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Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 07/03/01 22:48:34
Diário de Bordo (Recife-Manaus no navio Bianca) [16]
Do Capibaribe ao Amazonas

Os cunhados e os pescadores

Carlos Pimentel Mendes (*)

Contam os práticos do rio que de bordo pode-se ficar sabendo se a pesca está boa ou não. Ao avistarem uma canoa, fazem um sinal com as mãos abertas, na vertical, como se estivessem medindo alguma coisa. Os pescadores respondem, se for o caso, mostrando o maior peixe que pescaram...

Mas, a principal curiosidade do rio Amazonas fica por conta dos cunhados. Não são parentes e nem têm esse apelido por exercerem alguma atividade de estiva, como no porto de Santos. Os cunhados do Amazonas são habitantes ribeirinhos, que saem nas suas frágeis canoas para pedir que os marinheiros lhes joguem coisas. Os tripulantes já se preparam com bastante antecedência, e deixam pacotes com sapatos velhos, roupas, alimentos, garrafas plásticas de água mineral, que atiram no rio nessa hora. Desafiando as marolas da esteira do navio, os cunhados (garotos, homens, mulheres, até cães) disputam entre si esses pequenos presentes...

Nas margens do Amazonas, além de pequenas culturas e da pesca nos paranás e nas lagoas formadas pelo rio na vazante, encontram-se fazendas para criação de gado bovino, como a Fazenda Tamoatá, avistada num final de tarde. Todas as construções são sobre estacas (palafitas), por causa da cheia do rio. Destaca-se entre elas, também em madeira, um posto de observação, bem elevado, que serve para os ribeirinhos localizarem o gado, espalhado pelos arredores e por vezes ilhado em pontos mais distantes.

No Amazonas, também existem os tapiris, uma espécie de habitação provisória, sobre estacas, com cobertura de palha e assoalho de paxiúba (tábua extraída de uma palmeira). Geralmente sem paredes (em alguns casos há uma parede, na parede dos fundos), permitem a dormida em redes (raramente esses habitantes dormem sobre o assoalho).

O rio domina tudo ao seu redor. A quantidade de troncos de árvores, tufos de grama e galhos que passam boiando pelo navio é tão grande que obstrói igarapés, furos e paranás, o que obriga a presença do prático nos navios, já que os cursos são bastante mutáveis a cada período do ano. Se fosse reunida só a quantidade de troncos e capinzais que passaram pelo Bianca nesse percurso até Manaus, daria para formar uma ilha de bom tamanho. Com fauna, até: além das aves que pousam nesses troncos flutauantes, é comum encontrar cobras d'água e outros espécimes, vivos ou mortos...

E os passarinhos curiosos insistem em penetrar nos twistlocks - os orifícios nos corners dos conteineres que servem para o içamento desas unidades -, durante a passagem do navio pelo Amazonas.

Nas margens, a vazante do rio permite observar tipos de vegetação. Destacam-se a mata de igapó, que sobrevive inundada por cinco a seis meses durante o ano, e cujas árvores são quase sempre dotadas de grandes sapopemas (espécie de pranchas de apoio); e mata de várzea, só inundada nas grandes enchentes, e também com árvores exuberantes tanto por serem em alguns casos dotadas de sapopemas, como pela grande quantidade de cipós e lianas; e a mata de terra firme, bastante diferente das demais da região, sendo semelhante às matas de outros pontos do País.

Quanto a índios, nem pensar; essa é aliás a frustração de muitos turistas que vão a Manaus. Buscando preservar seus hábitos, costumes e tradições, os indígenas se refugiam cada vez mais nas profundezas da floresta, fugindo da civilização branca, ou então se aculturam e se integram à vida urbana ou rural dentro dos padrões dessa civilização.

Nas margens devastadas pelas águas, a divisão entre a mata de várzea e a de terra firme é bem visível
(*) O editor de Novo Milênio fez esta viagem quando atuava como jornalista responsável pelo caderno semanal Marinha Mercante, publicado com o jornal O Estado de São Paulo. Esta matéria foi escrita a bordo do navio e publicada em 4 de setembro de 1990.