que se atreve a bater no filho para castigá-lo pode ser condenado, mas se o mesmo pai, sem forças para remar contra a maré de selvageria, pede auxílio à sociedade para educar essa criança, o que encontra? Meios de comunicação valorizando o lixo, uma tessitura social em que vale mais quem é mais pervertido, autoridades despreparadas para ajudá-lo, professores assoberbados com classes enormes e incontroláveis devido aos mesmos problemas enfrentados pelos pais.

Solução legal: ah, envia o "caso" para o Conselho Tutelar. Que também não sabe lidar com o "caso" e trata de empurrá-lo com a barriga, transferindo sucessivamente o aluno de escola, até que o tempo agrave os problemas e eles se resolvam por si só (com a morte do "caso" numa briga de rua). Se o assunto for mais urgente, manda para a Febem (sem comentários sobre a qualidade da reeducação ali praticada). E quando armas e drogas se juntam à pobreza para formar novos bandidos, polícia neles. Detalhe: a polícia "apreende" o menor, que debocha, pois sabe que horas depois estará de novo na rua: o juiz também não sabe o que fazer com o problema, pela falta de mecanismos sociais de correção, de tratamento, de recuperação. Qualquer decisão do juiz será ruim... Afinal, como impor limites, se eles não existem mais? 

Em resumo: a sociedade, isto é, todos nós, precisamos sair desse círculo vicioso, criando um novo padrão de comportamento e de relacionamento que busque resolver esses conflitos. Simples como colocar um ovo em pé, não é? Ou então, lembrando a última das quatro datas festivas da semana, rezar à padroeira do Brasil para que dê um jeito em tudo isso. Agora, cá entre nós, leitor: vendo como a sociedade tem lidado com o problema, infelizmente continuaremos apelando para o método mais cômodo: quer ver como vão aumentar as novenas e as trezenas?


O drama do menor, no Brasil, ainda aguarda uma solução melhor
Imagem: enciclopédia Retrato do Brasil, Editora Três/Política Editora, São Paulo/SP, 1984


(*) Carlos Pimentel Mendes é jornalista, editor do jornal eletrônico Novo Milênio.